A filha de Sião: A devoção mariana na Igreja
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A filha de Sião - Joseph Ratzinger
PREFÁCIO
O pequeno livro que aqui apresento ao público é a reprodução de três conferências feitas por mim na primavera de 1975 em Puchberg, próximo a Linz. Após anos de declínio do culto mariano na Igreja, houve um desejo de constatar, da maneira mais sóbria possível, o que havia efetivamente permanecido da fé mariana, e o que deveria continuar a permanecer. Tratava-se, então, de uma introdução que não tinha a necessidade de um detalhamento completo, mas que tinha de mostrar corretamente a perspectiva a partir da qual tanto o elemento particular quanto o todo pudessem ser compreendidos de forma adequada.
Com isso ficam marcados, ao mesmo tempo, a intenção e os limites desta publicação. Durante o processo de revisão procurei conscientemente não mudar o caráter do conjunto; não se quer, aqui, assumir o lugar de um tratado, mas simplesmente procurar abrir os olhos para a estruturação do significado, de modo que se possibilite, também, o acesso a obras de maior amplitude. Para que esses limites de minha modesta pesquisa não sejam confundidos, procurei preservar, também, o caráter descontraído e improvisado, típico da linguagem de conferência. Também não me pareceu enquadrar-se naquilo a que o texto se propunha algo de efetivamente completo – como, por exemplo, um exame pormenorizado do testemunho oferecido por Mateus acerca do nascimento virginal. Espero que esse pequeno livro possa, à sua maneira, contribuir para que aquilo que há de imperecível na fé mariana da Igreja seja novamente compreendido e assumido.
Por fim, não poderia deixar de agradecer ao meu caríssimo amigo Hans Urs von Balthasar pelo fato de ter arrancado de mim esse manuscrito e de, pacientemente, tê-lo revisto para fins de publicação, após minha nomeação como arcebispo de Munique e Freising, tornada pública na festa do Anúncio do Senhor a Maria, que me cobriu de novas atribuições.
Pentling, por ocasião da celebração da Ascensão de Cristo, 1977.
Joseph Ratzinger
Capítulo 1
A MARIOLOGIA NO CONTEXTO BÍBLICO
Diante da fé e da piedade mariana da Igreja, o atento observador da vida eclesial de hoje irá se deparar com uma discrepância particular. Por um lado, nasce a impressão de que a mariologia seria um subproduto da cristologia, surgido a partir de fundamentos irracionais; mais até: parece ser uma reminiscência de antiquíssimos modelos da história das religiões, que retornam incessantemente, e que se fazem valer também no cristianismo, ainda que não possuam, em um olhar mais próximo, nem fundamentação histórica, nem teológica – histórica, porque na vida de Jesus Maria desempenhou claramente um único papel, que teria sido ressaltado de forma equivocada; e teológica, porque na estrutura do Credo neo-testamentário a Virgem-Mãe não possuía lugar algum. Ao contrário, não há nenhum constrangimento em se apontar a origem extracristã do elemento mariano: ela estaria nos mitos egípcios, no culto da Grande Mãe, em Diana de Éfeso, que teria se transformado, no concílio ali realizado, de modo totalmente espontâneo, na Mãe de Deus
(Τεοτóχος)... Por outro lado, no entanto, estimula-se e se alardeia a generosidade diante das diversas formas de piedade: pondo-se de lado as tendências puritanas, deve-se deixar os romanos com sua Madonna.[1] Por detrás disso pode-se perceber uma atitude que, após a onda de racionalização do cristianismo, torna-se cada vez mais forte a olhos vistos: trata-se da busca ansiosa por uma resposta também para o sentimento na esfera da religião; a busca ansiosa de que também na religião a imagem da mulher como virgem e mãe possa ter um lugar. Certamente, não basta a mera tolerância diante de costumes diversificados para uma justificação da piedade mariana: se o seu fundamento é tão fútil como parece ser nas considerações citadas acima, o contínuo incentivo da piedade mariana não passaria de um costume que contradiz a verdade. Ou esses hábitos esmorecem e atrofiam, uma vez que a sua raiz, a verdade, está ressequida, ou continuam a grassar, em contraste com a consciência, e destruindo, assim, a harmonia entre verdade e vida. Desse modo, acabam conduzindo a um envenenamento do organismo espiritual-eclesial, cujas consequências são incalculáveis.
Faz-se necessária, então, uma reflexão mais profunda. Antes da análise de textos isolados, deve haver um olhar permanente para o todo, para a questão estrutural; somente assim iremos conseguir um enquadramento razoável das particularidades. Afinal de contas, haverá um lugar nas Sagradas Escrituras para algo como a mariologia, em toda a estruturação de sua fé e de sua oração? Pode-se abordar essa questão, por assim dizer, metodologicamente, de frente para trás: em uma leitura que parta do Novo Testamento para chegar ao Antigo, ou vice-versa, partindo do Antigo Testamento e, lentamente, chegando até o Novo. E melhor ainda será que esses dois caminhos se unam em uma interação recíproca e que desse processo resulte a imagem mais exata possível. Se lemos, primeiramente, de frente para trás ou, mais precisamente, do fim para o início, torna-se evidente que a figura mariana do Novo Testamento é totalmente tecida pelos fios do Antigo Testamento, nos quais se deixam distinguir claramente duas, ou até mesmo três linhas de tradição, que são utilizadas para apresentar o mistério de Maria. Em primeiro lugar, assume-se, para a sua descrição, a figura das grandes mães do Antigo Testamento: Sara,