Um rio preso nas mãos: crônicas
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Sobre este e-book
As 38 crônicas que compõem o livro viajam por diferentes assuntos e narrativas, deslizando entre a autobiografia e a escrita ficcional, a crítica sociopolítica e as mitologias africanas, a oralidade e a escrita, o passado e o presente - sobretudo do povo de Angola e de suas mulheres.
Por meio do desenho de numerosas paisagens e pessoas, a obra transporta o leitor para uma escrita ao mesmo tempo universal, feminina e africana, mostrando que é possível banhar-se nas mais diversas águas dentro de um mesmo rio.
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Pré-visualização do livro
Um rio preso nas mãos - Ana Paula Tavares
Copyright © 2019 Editora Kapulana Ltda. – Brasil
Copyright © 2019 Ana Paula Tavares.
A editora optou por adaptar o texto para a grafia da língua portuguesa de expressão brasileira conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, decreto n° 6.583, de 29 de setembro de 2008.
ISBN livro impresso: 978-85-68846-70-4
Direção editorial: Rosana M. Weg
Projeto gráfico: Daniela Miwa Taira
Capa: Mariana Fujisawa
Adaptação para e-book: Carolina Menezes
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
1. Crônicas: Literatura angolana em português A869.3
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
2020
Reprodução proibida (Lei 9.610/98).
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Kapulana Ltda.
editora@kapulana.com.br – www.kapulana.com.br
Avisos à navegação, de Carmen Lucia Tindó Secco
ANANAPALAVRA
Carta a Francisco
Estórias de Ananapalavra
Estranhas aparições de Ananapalavra
Josefa de Óbidos
A carta secreta de Ananapalavra ou a morte dos poetas
Nova carta de Ananapalavra
INICIAÇÃO
Nós, o dicionário e a professora Dina
A casa de meu pai: a África na filosofia e na cultura
A Lebre e o Camaleão
(Conto cokwe – versão abreviada)
Aprender a falar a língua de Angola
MULHERES
A manta
As mães
Mães da Nigéria
E por que é que elas não podem brincar?
Desafiar o silêncio
A vizinha do lado
Aurora, nossa tia
CULPA
A culpa
A casa do Bungo
A cor das vozes
A maldição do Kalahari
Os das Nuvens
Ana de Amsterdã
As duas faces de Rwej an Kond
As formigas
As minhas pedras
As nossas muitas mortes
Cadernos de deve e haver
Cor crua em tinta pura
Dentes de lobo
Errâncias
Famílias
Umidade
Jacarandá blues
Jovens
A crise
M como Mádia
Máscara
Glossário
Vida e obra da autora
Avisos à navegação
Carmen Lucia Tindó Secco
Profa. Titular de Literaturas Africanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Pesquisadora do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro)
Os saberes de uma época são formados por teias de representações sociais e culturais, incluindo os discursos literários. São essas malhas de conhecimentos e memórias que a escrita de Ana Paula Tavares revisita e tece com lucidez e poesia. Suas crônicas são curtas, densas e profundamente políticas. A escritora – também exímia poeta – maneja as palavras com labor e arte, construindo sentidos que transformam seu discurso em viagem por dentro do tempo e da linguagem. Viagem que se converte em autoconhecimento, em regresso à própria casa, à terra natal, ao âmago de si e do poético. Ler Ana Paula é penetrar nos labirintos da história, repensando perdas, dores, tradições. É mergulhar no íntimo dos vocábulos que brilham com olhos de sabedoria e prazer.
As crônicas de Um rio preso nas mãos, de Ana Paula Tavares, questionam aspectos do presente angolano, ao mesmo tempo que reinventam tradições silenciadas de povos de Angola. Em sua escrita, sangram palavras, medos, silêncios, o livro do tempo em seus deveres e haveres. Desse modo, as pontas de vários contextos históricos vão-se enlaçando. Na crônica As Mães
, por exemplo, a voz enunciadora, em diálogo intertextual com o poema do angolano Viriato da Cruz usado como epígrafe, lembra os sofrimentos das mães de ontem e de hoje em Angola.
A autora escava camadas de letras para encontrar uma nova carta
, reveladora de outras lembranças e estórias. Fantasmas assombram a escrita, fazendo aflorarem do passado tradições esquecidas. Há a recordação de um tempo sem fronteiras, que excitava intercâmbios entre os povos, bem como a interpenetração de línguas e linguagens. Tudo isso, porém, ficou no outrora, na argila e na água com que se moldavam o barro e a vida. Hoje, ao lado da fronteira alinhou-se a palavra ameaça (...). Cercaram o paraíso de muros altos e arame
.
Na crônica O Livro do Deve e do Haver
, é elaborada, de modo crítico, uma contabilidade da história do colonialismo português, das dívidas cobradas à terra angolana. Aqui, é lançado um olhar questionador e defendida a urgente construção de uma solidariedade orgânica, capaz de romper com a contabilidade dos lucros que só beneficiava os algozes de uma terra que desejava hastear sua independência. Das contas, dos diários, a voz enunciadora passa aos poemas que prepararam e alimentaram a luta revolucionária. Bons tempos esses que não deveriam ser esquecidos! Contudo, mudanças ocorreram e a utopia da liberdade foi maculada por políticas e economias neocoloniais.
É melancólico esse balanço crítico, após tantos anos de guerras e sangue derramado! Esgarçam-se não apenas as economias e as sociedades africanas, mas, principalmente, as identidades. A contrapelo dessa história de estagnação, implosão e declínio econômico-cultural, as crônicas de Um rio preso nas mãos, muitas das quais originalmente publicadas, em 2014 e 2015, no Rede Angola¹, focalizam, em sua maioria, diversas tradições angolanas esquecidas, como, por exemplo, a das mulheres que vestiam panos, cumpriam rituais, cozinhavam com óleo de palma, bordavam colares de miçangas e modelavam o barro vermelho, ao mesmo tempo que recordavam os lemas revolucionários, quando eram ainda jovens e esperançosas da edificação de uma Angola livre e solidária. O diálogo com a liberdade, com a terra, com a comunhão entre os homens é rememorado, manifestando saudade dessa época.
Na crônica Desafiar o Silêncio
, a cronista aborda a função social das mulheres no mundo atual e cobra das independências dos países africanos a urgência de remover moléstias antigas, abrir escolas
. Defende que são as mulheres – tanto as dos espaços rurais, como as das cidades atuais – as conhecedoras da diversidade de seus papéis na família, no trabalho, no cotidiano das relações de vizinhança e na sociedade.
Ana Paula repensa o desempenho das mulheres em algumas tradições angolanas; acaba por refletir, também, metapoeticamente, sobre a função da palavra e da arte. Num corpóreo silêncio, sua escrita urde, crítica e poeticamente, sua trama com consciência e mel; estilhaça medos; fala
pelo outro que toca a vida, muitas vezes, sem ter a real percepção dela. Medos, os mais variados, se repetem no mundo contemporâneo, em obras de poetas e romancistas. Por isso, é mister, cada vez mais, trabalhar a palavra, envolvê-la em tecidos finos, misturá-la a sons rústicos e estrepitosos, a vozes profundas que mergulhem no mistério das almas, como se estivessem sobre aveludados divãs de psicanalistas, magos ou visionários.
Na crônica Umidade
, a voz poética enunciadora é a grande tecelã: a aranha do deserto a tecer a teia da vida, do tempo e da linguagem. Esse fluir, entretanto, se encontra preso como o rio nas mãos gretadas e em sangue da