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Teologia Bíblica: o Deus das Escrituras cristãs
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Teologia Bíblica: o Deus das Escrituras cristãs
E-book1.046 páginas21 horas

Teologia Bíblica: o Deus das Escrituras cristãs

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Sobre este e-book

John Goldingay, renomado teólogo do Antigo Testamento e famoso por sua teologia bíblica do Antigo Testamento, encara a árdua tarefa de produzir uma teologia bíblica que engloba os dois testamentos. Com o que nos deparamos quando paramos para ouvir alguém que passou uma vida inteira escutando profundo e atentamente as várias testemunhas da Escritura?

Em Teologia Bíblica: o Deus das Escrituras cristã o autor compartilha todo a sua sabedoria na tentativa de responder uma pergunta central: qual entendimento sobre Deus, o mundo e a vida surge ao investigar os dois testamentos? À medida que constrói sua teologia bíblica, o autor não força os textos bíblicos em uma temática central ou em uma unidade abrangente; em vez disso, permite que a diversidade e a tensão das Escrituras permaneçam em sua pluralidade como múltiplas testemunhas para os caminhos de Deus.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de mar. de 2020
ISBN9788571671539
Teologia Bíblica: o Deus das Escrituras cristãs

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    Pré-visualização do livro

    Teologia Bíblica - John Goldingay

    Título original: Biblical Theology: The God of the Christian Scriptures

    Copyright © 2016 John Goldingay

    Edição original por InterVarsity Press. Todos os direitos reservados.

    Copyright de tradução © Vida Melhor Editora LTDA., 2020.

    Todas as citações das Escrituras, salvo indicações específicas, são traduções do próprio autor.

    Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seus autores e colaboradores diretos, não refletindo necessariamente a posição da Thomas Nelson Brasil, da HarperCollins Christian Publishing ou de sua equipe editorial.

    CIP–BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    G981t

    Goldingay, John

    Teologia bíblica: o Deus das escrituras cristãs / John Goldingay; Elissamai Bauleo. — 1.ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.

    656 p.; 15,5 x 23 cm

    ISBN 978-85-71671-53-9

    1. Teologia.    2. Cristianismo.    3. Estudo bíblico.    4. Vida cristã.    5. Escrituras.    I. Título.

    CDD: 230

    Índice para catálogo sistemático:

    1. Teologia: cristianismo

    2. Estudo bíblico: vida cristã

    3. Escrituras

    Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB-1/3129

    Thomas Nelson Brasil é uma marca licenciada à Vida Melhor Editora LTDA.

    Todos os direitos reservados à Vida Melhor Editora LTDA.

    Rua da Quitanda, 86, sala 218 – Centro

    Rio de Janeiro – RJ – CEP 20091-005

    Tel.: (21) 3175-1030

    www.thomasnelson.com.br

    Quem poderá descrever todo o poder [da grandeza do Senhor]?

    Quem empreenderá a explicação de sua misericórdia?

    Nada há a subtrair, nada a acrescentar às maravilhas de Deus; elas são incompreensíveis.

    Quando o homem tiver acabado, então estará no começo; e, quando cessar a pesquisa, ficará perplexo.

    Eclesiástico 18:4-6

    O mistério é a força vital da dogmática.

    Bavinck, Reformed Dogmatics 2:29

    (Também é importante para a teologia bíblica.)

    SUMÁRIO

    Capa

    Folha de rosto

    Créditos

    Prefácio

    Introdução

    1. A pessoa de Deus

    1.1 O caráter de Deus

    1.2 Um único Deus

    1.3 Espírito de Deus: vento e fogo

    1.4 A mente de Deus e sua mensagem

    2. A sabedoria de Deus

    2.1 Personificada no mundo

    2.2 Declaratória

    2.3 Testificada

    2.4 Imperativa

    2.5 Inspiradora

    2.6 Diversificada

    3. A criação de Deus

    3.1 Céus e terra

    3.2 A comunidade humana

    3.3 A nação

    3.4 O ser humano

    3.5 O indivíduo

    3.6 Desvio e suas consequências

    4. O reinado de Deus

    4.1 Em Israel

    4.2 Por meio de Jesus

    4.3 A resistência

    4.4 O plano secreto de Deus: Israel expandido

    5. O Ungido de Deus

    5.1 A vida de Jesus

    5.2 A morte de Jesus: incorporando e modelando

    5.3 A morte de Jesus: carregando a transgressão

    5.4 A morte de Jesus: purificando e fazendo restituição

    5.5 A morte de Jesus: libertando as pessoas para um novo trabalho

    5.6 A ressurreição de Jesus

    6. Os filhos de Deus

    6.1 A congregação

    6.2 Relacionamento com Deus

    6.3 Ambiguidades

    6.4 Servos da congregação

    7. As expectativas de Deus

    7.1 Andar

    7.2 Adorar

    7.3 Comprometimento mútuo

    8. O triunfo de Deus

    8.1 O cumprimento da intenção de Deus

    8.2 A era vindoura e o novo mundo

    8.3 Entre o fim e o fim

    8.4 A aparição de Jesus

    8.5 Juízo

    Obras consultadas

    Índice de nomes

    Índice temático

    Índice bíblico

    PREFÁCIO

    Quando estava escrevendo uma Teologia do Antigo Testamento, [ 1 ] uma voz em minha cabeça me disse que deveria ser uma teologia bíblica. Considerar a importância teológica do Antigo Testamento de forma isolada era um exercício insólito, visto que a igreja reconhece os dois Testamentos como Escrituras. Evidentemente, não é um exercício tão estranho quanto tratar o Novo Testamento isoladamente. As Escrituras do Antigo Testamento não pressupõem o Novo e não são incompreensíveis sem o Novo, e a ideia de alguém no ano 10 a.C. perguntando a respeito do conteúdo teológico do Antigo Testamento como um todo não é incoerente (se não levarmos em conta debates sobre quando a lista precisa de seus livros foi fixada). Em contrapartida, o Novo Testamento pressupõe o status bíblico desses escritos; questionar implicações teológicas do Novo Testamento de forma isolada deles é um empreendimento incoerente e perigoso.

    A princípio, não tive resposta à voz da minha cabeça, exceto pela convicção tática (implícita, naquele ponto, no perigo de uma teologia do Novo Testamento) de que era importante ressaltar o Antigo Testamento para equilibrar a prática comum de ignorá-lo teologicamente. Reconheço, porém, a força da voz, e este livro é minha tentativa de atender a ela.

    Na escrita, segui um procedimento semelhante ao adotado em minha Teologia do Antigo Testamento. Fiz uma lista de possíveis títulos de capítulos com base em ideias de quais seriam necessários, passando, então, a ler o Novo Testamento e fazer observações com base nesses títulos.

    Atuando dessa forma, quis dar prioridade à minha leitura das Escrituras e deixá-las, por si mesmas, determinar o andamento do trabalho. Tendo escrito uma Teologia do Antigo Testamento, não estava confiante de que poderia repensar o material do Antigo Testamento de maneira nova e começar por ele; seria uma reintrodução do trabalho anterior. Começar pelo Novo Testamento deu-me uma nova perspectiva do Antigo Testamento. Em harmonia com a forma pela qual me dediquei à tarefa, procuro sempre, ao apresentar o material neste volume, começar com o Novo Testamento. A vantagem é que começamos onde a igreja está hoje, ou seja, no contexto de seu maior envolvimento com o Novo Testamento.

    Juntamente com meu estudo das Escrituras, li alguns comentários e outras obras, remodelando e desenvolvendo os títulos e a estrutura do trabalho conforme os dados o exigiam. Ao longo do caminho, adicionei material considerável do Antigo Testamento que interligava (ou não) os vários temas, fazendo-o de modo mais sistemático após ter completado meu trabalho inicial.

    Além deste prefácio e da introdução a seguir, não discuto métodos, nem menciono questões sobre o relacionamento entre os Testamentos. Minha consideração mais recente a respeito de tais questões tornou-se um livro à parte: Do We Need the New Testament [Precisamos do Novo Testamento]? [ 2 ] O presente livro pressupõe posições estabelecidas na obra citada e, em termos proporcionais, presta mais atenção ao Novo Testamento do que esse outro título poderia sugerir ou do que você e eu esperaríamos. Essa característica reflete o método de trabalho que começou com o Novo Testamento; também significa que não repito substancialmente o conteúdo coberto na Teologia do Antigo Testamento, nem sou tentado a prolongar demais o livro. Geralmente, apenas indico onde um tema característico do Antigo Testamento se encaixa, faço um breve comentário sobre ele e adiciono algumas referências de rodapé ao material da Teologia do Antigo Testamento, embora os três volumes dessa obra incluam material que se expande para quase todas as seções deste livro. Mantenho uma esperança, ainda que ingênua, de que o leitor sinta-se motivado a ler esse meu outro trabalho.

    As traduções bíblicas são minhas, a menos que indicadas de outra forma. Em referências como "Sl 31:19 [tm 20]", a informação entre colchetes indica a versificação em bíblias hebraicas que difere das bíblias em português. No Novo Testamento, geralmente traduzo a palavra christos por Ungido em vez de usar a transliteração Cristo, o que facilmente dá a impressão de que a palavra é um nome, [ 3 ] e traduzo a expressão huios tou anthrōpou por Homem em vez de Filho do homem. [ 4 ] Geralmente, emprego a palavra congregação no lugar de igreja, bem como a palavra fiéis em vez de cristãos, [ 5 ] de uso esporádico no Novo Testamento. Jesus fala sobre discipular pessoas, não torná-las cristãs, enquanto para Paulo fiéis é a palavra principal nessa conexão, sendo santos (hagioi) sua outra palavra principal. Tanto judeus como pagãos são chamados de infiéis (apistoi). [ 6 ] Ao falar sobre a origem de livros bíblicos, como Jeremias, Mateus ou Efésios, geralmente menciono os autores de livros inteiros pelos nomes que lhes são tradicionalmente associados, sem a intenção de sugerir que tenho necessariamente um ponto de vista da verdadeira identidade do autor.

    Normalmente, usei as seguintes abreviações:

    Sou grato a Thomas A. Bennett e a Kathleen Scott Goldingay, por sua leitura e seus comentários cuidadosos do rascunho deste livro, assim como o de muitos outros. Menciono-os esporadicamente em notas de rodapé, mas sua contribuição é maior do que essas menções sugerem. Também sou grato a Anna Lo, por compilar os índices. Já era tempo de expressar minha gratidão pelo conselho e o apoio de Dan Reid, meu editor na IVP, cujos conselhos e o apoio têm me servido há muitos anos. A última sugestão em conexão com este volume era dizer-lhe que estava dando os últimos retoques no texto quando o Desfile do Torneio das Rosas passava por nossa casa em South Orange Grove Boulevard, Pasadena, Califórnia, no Ano Novo de 2016.

    INTRODUÇÃO

    Teologia bíblica significa coisas diferentes para pessoas diferentes, e não estou preocupado em defender que a expressão deva ser usada apenas no sentido por mim atribuído; apenas deixarei claro o que quero dizer com essa expressão. Para a comunidade judaica, as Escrituras são compostas por uma coletânea de obras chamadas de Torá, Profetas e Escritos. Essa coletânea é chamada de Antigo Testamento pelos cristãos e, neste livro, receberá o nome de Primeiro Testamento. Há ainda outra coletânea que a igreja veio a definir, denominada pelos cristãos de Novo Testamento. A igreja considera que essas duas coletâneas estão interligadas e são normalmente impressas como um único volume. Neste livro, questiono: Que entendimento sobre Deus, o mundo e a vida emerge desses dois Testamentos? Não parece uma pergunta ultrajante, mesmo que tentar responder a isso possa ser um ato de arrogância ingênua. [ 7 ] Mesmo que de fato pareça ultrajante, tenho feito essa pergunta, e este livro lhe dá minha resposta.

    Uma razão pela qual parece ser uma pergunta complicada é que os dois Testamentos consistem de escritos que vieram à existência através da obra de diversas pessoas por cerca de mil anos, cobrindo uma área ampla do Oriente Médio e do leste do Mediterrâneo. Contudo, essas pessoas produziram o que os cristãos veem como uma única história concernente ao envolvimento de Deus com um povo particular e como esse envolvimento veio a abranger outros povos. Os Testamentos compõem uma coletânea de documentos que relacionam aspectos dessa história; transmitem insights sobre o Deus que a orquestrou; desafiam pessoas sobre sua existência nesse contexto; advertem e fazem promessas a respeito do futuro; registram a oração e o louvor de pessoas a Deus; incorporam cartas, poemas e observações sobre a vida. Esses documentos lembram uma foto de família, um livro corriqueiro, um álbum de recortes ou uma coleção de memorabilia, uma antologia que narra uma história de família, fornecendo-nos uma fotografia sua em diferentes períodos.

    Assim, eles não são uma tradição coerente, como o trabalho de Tomás de Aquino ou de João Calvino, porém um pacote canônico de testemunhos sobrepostos de contextos drasticamente diferentes à única história de Deus com a humanidade, cujo ponto culminante é a morte e a ressurreição de Cristo. As Escrituras vêm até nós na forma de tradições plurais. De fato (como Nietzsche assinala), o anseio por um sistema é uma falta de integridade. [ 8 ] Entretanto, na pauta de uma hermenêutica da doutrina… há espaço para sistema tanto em termos de coerência… como de provisão para marcos de fronteira e de identidade em interação com a história em andamento, a experiência e uma hermenêutica dos mundos-da-vida, ainda que a noção de um ‘sistema final’ seja excluída. [ 9 ]

    No modo como as próprias Escrituras fazem teologia, duas formas estão entre as mais proeminentes. Ambos os Testamentos são dominados por uma série de narrativas, e essa característica reflete e aponta para um aspecto-chave da teologia bíblica: trata-se de uma teologia que se concentra em uma história. Ela abrange um relato de coisas particulares que Deus e o ser humano fizeram em lugares e tempos particulares, bem como uma reflexão considerável sobre essas ações e acontecimentos. Ambos os Testamentos também incorporam um bom material de cunho mais discursivo e analítico; esse consiste em ensinar que, explícita ou implicitamente, lida com as implicações dos eventos apresentados nessas narrativas. Assim, cobre temas teológicos (verdade sobre Deus, Israel, o mundo, a humanidade etc.) e a natureza da resposta adequada a Deus (em adoração, espiritualidade, ética etc.).

    Em Old Testament Theology [Teologia do Antigo Testamento], o primeiro volume se ocupou da forma narrativa, enquanto os outros dois, das formas discursiva e analítica (o Primeiro Testamento também faz teologia por meio de louvor e oração; não tentei emular essa abordagem). Neste livro, as duas formas se interligam mais. Começo com o próprio ser de Deus e prossigo abordando o mundo, a humanidade, o povo de Deus e as expectativas de Deus. Ao mesmo tempo, movo-me da Criação para Israel, de Israel para Jesus, de Jesus à consumação do propósito de Deus. Começo com o discursivo (a pessoa de Deus) e termino com o narrativo (o triunfo de Deus).

    Definições de teologia bíblica distinguiram entre teologia contida na Bíblia e teologia que está de acordo com a Bíblia. [ 10 ] Meu objetivo se encontra em algum lugar entre essas duas alternativas. Como Jerônimo, Calvino ou Barth, faço teologia como a pessoa que sou no tempo em que escrevo, o que significa, no meu caso, como um ministro britânico envelhecido, acadêmico e louco por música vivendo em Los Angeles, no século XXI. Formulo uma teologia bíblica com a ajuda de obras produzidas por eruditos como Karl Barth, Richard Bauckham, Rudolf Bultmann, James Dunn, Richard Hays, E. P. Sanders e N. T. Wright; além disso, há cinquenta anos, não podia ter escrito da forma como faço hoje. O mais assustador é que, em cinquenta anos, a obra terá de ser reformulada.

    Quero saber que importância essas Escrituras têm em nosso tempo, e quero que outras pessoas a vejam e que seu interesse seja despertado. Ética, enquanto descritiva, não é imparcial; ela reflete normativamente, [ 11 ] e o mesmo se dá com a teologia bíblica. Nem sempre resisto à tentação de apontar meios nos quais essas Escrituras são importantes para nós ou de tentar refletir sobre as questões suscitadas por elas. Não quero, porém, que tais interesses me impeçam de ver o que as Escrituras dizem por si só. Sou entusiasticamente preocupado com o modo como elas afetam nossa vida aqui e agora, e não há como esse fato não impactar o modo como vejo a teologia bíblica. Contudo, não busco intencionalmente declarar sua natureza de modo a torná-la uma mensagem para meu contexto, e não quero prestar muita atenção a questões que são mais importantes em nosso contexto do que nas Escrituras, tais como racismo, violência, aborto, homossexualidade, direitos da mulher ou ecologia. Quando um aluno do primeiro ano de teologia ouviu falar que eu estava escrevendo uma teologia bíblica, inferiu que se tratava, portanto, de uma teologia sistemática. Não é. Teologia sistemática elabora as implicações das Escrituras de uma forma que faça sentido para o próprio contexto do autor, usando categorias de pensamento que pertencem a esse contexto. Não reprovo o empreendimento, porém tento evitar seguir por essa linha.

    Meu objetivo não é identificar um núcleo comum ou uma unidade subjacente que os escritos bíblicos compartilham; a natureza de tal núcleo comum está propensa a ser mínima. [ 12 ] Procuro identificar o edifício que pode ser construído a partir dos materiais que os escritos oferecem, de uma maneira que lhes faça jus. [ 13 ] Indivíduos e acontecimentos são complicados, e depois de assistir a um filme ou de ouvir um álbum musical juntos, um grupo de pessoas pode sair com impressões diferentes e ter uma discussão acalorada sobre eles. Este volume é a impressão que tenho ao ter me deparado com as Escrituras. Quando João Calvino escreveu as Institutas da Religião Cristã, fê-lo a fim de fornecer um esboço da natureza da fé bíblica e prover às pessoas um contexto a partir do qual poderiam ler as Escrituras. Neste volume, almejo cumprir o mesmo objetivo. Minha tentativa é resumi-la, mas cabe ao leitor testar esse resumo à luz das próprias Escrituras.

    Pressuponho que essas Escrituras pertencem de fato ao mesmo álbum. Boa parte dos leitores judeus do Novo Testamento questionaria essa convicção, e o leitor cristão pode ter uma suspeita desconfortável de que o leitor judeu está certo. Para a maioria dos leitores judeus, a ideia de que Jesus cumpriu as esperanças messiânicas de Israel parece implausível. Para o leitor cristão, o Jesus compassivo dos Evangelhos não parece ser a encarnação do Deus vingativo ao qual associam os primeiros três-quartos de suas Escrituras.

    Contudo, escritores dos documentos que vieram a se tornar o Novo Testamento não sentiriam qualquer tensão em reconhecer o Deus das Escrituras judaicas como o Pai de Jesus, e diriam que não há problema algum no relacionamento entre o conteúdo de fé do Primeiro Testamento e a fé do Novo Testamento, assim como não há problema algum no relacionamento entre, digamos, Mateus, 1Coríntios e Apocalipse — ou entre Êxodo, Cântico dos Cânticos e Joel. [ 14 ] O fato de a Igreja reconhecer essas duas coletâneas de Escrituras implica ao menos alguma plausibilidade prima facie quanto a tratá-las juntas, bem como pedir qual impressão temos depois de fecharmos o álbum. Ler o fim de uma história geralmente nos faz revisar a primeira parte e ver aspectos cuja importância não percebemos na primeira leitura. Por outro lado, a prática cristã comum de avançar os primeiros três-quartos do filme com o objetivo de chegar ao desenlace significa não entender nenhum dos Testamentos.

    Não pretendo demonstrar que a teologia bíblica é verdadeira, nem questionar se é verdadeira ou não. Meu objetivo é escrever uma teologia bíblica crítica no sentido de buscar evitar enquadrar as Escrituras em categorias e convicções da teologia cristã pós-bíblica. Assim, enquanto aceito a doutrina da Trindade como um conjunto de inferências das Escrituras, originadas da tradução de ideias bíblicas em categorias filosóficas europeias algum tempo depois do Novo Testamento — e ao mesmo tempo que cito, sem reservas, o Credo Niceno todos os domingos — não presumo que entendimentos posteriores de Deus como Trindade, ou entendimentos posteriores de propiciação, estão presentes nas Escrituras em si. Nesse sentido, não estou escrevendo uma teologia eclesiástica. [ 15 ]

    Mas a escolha entre ser histórico, crítico e acadêmico ou ser eclesiástico é, nesse sentido, [ 16 ] falsa. Aposto que seja possível até mesmo ao cristão fazer a pergunta crítica, histórica e acadêmica: Dada a existência das Escrituras, que entendimento da realidade emerge da Bíblia? Minha convicção de que seu entendimento da realidade é verdadeiro pode me levar a pular alguns aspectos bíblicos, a fim de fazer a Escritura dizer algo que posso aceitar, embora também possa me levar a buscar outros aspectos mais claramente do que o faria se não tivesse essa convicção em algum lugar da minha mente.

    Apresentei a teologia bíblica como um exercício logicamente viável. Ela é importante? A teologia em geral é importante? Sim, pois a maneira como pensamos é importante, já que somos seres pensantes. É importante porque o modo como pensamos tem impacto na forma como vivemos, embora o contrário também seja verdade. Também é importante porque tanto a forma como pensamos quanto o modo como vivemos estão inclinados a se moldar pela cultura em que estamos inseridos, e estudar a Escritura nos dá algo que questiona esse pensamento ou se opõe à nossa forma de pensar.

    Não há problema em nos achegarmos às Escrituras com nossos questionamentos e hipóteses, o que nos permite ver coisas que outras pessoas, com outros questionamentos e pressuposições, deixariam de ver. No entanto, se fizermos de nossas questões e hipóteses o critério para decidir se as Escrituras são relevantes ou corretas, acabaremos por absolutizar a nós mesmos, e nunca poderemos escapar das limitações de nossos questionamentos e hipóteses. Pelo menos como cristãos cabe a nós (não a Deus, nem ao mundo) testar nosso pensamento pelas Escrituras e não o contrário, expandindo, assim, os horizontes do nosso pensamento. Hipóteses e convicções que surgem do nosso contexto cultural geralmente fazem a verdade do evangelho parecer estúpida, e devemos pensar se é realmente a mensagem do evangelho que expressa o insight verdadeiro (1Co 1—2). Por outro lado, qualquer um que gosta de pensar a respeito de questões teológicas deve lembrar constantemente que o conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica (1Co 8:1).

    UM

    A

    PESSOA

    DE DEUS

    Alexander Pope declarou que o estudo adequado da humanidade é o próprio Homem, [ 17 ] o que parecia um empreendimento mais seguro do que tentar estudar Deus. Contudo, o estudo adequado dos eleitos de Deus é Deus. [ 18 ]

    A palavra Deus é tão familiar que pode soar inequívoca em seu significado e referência, mas no mundo antigo significava coisas diferentes para pessoas diferentes; além disso, no mundo moderno, não podemos presumir que aqueles que usam a palavra Deus se referem ao mesmo ser retratado pela Escritura. [ 19 ] A ideia é sugerida quando as pessoas perguntam, por exemplo, se muçulmanos adoram o mesmo Deus que os cristãos. Em conexão com o Primeiro Testamento, essa é uma das razões pelas quais devemos continuar com o uso do nome Yahweh em vez de substituí-lo por uma palavra comum, como Senhor ou Deus. Foi como Yahweh que Deus criou o cosmos; é soberano definitivo sobre tudo que há nos céus e na terra; envolve-se de modo revelador, persistente e autossacrificial com Israel de maneira amável mas também firme; está comprometido a levar Israel e o mundo ao seu destino de reconhecê-lo; encarnou-se em Jesus; tornou-se conhecido no Espírito Santo; e continuará a ser Deus, de eternidade a eternidade. [ 20 ]

    Podemos ver essa identidade emergindo em Salmos 96—100. Yahweh criou todo o cosmos, deve ser reconhecido por todas as nações e adorado por toda a criação. Ele estabeleceu sua soberania no mundo e pretende governar os povos com justiça. Juntamente com seu próprio povo, os demais povos têm razões para se regozijar no prospecto desse governo e na destruição dos inimigos de Deus. Suas ações em favor de Israel são expressões de comprometimento e fidelidade cuja importância abrange todo o mundo, sendo, desse modo, motivo de regozijo para todos. Ele é bom, e seu comprometimento e fidelidade permanecem para sempre. A deidade de Yahweh é tal que o termo deuses corresponde apenas a um título de cortesia quando aplicado a qualquer outro ser.

    Quando Deus revela o nome Yahweh a Moisés, afixa-o à frase ʾehyeh ʾăšer ʾehyeh (Êx 3:14), dando a entender a promessa de que será o Deus que intervém, [ 21 ] isto é, de que estará sempre presente e ativo de maneiras diferentes, em contextos diferentes e de quaisquer maneiras que esses contextos exigirem. Desse modo, ele é o Deus vivo. Esse fato constitui um ponto de partida para pensarmos sobre Deus em comparação com deuses e imagens sem vida (e.g., Jr 10:14; At 14:15), embora o contraste com imagens não nos deva acomodar frente à seriedade teológica da declaração das Escrituras de que Deus tem face, olhos, boca, orelhas, nariz, costas, mão, dedo e pés (para a confusão de todos os ‘espiritualizadores’). [ 22 ] Deus é uma pessoa real e está realmente vivo.

    Neste capítulo, exploraremos o caráter moral de Deus (seção 1.1) e sua natureza metafísica (seção 1.2). Em seguida, veremos as diferentes maneiras pelas quais ele se expressa no mundo, focalizando-nos no Espírito Santo (seção 1.3) e em sua mente ou mensagem, que passa a ser incorporada em Jesus (seção 1.4).

    1.1 O CARÁTER DE DEUS

    O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, generosidade, bondade, fidelidade, gentileza e moderação (Gl 5:22-23). Por tais qualidades serem fruto do Espírito, devemos esperar que sejam as qualidades do próprio Espírito; e, por serem qualidades do Espírito, devemos esperar que sejam as próprias qualidades de Deus. E de fato elas são. As Escrituras descrevem Deus como amoroso, compassivo, gracioso e perdoador, embora também o descrevam como um Deus capaz de manifestar ira e como alguém que não está inclinado a simplesmente ignorar nosso erro. Assim, Deus age em juízo, embora a centralidade maior, a característica principal encontrada em Deus, signifique que ele o faz de modo um tanto relutante. A combinação dos dois tipos de características também remete à necessidade de Deus de ser flexível sobre a forma como ele age em diferentes contextos.

    Amoroso, compassivo e gracioso

    Deus é amor. Essa declaração não pode ser invertida para amor é Deus. Deus é amor significa Deus é aquele que ama. [ 23 ] Seu amor encontra expressão e definição ao enviar seu Filho ao mundo para vivermos por meio dele e também, nessa mesma conexão, para lidar com nossas características negativas ao se tornar expiação pelas nossas falhas (1Jo 4:8-10). Assim, se o amor de Deus é manifesto em sua preocupação de nos vivificar, tal fato constitui o indício de que a criação original da vida foi um ato do amor divino. Assim, o desvio da humanidade fez com que o amor de Deus fosse além e limpasse nossa bagunça, a fim de participarmos de sua vida. Estávamos mortos em nossa maldade no sentido de estarmos fadados à morte, estado de existência extremamente desagradável em que nada vale a pena. Foi então que Deus nos deu vida com Jesus, por causa do grande amor com que nos amou (Ef 2:4-5).

    Entre os corolários do amor de Deus (em Ef 2:4-8), encontra-se, em primeiro lugar, o ato de amor em enviar Jesus como expressão de Deus sendo rico em misericórdia em relação às pessoas que, de outra forma, experimentariam a ira divina — e que, de fato, já a experimentam. Na Septuaginta, misericórdia (eleos) é o equivalente da palavra distintiva no Primeiro Testamento para amor leal ou compromisso (ḥesed); em essência, a palavra característica do Novo Testamento para amor (agapē) equivale à mesma do Primeiro Testamento. Em misericórdia e com tamanho amor, Deus toma a iniciativa segundo a qual não lhe é mais necessário continuar a mostrar ira às pessoas.

    Um segundo corolário do amor de Deus é que Deus é rico em graça. Por graça vocês foram resgatados dessa ira, ressuscitados com Jesus, a fim de que [Deus] demonstrasse as riquezas extraordinárias de sua graça. Em essência, graça (charis) seguramente é outro equivalente à palavra compromisso no Primeiro Testamento, ainda que, em termos linguísticos mais diretos, o Primeiro Testamento tenha sua própria palavra para graça (ḥēn). O uso que Paulo faz de charis combina ideias hebraicas de ḥēn e ḥesed, visto que ḥēn dá a entender algo mais ocasional demonstrado por um superior a um inferior, enquanto ḥesed dá a entender um compromisso contínuo. [ 24 ]

    Um terceiro corolário é a ação amorosa de Deus como expressão de sua bondade generosa (chrēstotēs) — palavra usada na Septuaginta como referência à qualidade da bondade em Deus (e.g., Sl 25:7; 31:19 [tm 31:20]; 34:8 [tm 9]). Felizmente para nós, Deus é generoso em vez de calculista (Mt 20:1-16), como um proprietário de terra que se comporta como benfeitor estranho: inocente, profuso e abundante. [ 25 ]

    Palavras em Efésios que descrevem o funcionamento do amor encaixam-se na primeira grande declaração sistemática de quem Deus é, cuja origem vem dos próprios lábios de Deus, como um ato de garantia e desafio após o envolvimento de Israel em infidelidade grave para com ele:

    Yahweh, Deus compassivo e gracioso, longânimo e grande em comprometimento e firmeza, que guarda o compromisso com milhares, carregando a transgressão, a desobediência e as falhas. No entanto, não deixa de punir o culpado, atento à desobediência dos pais nos filhos e nos netos, até a terceira e quarta geração (Êx 34:6-7).

    A declaração não traz nada muito novo: tais qualidades brilham nos céus e na terra. [ 26 ] Contudo, sua importância é refletida na forma como suas expressões reaparecem em outras passagens. [ 27 ] Elas recorrem mais sistematicamente nos lábios de Moisés, dirigindo-se a Yahweh em um contexto subsequente e semelhante em relação à rebelião do povo (Nm 14:18). Também reaparecem nas orações de Israel, com ênfase nos aspectos positivos (e.g., Ne 9:17; Sl 86:15; 103:8; 145:8; cf. ainda Jl 2:13 e, com ironia, em Jn 4:2), e então em um giro temível, com ênfase nos pontos negativos (Na 1:2-3, com mais ironia). O lado positivo aparece mais uma vez na descrição que João faz de Jesus como aquele que é cheio de graça e verdade (Jo 1:17). Em outras palavras, Jesus era a própria personificação de Deus, conforme a autodescrição divina no Sinai. Em essência, ambos os lados aparecem quando Paulo declara que a ação de Deus de corrigir todas as coisas é revelada no evangelho, e que essa revelação acontece no contexto em que sua ira está sendo revelada (Rm 1:17-18).

    A declaração de que o amor de Deus significa seu desejo de remover nossa impureza (1Jo 4:8-10) também corresponde àquela grande e primeira descrição sistemática de Deus no Sinai, em que uma expressão crucial da graça e da verdade de Yahweh é carregar a transgressão. Desse modo, o próprio Deus expia os pecados do seu povo […]. Não é possível ao homem fazer expiação; só Deus é capaz de expiar. Deus o faz ao transmutar culpa humana em sofrimento divino. [ 28 ] Segundo expresso em um hino, o amor de Deus é o amor que não abrirá mão [de Israel]; 1Coríntios 13 e Cânticos 8:6 ilustram o envolvimento de Yahweh na história de Israel. [ 29 ]

    Carregando a transgressão

    Graça é a própria essência do ser de Deus […]. Este é, claro, o segredo do perdão dos pecados […]. Apesar de toda santidade, justiça e sabedoria de Deus, [seu perdão] sai ao nosso encontro […]. Afinal, o próprio Deus está no perdão. Ele revela sua essência nessa corrente constante de graça. Não existe um ser divino maior do que o Deus gracioso; não existe santidade maior do que aquela que ele demonstra ao usar de misericórdia e perdoar pecados. Nessa ação, Deus nos interpõe ninguém menos do que a si próprio. [ 30 ]

    Há um custo para Yahweh ao se envolver conosco. Pagar o preço remonta ao Início. Quando a perversidade humana alcançou seu auge, Yahweh arrependeu-se de ter feito o ser humano (Gn 6:6-7). Enquanto a palavra para arrependeu-se (nāḥam) denota mudança com respeito a alguma intenção — o que não sugere, necessariamente, conotações emocionais — a palavra hebraica normalmente implica emoções e, quando aplicada a algo que já aconteceu, não significa apenas mudar de ideia. A expressão denota a tristeza de Deus sobre a criação. Para que não haja dúvidas, Gênesis prossegue explicitando a ideia: [ter feito o homem] cortou-lhe o coração (Gn 6:6, NVI). Um substantivo correlato é usado para a dor da maternidade de Eva e do trabalho árduo de Adão (Gn 3:16-17).

    João descreve Jesus como alguém cheio de graça e verdade e, em seguida, apresenta um relato de João Batista apontando para Jesus como cordeiro de Deus que carrega o pecado do mundo (Jo 1:29). Geralmente, Jesus é retratado na passagem como aquele que tira o pecado do mundo, o que ele realmente faz, mas o verbo airō dá a entender mais comumente o fato de Jesus pegar ou carregar o pecado do mundo, ideia estabelecida no livro de Êxodo. [ 31 ] No Sinai, é a transgressão de Israel em particular que Yahweh sugere implicitamente carregar, mas a forma como as qualidades de Yahweh estão de fato brilhando nos céus e na terra denota que esse carregar se aplica ao mundo como um todo. João Batista torna essa ideia explícita. A palavra que ele usa é kosmos, de modo que o seu comentário sobre carregar se aplica não tão diretamente ao pecado individual, mas ao pecado que caracteriza o mundo como entidade, o mundo no qual Jesus veio — o mundo que foi feito por ele, mas que não o reconheceu (Jo 1:9-10). O mundo que Deus quase destruiu, mas poupou.

    A expressão cordeiro de Deus só aparece aqui, e não há cordeiro que carrega ou tira o pecado no Primeiro Testamento. Contudo, há passagens antes e depois de Êxodo 34 com as quais a frase ressoa. [ 32 ] Em Êxodo 12, Deus prescreve como Israel deve passar o sangue de um cordeiro nas portas de uma família a fim de protegê-la do Destruidor, agindo em juízo sobre o Egito, por sua rebelião contra Deus. No devido tempo, a morte de Jesus pelo pecado do mundo virá na ocasião em que a comunidade judaica reproduz o acontecimento, e Paulo declarará que Jesus, nosso cordeiro pascal, foi sacrificado por nós (1Co 5:7). Do outro lado de Êxodo 34, Yahweh estabelece outro aspecto de como a graça e a verdade de Deus funcionarão em conexão com carregar e tirar o pecado. No Dia da Expiação, é feita a provisão pela qual um bode deve carregar ou tirar atos de transgressão do povo para um lugar isolado (Lv 16:22; o verbo e o substantivo são os mesmos encontrados em Êx 34). Mais adiante, no Primeiro Testamento, seguindo uma descrição da glória personificada e revelada na vitória de Yahweh sobre a Babilônia, há também a descrição de uma glória personificada e revelada na perseguição e no martírio do servo de Yahweh, que carrega as fraquezas e as falhas das pessoas (Is 52:10; 53:1,4,12). De fato, a glória de Deus [é] o fundamento da misericórdia. [ 33 ]

    Desse modo, enquanto a cruciformidade de Deus encontra expressão física na cruz, [ 34 ] foi o Deus cruciforme que se relacionou com Israel e o mundo no decorrer dos séculos e que continua a fazê-lo. A cruz atesta a respeito de um Deus que não se assemelha nem age como um Deus respeitável. Os caminhos de Deus simplesmente não são os nossos caminhos. [ 35 ] Foi sempre assim, na história mundial e na história de Israel. Porque Jesus Cristo subsistia na forma desse Deus, envolvido com Israel e com o mundo, e era igual a ele — ou seja, não a despeito de ser igual a Deus, mas precisamente por causa disso — foi que esvaziou-se (Fp 2:6,7). [ 36 ] A encarnação do Logos divino não é nem uma renúncia da divindade, nem seu encobrimento, mas um tipo de revelação total que só pôde acontecer porque o Filho de Deus, existindo em forma de Deus, também assume a forma de servo. [ 37 ]

    Que se ira e não inocenta

    De volta ao Início, Deus carregou a transgressão ao vetar a possibilidade de destruir o mundo inteiro, ao isentar Noé e sua família da destruição e ao começar tudo outra vez. A isenção aconteceu porque Noé era um homem justo. Isso fazia dele uma exceção à transgressão geral do mundo? A frase Noé achou graça aos olhos de Yahweh (Gn 6:8) aponta para outra direção. Se a retidão de Noé levou Deus a isentá-lo, então não foi graça que Noé achou; ele mereceu sua isenção. Assim, um dos meus primeiros mentores, Alec Motyer, gostava de falar em termos de graça indo ao encontro de Noé. [ 38 ] Esse entendimento ganha suporte na forma como a referência à retidão de Noé segue a referência à graça de Deus em vez de precedê-la (Gn 6:9). Foi o fato de Deus ter alcançado Noé que fez dele um homem justo.

    De qualquer maneira, a sequência do dilúvio afirma que Deus carrega a transgressão do mundo e opera com base na graça. Quando Deus aceita um sacrifício de agradecimento oferecido por Noé, declara que nunca mais amaldiçoará a terra, porque a inclinação da mente humana é má desde a mocidade (Gn 8:21). A ilogicidade magnífica dessa declaração leva alguns tradutores a mudar porque para embora. Contudo, Gênesis emprega a palavra comum hebraica para porque () e estabelece um ponto teológico profundo. A perversidade incorrigível da humanidade significa que Deus terá de carregar a transgressão do homem se quiser persistir com seu projeto. A graça terá de ser a base na qual ele se relaciona com o mundo. Deus sela a ideia com a primeira aliança da Escritura (Gn 9:8-17), uma aliança de graça. Cada arco-íris que brilha após a chuva relembra Deus e a humanidade do compromisso divino gracioso.

    Entretanto, Deus praticamente destruiu o mundo. Se Deus é amor, seria o caso de o amor descrever a forma como Deus lida com o mundo temporal e contingente? [ 39 ] Seria o caso de estas duas palavras, ‘graça’ e ‘amor’, resumirem e caracterizarem da forma mais clara toda a teologia [de Paulo]? [ 40 ] Seria então o juízo uma expressão paradoxal do amor? Seria a ira do cordeiro (o cordeiro que se deixou ser morto) uma expressão de amor, uma ira cujo desígnio é sempre levar pessoas ao arrependimento (cf. Ap 3:19), de modo que seu objetivo não é a destruição? [ 41 ] A ira comumente tem esse objetivo, mas pode falhar em seu propósito; nem todos se arrependem (Ap 9:20-21; 16:9,11). No Apocalipse, referências à ira não dão a entender algo sempre designado a levar ao arrependimento, e a recusa em se arrepender expõe alguém a mais ira (Ap 6:16-17; 11:18; 14:10,19; 15:1,7; 16:1,19; 18:3; 19:5).

    Os capítulos de abertura de Romanos, carta em que Paulo expõe seu evangelho, dão lugar de proeminência à ira. De fato, Paulo se refere à ira e ao amor quase na mesma proporção em Romanos. Paulo fala com seriedade sobre a ira de Deus e sobre como era real para ele. [ 42 ] Ainda assim, podemos dizer que, mesmo quando Paulo usa alusões bíblicas para destacar a mensagem do juízo de Deus, os textos em si sussurram o contratema da misericórdia de Deus, o qual se encaixa no testemunho original da Escritura e no propósito que o argumento de Paulo, em última análise, impulsiona. A ideia se aplica às citações do apóstolo de Isaías 52, Salmos 51 e Salmos 143. Dessa forma, existe um movimento dialético de juízo e graça que estrutura a apresentação do evangelho pregado por Paulo, que na verdade é uma recapitulação do paradigma juízo/graça reforçado por todo o testemunho da Escritura. [ 43 ]

    Não é, porém, um movimento dialético, dando a entender que Deus tem duas almas no mesmo peito. [ 44 ] (Das quais uma encontra expressão no Primeiro Testamento e a outra no Novo?) O equilíbrio entre amor e castigo em Êxodo 34:6-7 mostra que o amor tem prioridade. Um dos aspectos mais importantes da história do Sinai como um todo (especialmente Êx 32—34) é que ela oferece uma exposição narrativa extensa sobre a forma como Deus deve viver com a tensão entre misericórdia e castigo. [ 45 ]

    Na verdade, poucas palavras sofrem mais inflação do que a palavra amor. [ 46 ] De fato, quando alguém fala de Deus e amor, está falando de um mistério. [ 47 ] Em comparação com a definição tentadora de que ‘Deus é amor’, [ 48 ] a fórmula Deus é… em essência, em sua realidade, amor santo, livre e soberano é mais aberta em suas possíveis implicações. [ 49 ] Os Evangelhos Sinóticos não mencionam o amor de Deus. [ 50 ] Outros escritos do Novo Testamento afirmam mais frequentemente que Deus é fiel (1Co 1:9; 10:13; 2Co 1:18) e Deus é um (Rm 3:30; Gl 3:20; Tg 2:19) do que Deus é amor, e também declaram que o nosso Deus é fogo consumidor (Hb 12:29).

    Juízo indesejado

    A ideia é bem transmitida pela declaração de que não é do [agrado de Deus] afligir ou entristecer pessoas (Lm 3:33). Mais literalmente, ele não aflige de coração as pessoas, nem as entristece de seu interior. Não é que a ira seja de alguma forma uma expressão de amor; não obstante o amor esteja de fato no coração de Deus, em seu ser também está presente a ira. Ela permanece em algum lugar periférico do coração de Deus, porém pode ser convocada quando necessária. Ben Kingsley, tendo feito o papel de Gandhi e em seguida de um gângster brutal e profano em Sexy Beast, foi questionado sobre como conseguiu desempenhar dois papéis tão diferentes. O ator respondeu que teve de ir fundo em outros aspectos de sua pessoa a fim de localizar características próprias que poderiam encontrar expressão nesse segundo papel. Yahweh faz o mesmo a fim de ser irascível e violento.

    Tais características não lhe são estranhas, nem representam seu lado obscuro, no sentido de lhe serem inaceitáveis; contudo, elas não representam o que Deus é em essência. Juízo é sua obra estranha; mesmo, porém, sendo-lhe incomum, o juízo é algo do qual ele é capaz (Is 28:21). A ira não é a forma preferida de Deus para se relacionar com o mundo. Calvino está ciente de que é apenas capaz de gaguejar ao falar do amor de Deus e de sua ira. [ 51 ] Deus pode relacionar-se com o mundo em ira, porém prefere evitar agir assim; ele prefere reparar relacionamentos. A história mundial e a história de Israel como um todo evidenciam sua autocontenção; ambas personificam seu desejo de viver em harmonia ao invés de expressar ira. Mas Deus é capaz de ficar irado.

    Lendo o fruto do Espírito e as obras da natureza inferior (Gl 5:19-24), podemos ter a impressão, a partir dessas listas, de que o ciúme e a ira são inerentemente pecaminosos; ambos os Testamentos, porém, deixam claro que não é bem assim. Eles indicam que Deus e seres humanos são passíveis de ciúme e ira ocasionalmente. Emoções não são divididas em boas e más; há tempo para reter porção desse fruto do Espírito e tempo para manifestar ciúme e ira. Yahweh tem toda a gama de emoções de uma pessoa e pode evocá-las quando necessário. Deus não é apenas bonzinho. Um Deus que pode ser compreendido e conceitualizado não é Deus. [ 52 ] "Yahweh está além de quaisquer representações, exceto aquelas retratadas no melhor do Tanakh. As próprias complexidades de Yahweh são infinitas, labirínticas e permanentemente inexplicáveis […]. Astuto, inquisitivo, ciumento e turbulento, Yahweh é tão pessoal quanto um deus pode ser. [ 53 ] O oposto de amor […] não é ira, mas indiferença, [ 54 ] e o axioma da apatia, aplicado amplamente à deidade na metafísica antiga, não se aplica ao Deus das Escrituras. [ 55 ] Yahweh traduz em ação" sua ira e rejeição (e sua eleição). [ 56 ]

    Yahweh o faz principalmente ao se esconder: Tu te iraste conosco e escondeste o teu rosto de nós (Is 64:5,7 [tm 4,6]). [ 57 ] Para esse Deus, juízo não é apenas uma possibilidade, mas uma necessidade: Graça que perdoa tudo seria graça barata e não um sinal de amor, mas de indiferença e apatia. O verdadeiro amor não conhece a categoria de infidelidade permissível, mas apenas de fidelidade ou traição e, consequentemente, de ira, juízo — e perdão. [ 58 ]

    O real conflito presente na antítese entre ira e graça tem de ser suportado. Ao fazer teologia, deparamos constantemente com a tentação de evitar o tema da ira divina a fim de obter uma imagem harmoniosa de Deus. [ 59 ] A forma como Deus pode ser alternativamente amoroso e irascível é um aspecto de como o caráter de alguém se manifesta de maneiras diferentes, dependendo do contexto.

    A diferença não sugere inconsistência. A questão é que contextos diferentes suscitam a expressão de diferentes facetas de caráter. Êxodo 1—18 descreve como Yahweh se tornou um guerreiro quando os egípcios oprimiram Israel. Êxodo 32—34 relata como Yahweh optou por misericórdia em vez de justiça quando Israel ignorou suas expectativas. Isaías conta como Yahweh se envolveu em questões internacionais quando o Império Assírio se levantou. Isaías 40—55 descreve como Yahweh prometeu agir como criador quando Israel precisou de tal ação criativa. Os Evangelhos narram como Deus incorporou misericórdia e criatividade em Jesus.

    Flexível

    Desse modo, diferentes contextos extraem diferentes facetas de quem Deus é e do que ele pode ser. Deus é constante, consistente, firme e confiável. Consistentemente, Yahweh mostra integridade ao íntegro, mas resiste a pessoas cujo caminho é desonesto (Sl 18:25 [tm 26]). Sua consistência, porém, não significa que Deus é rígido, o que seria quase o mesmo que afirmar que ele está morto. Nem significa que ele é inflexível. Reis que não estão livres para mudar de ideia são estúpidos (Dn 6).

    O Primeiro Testamento geralmente torna explícito que Deus, no curto prazo, pode mudar de ideia. Dois verbos podem sugerir tal ideia. Um que já notamos, nāḥam, sugere emoção e, em outros contextos, pode significar tristeza ou encontrar consolo. O outro, šûb, sugere ação; significa literalmente virar. Os dois verbos podem ser traduzidos por arrepender-se, conotando uma impressão enganosa em ambas as conexões. No que diz respeito à mudança de ideia, podemos usar as palavras em português desistir e deixar para os dois verbos. Jonas e Jeremias fornecem exemplos esclarecedores de ambas. Quando o rei de Nínive decreta que as pessoas devem deixar o mau caminho, espera que Deus deixe ou desista da intenção de destruir a cidade. Os ninivitas de fato deixam a perversidade, e Deus, por sua vez, deixa ou desiste da ação que pretendia (Jn 3:8-10). Em Jeremias 18:1-12, Deus estabelece o princípio envolvido, o qual também se aplica a Judá. Se ele anunciar a intenção de destruir uma nação e ela deixar os maus caminhos, ele desistirá; se, porém, anunciar a intenção de abençoá-la e a nação fizer o que é mau, ele também desistirá dessa intenção. Por isso, é possível a Moisés insistir com Yahweh para que deixe sua ira e desista da tribulação que intenciona trazer ao povo, mesmo que Israel a mereça. E é precisamente o que Yahweh faz (Êx 32:12-14; cf. Nm 14:11-20). Amós age da mesma forma, embora a sequência em Amós 7:1-9; 8:1-2 sugira um tempo em que essa possibilidade desaparece.

    Evidentemente, Jonas, Jeremias, Moisés e Amós não estão preocupados com a possibilidade de que Yahweh, ao mudar de ideia, comprometa sua soberania, sua sabedoria ou seu controle dos acontecimentos. Eles se impressionam mais com uma percepção positiva de Yahweh, desaprovada por Jonas: o problema de Yahweh é que ele está sempre inclinado a ceder à graça, à compaixão e ao amor (Jn 4:2). O fato de Yahweh ser flexível dessa maneira é uma boa notícia. Profetas sabem que o propósito final de Deus não corre perigo, mas é impulsionado por essa flexibilidade. Deus não é inconsistente; antes, ele é fiel e confiável — amoroso, compassivo e gracioso. A vida de Deus não muda; o caráter de Deus não muda; a verdade de Deus não muda; os caminhos de Deus não mudam; o propósito de Deus não muda; e o Filho de Deus não muda. [ 60 ] Todavia, precisamente a fim de manter essa integridade consistente, em algumas ocasiões Deus diz uma coisa e faz outra, como resultado da resposta que suas declarações recebem.

    Às vezes, então, Deus simplesmente diz o que vai acontecer e a coisa acontece; às vezes, Deus age em interação com as decisões humanas; às vezes, a sequência é quebrada, sem qualquer indicação de que alguém se arrependeu. Yahweh declara que Nabucodonosor destruirá Tiro, mas, posteriormente, observa que Nabucodonosor foi incapaz de fazê-lo e, por isso, diz-lhe que pode ficar com o Egito (Ez 26—28; 29:17-20). Houve ocasiões em que Yahweh poderia usar Assíria, Babilônia e Pérsia como agentes para trazer destruição ou libertação a Judá, mas, em Isaías 63:1-6, lamenta o fato de não haver, na época, ninguém disponível, de modo que ele é levado a agir por si só. Além do mais, no período a que o livro de Isaías pertence, não houve ação subsequente que pudesse contar como a implementação desse empreendimento. Houve até ocasiões em que Deus lutou com Jacó e Jacó venceu (Gn 32:25-31) e outros em que Deus tentou matar Moisés, mas não conseguiu (Êx 4:24).

    Não é de surpreender, portanto, que a flexibilidade sugerida por alguns dos ditos de Jesus como predições que não aconteceram corresponda ao retrato de Deus em sua consistência com flexibilidade, encontrada no Primeiro Testamento.

    1.2 UM ÚNICO DEUS

    A reflexão acerca da flexibilidade de Deus implica em uma transição da apreciação de seu caráter moral para a consideração de seus atributos metafísicos. Enquanto amor e integridade exigem flexibilidade, a flexibilidade parece comprometer qualidades metafísicas que consideramos estar associadas à deidade, tais como a soberania de Deus e sua natureza temporal-transcendental. Qual é a natureza da existência de Deus? Quais são suas propriedades? Que tipo de ser Deus é? Iniciamos com a explicação de que Deus é um, embora as Escrituras deixem claro que a unidade de Deus é modulada pelo fato de Jesus (também) ser Senhor. Deus é nosso Pai celestial, o que dá a entender comprometimento e transcendência. Deus é soberano no mundo; as Escrituras sugerem diversas nuances nesse fato em conexão com a soberania menor exercida pelo ser humano, pelo mundo criado e por outros seres sobrenaturais. Deus é onitemporal e capaz de saber qualquer coisa em relação ao passado, ao presente e ao futuro a partir de uma perspectiva humana.

    Yahweh, nosso Deus, Yahweh é um

    Que a questão do ‘monoteísmo’ representa algo central para a teologia bíblica é um ponto que mal necessita de elaboração. [ 61 ] Na verdade, a questão deve ser elaborada, sim. O Shemá (Dt 6:4) não declara que existe apenas um Deus, mas que Yahweh, nosso Deus, Yahweh é um. [ 62 ] Para o Primeiro Testamento, a questão-chave não é a existência de outros deuses ou a unidade de Deus, mas quem Deus é. Para o judaísmo, a afirmação-chave é que Yahweh é o único Deus verdadeiro, o criador de todo o mundo e o juiz de todos. [ 63 ] Para o Novo Testamento, o primordial nessa conexão diz respeito a como Jesus, sendo Senhor, encaixa-se naquilo que poderíamos chamar de mono-Iavismo. Ambos os Testamentos presumem que apenas um ser pode ser chamado de Deus, mas, ainda assim, o fato de a palavra monoteísmo ter sido cunhada apenas no século XVII é relevante. [ 64 ] Nas Escrituras, o ponto de partida para o entendimento do ser de Deus não é uma análise em termos de monoteísmo com suas definições concomitantes em termos de onipotência, onisciência e onipresença. É o retrato bíblico de Yahweh como o único Deus e como o Deus que tem um nome. [ 65 ] Yahweh não é uma ideia, mas uma pessoa. [ 66 ]

    Yahweh reage com indignação quando sua deidade exclusiva cai em descrédito ou quando seu povo serve a outras supostas divindades (Êx 20:5; 34:14). Ele se autodeclara ciumento, inflamado, exigente (qannāʾ; VSJP). Deus tem o sentimento de alguém cujo marido ou cuja esposa tem tido um caso. O adjetivo também cobre outros tipos de sentimentos fortes. Yahweh sente indignação ardente pelo estado calamitoso de Jerusalém (Zc 1:14; 8:2), e a indignação ardente de Yahweh dos Exércitos garantirá o cumprimento daquilo que ele declara fazer (e.g., Is 9:7 [tm 6]). É possível, portanto, apelar à indignação de Yahweh quando a libertação tarda a chegar (Is 63:15). A indignação ardente pelo templo consumiu o salmista que orou o Salmo 69:9 (tm 10) e passou a caracterizar Jesus (Jo 2:17). Sim, Deus é uma pessoa, com as emoções fortes que caracterizam uma pessoa. Nem Deus nem Jesus são brandos e gentis, calmos e teóricos. Forte emoção é um ponto de partida melhor do que apatheia para pensarmos a respeito de Deus. [ 67 ]

    Yahweh é, de fato, o único Deus. Mesmo em suas declarações mais amplas acerca da natureza de Jesus, o Novo Testamento trabalha dentro do paradigma de que há um único Deus. Jesus é, então, a expressão do único Deus. [ 68 ] Deus possui um único nome, embora tenha diversas faces. [ 69 ]

    O único Deus e o único Senhor

    Paulo começa muitas de suas cartas com a saudação Graça e paz de Deus, o Pai, e do nosso Senhor Jesus, o Ungido (1Co 1:3; 2Co 1:2; Gl 1:3; Ef 1:2; Fp 1:2; 2Ts 1:2; Fm 1:3; redações semelhantes aparecem em Rm 1:7; 1Tm 1:2; 2Tm 1:2; Tt 1:4; 2Pe 1:2; 2Jo 3). Paulo expande essa colocação ao declarar que para nósum só Deus, o Pai (de quem todas as coisas existem e para quem existimos) e um único Senhor, Jesus, o Ungido (através de quem todas as coisas existem e para quem existimos) (1Co 8:6). O para nós com o qual essa declaração começa não dá a entender que sua afirmação a respeito de Jesus e do Pai constitui mera opinião pessoal, tida por pessoas que creem em Jesus. Trata-se de um fato objetivo, o qual nós somos privilegiados em reconhecer e cuja importância é chave para a fé cristã, distinguindo nós que reconhecemos a verdade sobre Deus e Jesus de pessoas que não a reconhecem.

    O Shemá permanece no fundo dessa declaração. Ele leva o nome de seu imperativo de abertura, Ouve…, conduzindo a uma confissão-chave: … Yahweh, nosso Deus, Yahweh [é] um. A Septuaginta traduz: o Senhor nosso Deus [é] um Senhor ou o Senhor nosso Deus — o Senhor [é] um; como no caso do hebraico, é difícil ter certeza de onde colocar um é. De modo elegante, Paulo, então, acrescenta Deus com o Pai e Senhor com Jesus, o Ungido, dividindo o Shemá entre o único Deus e o único Senhor". [ 70 ] Desse modo, o apóstolo "redefine [o Shemá] em termos cristológicos, produzindo o que podemos apenas chamar de um tipo de monoteísmo cristológico. [ 71 ] Paulo não crê em dois deuses. Ele inclui Jesus na identidade única do único Deus, afirmada no Shemá e identifica Jesus como ‘Senhor’, a quem o Shemá afirma ser um, de modo que a identidade única de Deus consiste no único Deus, o Pai, e no único Senhor. O apóstolo reescreve o Shemá para incluir tanto Deus como Jesus na identidade divina única. [ 72 ] Assim, algo decisivo acontece quando a palavra grega para Senhor", o equivalente de Yahweh na Septuaginta, é usada com referência a Jesus. [ 73 ]

    Essas considerações remetem a um aspecto central da natureza distintiva de Deus conforme as Escrituras o descrevem. No Novo Testamento, cristologia funciona no contexto de teologia. O significado divino de Cristo é, na verdade, uma subcategoria da doutrina de Deus. A identidade divina de Jesus Cristo é firmemente mantida no paradigma axiomático cristão (e judaico) de que Deus é um. Paulo a coloca em termos de Deus em Jesus (ele é a revelação do amor e da fidelidade de Deus); Mateus, em termos de Jesus como Deus conosco; João, em termos de Jesus ser igual a Deus (Jesus é aquele que revela Deus); Apocalipse, em termos de Jesus compartilhando o trono e a adoração de Deus. [ 74 ] Dessa maneira, é possível declarar que o Novo Testamento simplesmente reafirma o entendimento de Deus que emerge do Primeiro Testamento, não revelando nada novo sobre Deus, redefinindo-o, porém, drasticamente. [ 75 ] O evangelho exposto no Novo Testamento expressa novamente afirmações do Primeiro Testamento acerca de Deus; outras versões do evangelho (inclusive versões judaicas), não. [ 76 ]

    Fluidez

    O Novo Testamento parece não se preocupar com a dificuldade lógica envolvida na convicção paradoxal de que Deus é um e que também Jesus é divino. Inevitavelmente, essa convicção surge da narrativa bíblica, sendo, por isso, prudente começar da história bíblica e, portanto, fazer da unidade das três Pessoas divinas o problema em vez de começar do postulado filosófico de unidade e, então, considerar problemática a forma como as Escrituras comunicam sua mensagem. [ 77 ]

    Enquanto o comprometimento com o único Deus pode coexistir com um reconhecimento e uma veneração de anjos e espíritos em ambos os Testamentos e no judaísmo, [ 78 ] esse reconhecimento não sugere flexibilização na distinção entre Deus e tais entidades; além disso, a forma como o Novo Testamento fala de Jesus corresponde mais ao pensamento judaico sobre Deus do que ao modo como judeus abordam anjos e espíritos. Colocar Jesus na posição […] de um servo angelical de Deus de alto nível não seria o mesmo que dar um passo a mais em integrá-lo a Deus, porque a distinção absoluta entre Deus e todas as outras realidades teria de ser transposta. [ 79 ]

    O Novo Testamento foi auxiliado pelo fato de a articulação do pensamento cristão a respeito de Jesus ter ocorrido no contexto do pensamento judaico, segundo o qual existem dois poderes no céu — não um entendimento dualístico de poder bom e poder mau, mas a realidade de expressões semi-independentes de Deus. [ 80 ] O próprio Primeiro Testamento combina afirmações fortes acerca da identidade exclusiva de Yahweh com outras declarações — como a descrição da sabedoria de Deus como ser pessoal, distinguível de Deus (Pv 8:22-31) — que haviam sido encontradas em obras judaicas posteriores, como no Livro da Sabedoria e em Eclesiástico, e depois retomadas por Paulo (e.g., Cl 1—2).

    Assim, muitos pensadores judaicos pareciam sentir-se confortáveis em entender a Sabedoria de Deus como uma quase-pessoa, semi-independente de Deus, e Paulo parecia pensar nesses termos antes de Jesus confrontá-lo. Se Paulo o entendia dessa forma ou não, dado o fato de que Jesus é claramente uma pessoa distinta de Deus, a figura da Sabedoria de Deus deu ao apóstolo uma forma de pensar sobre o significado de Jesus como uma pessoa distinta que, contudo, é, ao mesmo tempo, essencialmente uma em natureza com Deus e diferente de qualquer outro ser humano. [ 81 ] Deus possuía sua sabedoria desde o princípio e usou-a para criar o mundo; Jesus é a personificação suprema da sabedoria de Deus, especialmente, embora, de forma paradoxal, ao ser executado (1Co 1:18-31). O pensamento judaico também podia conceber o espírito de Deus ou sua palavra como semi-independentes de Deus, e a forma discursiva do Novo Testamento corrobora mais com esse pensamento do que com o reconhecimento de seres sobrenaturais subordinados, como anjos e espíritos.

    Tal fluidez no entendimento bíblico judaico a respeito de Deus significa que a doutrina da Trindade não precisa, por si só, criar problemas para um judeu. A razão pela qual um judeu pode não ser capaz de tornar-se cristão é que o judaísmo considera Jesus alguém cuja reivindicação messiânica é falsa. [ 82 ] Para o judeu, Jesus não cumpriu as promessas de Yahweh relacionadas ao Ungido (uma das razões pelas quais Jesus precisa retornar).

    Em contrapartida, o reconhecimento cristão de que Deus é Pai, Filho e Espírito emana da história de Jesus como Filho de Deus, na medida em que ela vem pela mediação do Espírito na congregação, e não, por exemplo, tem origem em um pensamento teórico ou na tentativa de resolver um problema. [ 83 ] Cristãos acreditam na complicada, misteriosa e aparentemente ilógica doutrina da Trindade porque, a despeito das desvantagens, é a melhor maneira de compreenderem o relato sobre Deus nas Escrituras.

    Pai…

    Na adaptação paulina do Shemá, a descrição de Deus como Pai denota o relacionamento de Deus com seu povo, e a versão de Lucas

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