Espelho do Coma
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Sobre este e-book
Um acidente extingue os melhores anos de Elizabeth, a deixando em coma. Sua mãe oscila entre a esperança de vê-la acordar e a desesperança da realidade. Nesse ínterim, por onde andará a mente e alma de Elizabeth? Terá chances de recomeçar? Ou deverá escolher o caminho mais lógico e cômodo da permanência no mundo espiritual?
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Espelho do Coma - Vitor Cassius
Sonhos
Hospital
Eram cerca de 8:45 da noite quando a perua Volvo V40 estacionou ao lado do Hospital Saint Michael, no município de Brown Pine. A porta se abriu, desembarcando uma mulher de aproximadamente 40 anos. Quase imediatamente, ela abriu o guarda-chuva para se proteger das lágrimas do Oregon
, como eram chamados os chuviscos de inverno naquela região.
A mulher chamada Kathryn abotoou a blusa e se dirigiu a passos vagarosos para a entrada. Tempos atrás, ela entraria quase correndo no hospital, com a boca entreaberta. Mas esses eram tempos passados. Em seu olhar triste, havia uma certa resignação. E seus modos não tinham mais pressa.
O hospital parecia deserto, com exceção do enfermeiro na recepção, entretido em uma revista de palavras cruzadas. Ele levantou os olhos para a mulher, que acenou com as mãos, se dirigindo para a escada. Em resposta, o enfermeiro, já acostumado com a visita, apenas acenou com a cabeça, retornando para seus criptogramas.
Kathryn subiu tranquila o lance de escadas, se dirigindo para o último quarto do corredor. Quisera um quarto mais próximo do elevador, visto estar repetindo o mesmo caminho há meses. Mas o diretor da unidade se esquivou, alegando que os outros quartos não estavam preparados para o atendimento necessário. Ela não protestou, embora soubesse que a recusa não se devia à estrutura, e sim à natureza do caso da paciente, que ainda constrangia adultos e poderia assustar uma criança mais curiosa. Por isso, o último quarto do corredor mal iluminado era o escolhido. Ela entrou e acendeu a luz secundária.
Dentro, uma moça de 19 anos, com os cabelos longos e castanhos, parecia dormir suavemente. Era Elizabeth, filha de Kathryn, em estado de coma.
Kathryn ajoelhou-se ao pé da cama e fez uma pequena prece. Atendendo aos conselhos do Reverendo Reeve, ela não pedia mais a recuperação de Elizabeth, mas sim que Deus a protegesse e velasse por ela. Depois de orar, acariciou levemente o rosto e cabelo da filha.
Sentando-se na poltrona ao pé da cama, examinou o quarto por um instante, para ter certeza de que estava tudo como da última noite em que viera. Estava. Em sua bolsa, havia uma agulha e uma peça de tricô, recém iniciada. Lentamente, Kathryn começou a trabalhar na peça. Ela não esperava gostar disso, mas verificou, surpresa, que a atividade a deixava calma. Além de trazer algumas memórias saudosas da própria mãe, memórias que julgava ter esquecido. O tempo também parecia fluir mais rápido durante o novo hobby. Ela ficava, geralmente, até às 10:30 da noite, quando voltava para casa. Durante as pausas no tricô, às vezes levantava-se e dava um beijo carinhoso na filha.
Nas primeiras semanas de coma, Kathryn não conseguia permanecer quieta. Ela se levantava, dava voltas dentro do quarto sem motivo, orava e chorava. Também pesquisou vários remédios alternativos, no desespero de tentar mudar a situação. Cantava para Elizabeth, batia palmas, relatava histórias do cotidiano. E, às vezes, começava a gritar histericamente pela enfermeira, quando supunha (quase sempre imaginando) que a filha tinha mexido os olhos ou o corpo. O Dr. Norton precisou ter com ela uma longa conversa, explicando minuciosamente os detalhes da doença e suas imprevisibilidades. Os espasmos involuntários e a regeneração cerebral. Aconselhou-a que deixasse o tempo passar e não se desgastasse com esperanças vãs. Principalmente, a aceitar o fato de que provavelmente sua filha não voltasse. Se voltasse, poderia ser quase como um vegetal.
Com o passar dos dias, Kathryn passou a perceber que esperar a volta da filha era um sonho. Um sonho bom, mas ainda um sonho. O coma era a realidade. As perguntas dos conhecidos sobre o estado de Elizabeth começaram a ficar mais esparsas e raras. As visitas passaram da esperança de um milagre para a simples dedicação de uma mãe amorosa.
Lá fora, a chuva começou a engrossar, acelerando seu ritmo metódico na vidraça do quarto. O relógio antigo do hospital marcava agora 9:20 da noite. Muitas vezes, Kathryn especulara sobre a vida após a morte, e como seria a vida para sua filha durante o coma. Sua alma já estaria com os avós em campos celestiais ou, tal como o corpo, tinha-se desligado, como num sono eterno? O Reverendo Reeve explicara que Beth estava com o Senhor, muito feliz, e por isso a dificuldade de voltar. Mas se isso era apenas para que Kathryn ficasse mais conformada, não se sabe. Ela tinha desistido de procurar no rosto da filha qualquer sinal de angústia ou até tranquilidade. Ele parecia totalmente neutro. Só Deus sabia onde a consciência dela estava...
A sala e os sonhos
Aprimeira coisa de que a consciência de Elizabeth se lembrava era da sala ampla, onde ela sempre estava e acordava
. No começo, a sala era difusa, e vozes não identificadas eram ouvidas. Com o tempo, a sala se tornou cada vez mais nítida.
Não havia janelas nem lustres, mas esta sala era permanentemente iluminada. As paredes eram brancas, havendo no centro uma mesa comprida, com cerca de 15 cadeiras e um relógio antigo na parede. Até o momento, nenhum objeto tinha aparecido sobre a mesa. Ela não se lembrava de há quanto tempo, nem do motivo pelo qual estava nessa sala. Às vezes, julgava estar dentro de um sonho, e às vezes não.
A sala possuía apenas uma porta. Dentro da sala, Elizabeth permanecia sentada por horas, com pensamentos desconexos e vazios. E depois de um tempo, ela dormia.
Não tinha conhecimento de quem era, nem ao menos do próprio nome. Sabia de alguma forma que as pessoas têm pai e mãe, mas não sabia onde estavam ou quem eram seus pais. Suspeitava que tinha uma casa, mas não se lembrava de como chegar nela. Seu presente, passado e futuro eram uma mistura desconexa.
A porta da sala sempre estava fechada, mas destrancada, e Elizabeth podia sair, o que ela estava fazendo cada vez mais. As primeiras saídas foram difíceis. Ao abrir a porta, Beth encontrava um corredor escuro, sem iluminação. Havia barulhos de alguma coisa se arrastando ou movendo em algum lugar (rastejando?!), portas abrindo e batendo. Somado a isso, um ar gélido, e um cheiro que parecia de terra. Andando no corredor, ela sentia o corpo preso, como se andando debaixo da água. O medo de alguma coisa surgir inesperadamente e atacá-la era muito forte. Isso a fazia retornar à sala, o único local seguro. Nenhuma pessoa ou outra coisa havia aparecido naquela sala até aquele momento. Exceto, uma vez...
Uma vez, dentro da sala, ela ouviu barulhos se aproximando no corredor. Alguma coisa parecia estar passando em frente a sala, indo para o outro lado e retornando. Ela podia ver a sombra no vão da porta, e sentia seu coração bater apressadamente. O relógio marcava 02:38. Subitamente, a maçaneta parecia estar sendo aberta, ela podia vê-la se mexendo. Beth escondeu o rosto com os braços, na mesa, com um medo terrível, enquanto ouvia o rangido da porta sendo aberta. Com os olhos fechados, esperou o momento pelo qual alguma coisa muito feia caísse em cima dela, com um grito ensurdecedor de fúria.
Nada aconteceu. Ela entreabriu os olhos e a sala estava vazia. Foi a única ocasião em que a sala não esteve segura.
Depois de algum tempo (dias? semanas?) o ambiente fora da sala começou a se modificar. O corredor estava mais iluminado, como se o dia tivesse amanhecido. O cheiro de terra desapareceu, e Beth podia andar levemente, sem sentir nenhuma pressão. Esse corredor tinha outras portas, como em um hotel. Algumas abertas, outra fechadas. Beth olhava sorrateiramente para as portas abertas. Em determinadas ocasiões, via quartos, banheiros ou ambientes vazios. Em outras, pessoas que a ignoravam, entretidas em afazeres diversos. Mas em algumas ocasiões ela via seres deformados, que a assustavam. A única fuga era voltar para a sala. Nem sempre ela encontrava a porta. E quando encontrava, nem sempre estava aberta. Isso a aterrorizava, pois o ser deformado parecia estar atrás dela para pegá-la. Quando isso acontecia, ou quando o susto em um dos quartos era muito grande, ela reaparecia
na sala automaticamente, ofegante. Beth supunha que tinha tido um pesadelo e acordara.
A sala sumia cada vez mais para dar lugar aos sonhos, e à consciência. O raciocínio também ia aumentando.
Nem sempre, ao abrir a porta, aparecia o corredor. Ocasionalmente, ela saía direto num jardim, numa rua ou outro aposento do casarão em que a sala ficava. Ela vivia este mundo sem entender. Era ora uma vida, ora um momento, ora uma experiência. Criança, adolescente ou já uma mulher. Não sabia onde estava, quem eram seus amigos ou parentes. Passava por imagens e sons que só faziam sentido isoladamente, mas não montavam nenhum quebra-cabeça. Sua memória e raciocínio não retinham nenhuma ligação. Estas experiências eram como sonhos, os locais mudavam de forma considerável, e terminavam de forma abrupta. Também havia os pesadelos. O fato dela sempre retornar à sala a fazia supor que aquilo era sua vida. Não havia nada mais. A não ser esta sala vazia e os mundos que apareciam fora dela.
Ainda assim, era uma vida imprevisível. Os lugares, situações e pessoas mudavam, constantemente. E o detalhe mais intrigante é que tudo parecia real. Beth se viu uma vez no colegial, com 14 anos, conversando com duas amigas; ela sabia que tinha realmente estudado naquela escola nos anos 60, com aquelas duas meninas. E sabia que tinha cabelos negros e cheios. Mas em outro sonho, ela se viu com 30 anos, loira, ajudando o esposo na fazenda, e ouvindo os rumores de uma Segunda Guerra Mundial, a ser deflagrada na Europa. Ainda assim ela sabia que tinha aquela aparência e morava no campo. Sempre morou...
Eram momentos rápidos e desconexos. E alguns terríveis. Os piores eram os de quando vinha a SOMBRA...
A sombra vinha sempre do mesmo jeito, o que tornava a experiência ainda pior, quando ela sabia o que estava por vir. Nessas ocasiões, quase sempre ela era uma criança, brincando no quintal. Subitamente, os que estavam com ela tinham ido embora. E ela via formar-se no chão uma sombra, que escurecia o solo e se aproximava por trás. Neste momento, Beth realizava que alguma coisa terrível estava atrás dela; sua garganta apertava e o medo subia pelo corpo como uma onda contínua. Ela queria gritar e não conseguia. Queria fugir e o corpo não se movia. Quando o medo chegava a um ponto insuportável, com sua respiração presa, a cena se desfazia. E ela acordava do pesadelo, de volta à sala ou a outro lugar.
As vidas como criança eram as piores. Sempre havia adultos furiosos, prontos a agredi-la, estranhos que queriam raptá-la ou bandidos entrando inexoravelmente por portas que tinham sido esquecidas abertas. Curiosamente, essas situações estavam cada vez mais raras. Ela considerou que estava vivendo cada vez mais como adulta nos sonhos.
Agora, era uma dessas ocasiões. Elizabeth olhou para o relógio antigo, que marcava 9:20 da noite e decidiu sair da sala. O corredor estava vazio e silencioso. Ela foi andando devagar, torcendo para as portas estarem fechadas. Muitas vezes, quando ela passava, encontrava um ou outro quarto com a porta aberta. Não era possível a ela, sabe se lá por qual motivo, passar direto. Sempre tinha que parar e ver o que tinha dentro. Não raro, o que ela via era angustiante. E assustador...
Havia um quarto que estava sempre fechado. Este quarto tinha uma porta de ferro maciço, em formato arqueado. Nunca a encontrara aberta. E nas poucas vezes que tinha um molho de chaves na mão, nenhuma delas servira na fechadura.
Beth seguiu até o fim do corredor, onde havia uma vidraça. Ela sentia que podia atravessá-la, fechada ou não. Era um sentimento indefinível, sem muita lógica e instintivo. Havia lugares onde se sentia controlada por alguma força. Em outros, tinha mais liberdade e consciência. Mas agora era seguro passar pela janela. Ela pulou e passou
pelo vidro, aterrissando no jardim, sem nenhum impacto nas pernas. Outra coisa que ela descobriu que podia fazer, quando sentia a liberdade, era voar