Mia Couto: uma literatura entre palavras e encantamentos
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Mia Couto - Márcia Fusaro
Sumário
Capa
Conselho Editorial:
Prefácio: Travessia do bom selvagem pela selva surrealista
Por Maria Estela Guedes
O romance Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra e a moçambicanidade literária em Mia Couto
Thiago Lauriti
Mia couto e a obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
A moçambicanidade literária em Mia Couto
A identidade africana expressa pelas forças da natureza e pelo tempo, em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra
Considerações finais
Referências
Mia Couto: Tempo-Memória-Rio
Ana Maria Haddad Baptista
Introdução
Dos rios
Tempo-memória-rio
1. Tempo-memória-rio: presente
2. Tempo-memória-rio: passado
3. Tempo-memória-rio: futuro
Considerações finais
Referências
Entre o sonho e a morte: desvelamentos, revelações e contaminações na narrativa ficcional de Mia Couto
Manuel Tavares
Introdução
O sertão e a savana: influências e confluências
O pós-colonial: a busca de uma identidade entrelaçada entre o passado e o presente
Desvelamento e revelação
Entre o sonho e a morte: a reinvenção do real
Notas inconclusivas
Referências bibliográficas
A mulher nos contos de Mia Couto: uma leitura pós-colonial
Márcia Moreira Pereira
A mulher e os estudos pós-coloniais
A mulher nos contos de mia couto
Considerações finais
Referências bibliográficas
Literatura e Ciência em Mia Couto
Márcia Fusaro
Introdução
Mia Couto: cientista-escritor ou escritor-cientista?
Literatura e ciência: linguagens e con(di)vergências
Considerações finais
Referências bibliográficas
Os sentidos e os não sentidos da Língua Portuguesa: questões de língua e linguagem nos contos de Mia Couto
Maurício Silva
Introdução
Língua e linguagem no contexto do pós-colonialismo
Língua e linguagem nos contos de Mia Couto
1. Língua
2. Linguagem
Considerações finais
Referências bibliográficas
Terra sonâmbula: Mia Couto e o galinheiro da história
Sueli Saraiva
Uma nação à beira da praia
Narrativas dípticas
Considerações finais
Referências Bibliográficas
Bio-bibliografia dos autores
Maria Estela Guedes
Thiago Lauriti
Ana Maria Haddad Baptista
Manuel Tavares
Márcia Moreira
Márcia Fusaro
Maurício Silva
Sueli Saraiva
Maurício Silva
Márcia Fusaro
Organizadores
Mia Couto:
uma literatura entre palavras e encantamentos
São Paulo | Brasil | Fevereiro 2019 – Ebook
1ª Edição
Big Time Editora Ltda.
Rua Planta da Sorte, 68 – Itaquera
São Paulo – SP – CEP 08235-010
Fones: (11) 2286-0088 | (11) 2053-2578
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Site: bigtimeeditora.com.br
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Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Nota: Dado ao caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam as normas e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor.
Conselho Editorial:
Ana Maria Haddad Baptista (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)
Catarina Justus Fischer (Doutora em História da Ciência/PUC-SP)
Lucia Santaella (Doutora em Teoria Literária/PUC-SP)
Marcela Millana (Doutora em Educação/Universidade de Roma III/Itália)
Márcia Fusaro (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP)
Vanessa Beatriz Bortulucce (Doutora em História Social/UNICAMP)
Ubiratan D’Ambrosio (Doutor em Matemática/USP)
Ficha Catalográfica
SILVA, Maurício; FUSARO, Márcia. Mia Couto: uma literatura entre palavras e encantamentos. 152 pp. – São Paulo: BT Acadêmica, 2019.
ISBN 978-85-9485-076-8 | 1. Educação 2. Estudos Literários 3. Literatura Africana I. Título
Produção Editorial
Projeto gráfico: Big Time Editora
Diagramação: Marcello Mendonça Cavalheiro
Capa: Antonio Marcos Cavalheiro
Revisão: Autores
Palavras valem a pena se nos esperam encantamentos.
Mia Couto
Prefácio: Travessia do bom selvagem pela selva surrealista
Por Maria Estela Guedes
Nos tempos românticos do bom selvagem, um indígena americano ou asiático visitava a metrópole europeia para lançar uma mirada crítica à civilização. Ou então um representante da superior civilização coligia exaustivas informações in loco acerca do modo de vida dos selvagens, a que o riscador acrescentava coloridas aquarelas que mostravam roupas ou corpo despido, penteados, armas e alfaias; intitulavam-se memórias e itinerários filosóficos estes inventários em que ainda se anotavam veículos de transporte terrestre e de navegação, fábricas, tinturas, combustíveis, materiais explosivos, plantas medicinais e diversas outras boticas. Não esqueçamos os mapas, a navegabilidade dos rios, a fundura dos ancoradouros, a temperatura dos ares nem a altitude dos plainos e dos picos. Gente superiormente civilizada, que ia abrindo estradas à medida das passadas, segundo o ancestral modelo dos romanos, e colecionando folhas, frutos, rochas e animais, para prova de que o território se encontrava sob o domínio do conhecimento científico. Recordemos exploradores como Serpa Pinto que, para a cabal travessia dos desertos, rios, rápidos, cataratas, matos e florestas do continente negro, importaram de Inglaterra os finíssimos serviços de chá.
Olhares um pouco às avessas foram os dos dois persas em tournée europeia com extasiada permanência em Paris, tecendo comparações ingenuamente mordazes – isto através do olhar do filósofo, claro, o Montesquieu das Lettres persanes que permitiu o infeliz desenlace de uma Roxane, entre mais quatro esposas legítimas abandonadas, ela que não só era a favorita do espécime exótico em devaneio parisiense como dos vários eunucos encarregados de guardar o harém na Pérsia.
Idênticos choques culturais e civilizacionais apresentam-se igualmente quando enfrentamos os caminhos de um livro, muito mais desafiadores então quando se trata de uma obra já florestal em número de títulos e em diversidade de géneros, na maior parte mais complexos do que a norma, por se tratar de híbridos: contos, romances, crónicas, teatro, poesia, e textos de encanto, lindamente ilustrados, para uma infância cujos limites etários não é oportuno discutir aqui, bastando anotar que pode ser a nossa, atual, neste redundante agora… Obra de Mia Couto, escusado referir.
Na nossa assembleia de ex-bons-selvagens na totalidade com a minha única exceção (a menos que remontemos a tempos célticos, godos, ou mesmo àqueles em que frequentava a escola de ferir o xisto e o granito para nele deixar os pictogramas patentes hoje na Canada do Inferno e noutros recintos paleográficos de Foz Côa, datados alguns de há vinte e cinco e trinta mil anos), nesta assembleia de ex-bons-selvagens, dizia – Mia Couto e exegetas brasileiros, que espreitais à porta da sua morança africana – qual seria agora o olhar do filósofo, representante da ex-potência civilizadora? À parte a língua, que é a mesma, em distintas tonalidades, o que parece entre nós traço de união é o dos afetivos -ex
… O dos afetos, melhor dizendo. Estamos todos presos a uma terra-mãe que pode ser a do outro, nô djunta mon, como se diria em Bissau, para uma festinha de familiaridade.
Pesa-me na mochila mais a cultura anglo-americana, veiculada pelos meios de comunicação de massa, do que aquela que exerci sobre vós outrora – tão ligeira que nem a língua deixei em África, e menos ainda na Ásia, segundo parece. Se ficou no Brasil é porque, antes de a lá deixar, já lá estava, à semelhança de um qualquer fenómeno de infestação devido à introdução quiçá ilegítima de espécies exóticas. Exotismo e endotismo, eis dois temas que valia a pena rever na literatura, não porém à luz das letras, sim à de conceitos biológicos que nos falam, por exemplo, das viagens das plantas e dos animais. Vejamos: errará muito o persa em Maputo se, face às mais comuns árvores de fruto moçambicanas, descobrir que algumas são persas, e asiáticas e brasileiras na generalidade as mais substanciais? E agora? Que diz o indígena? O filósofo é capaz de conceder em que a coisa já passou à categoria de ex-ótica, pois, o que diz respeito ao Homem, estamos cansados de o saber, precisa de ser encarado como cultural, de selvagem ou natural nada tem.
Voltemos à língua, a perguntar se é exótica ou se já terá sido naturalizada. A minha superior civilização terá imposto em Moçambique a língua portuguesa? Rezava o Regulamento do Colégio e Liceu Honório Barreto, em Bissau, e eu o atesto como ex-aluna, que era proibido falar crioulo nas aulas. Tudo bem, meus senhores: nem crioulo nem papel, nem balanta, nem fula, nem mandinga, só o portuguesinho da praxe. E então? Quantos dos meus colegas ficaram, com a proibição das suas línguas maternas, meus irmãos na partilha da minha? Alguns dez por cento, não é verdade? Mia Couto, em Moçambique, faz parte dos mesmos dez por cento, devendo por isso considerar-se exótico, uma figura minoritária, excecional, no mapa das línguas mais faladas no seu país.
Não impus a minha língua, apesar da legislação em contrário. África, no caso a Guiné(-Bissau), é que me seduziu a mim com o seu crioulo leve e kriol fundo, mais os papiares de indecifrável origem linguística, similares aos que se patenteiam nas obras do autor moçambicano. O exercício de decifrar é lento e gostoso, mas pouca diferença faz o código – se língua das aves, como tanto cimentou Richard Khaitzine em relação aos surrealistas, se o galaico-português da cantiga de Pai Soares de Taveirós, se os tantos papiares das diversas populações do globo, ou se o resultado das suas misturas – e a fusão é uma das grandes artes de Mia Couto, conhecedor da zootecnia, e por isso sábio de que só o híbrido é absolutamente novo, mesmo no caso vertente, em que, do ADN, só participam os carateres linguísticos que o simbolizam.
Sinto-me o mais possível resultado dessa mistura. Já não sinto o peso dela, quase ignoro a sua presença genética, de tão naturalizada a herança romana e árabe, abismada no âmago da nossa conversa. Porque também vós a partilhais, e em cima dela a herança castelhana. Eis algo cuja abominação causa estranheza, portanto custa a assimilá-lo, mas houve um tempo em que todos – de Bissau a Cabinda, de Moçambique a Timor, de Damão ao Rio de Janeiro – houve esse tempo longo de sessenta anos em que todos fomos espanhóis.
E, se formos a ver, em matéria de selvagens, com toda a carga surrealista que pessoalmente transporto no currículo, sou bem capaz de o ser mais do que todos vós juntos, aliás sois apenas ex–, ao passo que eu estou ainda no ativo. E com isto, finalmente, cá chegámos à pousada do surrealismo.
Um filósofo senegalês, Massaer Diallo, na Paris dos anos 80, empreendeu a mesma tarefa dos protagonistas das Lettres persanes: fitou, olhos nos olhos, o ex-civilizador, aquele que quis exterminar os mitos, os ritos, enfim, tudo o que nos selvagens era sinal de inferior, ou tudo o que nos indígenas era sinal de selvajaria, como a crença, a superstição, os mitos, os ritos e as magias, apelando portanto para a necessidade de os salvar, mediante conversão – ao catolicismo, naturalmente. Aproveito para reforçar a hipótese de colonização leve com a pergunta: sendo a primeira ferramenta civilizadora o missionarismo católico (a segunda era a científica, levada a cabo pelos exploradores e naturalistas, e a terceira era a militar), daí decorreu a imposição do catolicismo em África a ponto de ser hoje religião dominante? Predominante talvez nos dez por cento da população que falam português. Convenhamos, entretanto, que algo ainda hoje nos une e religa, passados séculos e décadas sobre o divórcio, mas esse elo cultural nasce no coração, é um sentimento de pertença à terra e à família que fala, mesmo mal, a língua portuguesa.
No Senegal, como na Guiné-Bissau, o que domina é o Islão. Em Un regard noir, Diallo, o filósofo senegalês, pergunta aos surrealistas, e exatamente aos surrealistas, não a quaisquer outras sumidades étnicas nem culturais, por que motivo tinham ido a África buscar a magia, se em Paris, para quarenta mil médicos, havia trinta mil marabus, videntes e afins, nesses já sobreditos anos de 1980. E não era quem mais facilmente supomos o paciente, sim empresários, intelectuais, políticos, milionários. Sem contar com autores como Mia Couto, que acodem à tradição como surrealistas, para beberem na fonte original e para que não desapareça debaixo das botifarras anglo-americanas; tradição é igual a natividade, identidade, infância, endotismo, se bem que também Herberto Helder, por exemplo, partilhe o marabutismo angolano, de dentro, vivido in loco, ficando eu agora na dúvida sobre se deva interpretar e o quê como tradição ou aventura, sabendo que os dois termos arrancaram a par da inspiração da vanguarda.
Consta que De Gaulle se fazia acompanhar nas viagens por Madame Soleil, a sua astróloga, e que Miterrand lhe seguiu as pisadas. Em suma, o pensamento selvagem não é específico dos bons selvagens, sim uma estrutura pensante apta para lidar com os aléns, transversal às comunidades, classes e nações, como nos explicou Lévi-Strauss. Não devemos assim ficar inquietos por os ex-civilizadores não terem conseguido impor a mais avassaladora ferramenta civilizacional, a língua, nem exterminado o mais avassalador dos fantasmas contra-civilizacionais, o marabutismo. Marabus senegaleses, idos do Senegal, e marabus falsificados, de extração francesa, cigana, brasileira – que sei eu? – era o que mais havia em Paris nos famosos anos 80, e não vamos responsabilizar por isso nem o maio de 68 nem os ranchos de hippies, que se limitaram a acentuar a questão com angélicas coroas de flores. Hoje como antes e depois, não há moedas de uma só face, quem quer o mythos terá de sofrer com paciência o assédio do logos. Ou vice-versa.
Não desejava avançar sem duas palavras de comentário a um aspeto selvagem e correligadamente surrealista da obra de Mia Couto, quer ele tenha lido ou não André Breton, quer tenha visto ou não pinturas de Picasso, mais conhecido como cubista, e de Salvador Dali. É o caso algo macabro, de discutível humor negro, do despedaçamento do