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Antropologia da vocação cristã
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Antropologia da vocação cristã
E-book759 páginas21 horas

Antropologia da vocação cristã

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Sobre este e-book

Neste livro é sublinhada a ação insubstituível da graça e também é focalizada a vocação do cristão a partir de sua antropologia, isto é, a partir de uma visão cristã da pessoa humana. Explicita as bases de antropologia filosófica e teológica implícitas nas formulações psicossociais.
O livro destina-se não só aos que se dedicam ao trabalho pastoral em geral e à formação sacerdotal e religiosa em particular, mas responde também aos interesses dos que cultivam a antropologia, filosofia, teologia e psicologia social; e a todos os que desejam viver sua vocação cristã em plenitude.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento29 de out. de 2019
ISBN9788535645743
Antropologia da vocação cristã

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    Antropologia da vocação cristã - Luigi M. Rulla

    Primeira parte


    Pressupostos gerais

    Capítulo 1

    Uma abordagem indutivo-existencial

    Por que iniciamos uma discussão sobre a vocação cristã chamando a atenção para o aspecto indutivo-existencial da metodologia? Por dois motivos: uma apresentação pastoral mais apropriada e uma visão mais completa e realista da vida e da natureza humana.

    Todos sabem que a teologia é, por natureza, um esforço por parte da comunidade dos crentes para uma autocompreensão. Segundo a definição de Santo Anselmo, ela é fides quaerens intellectum, a fé que busca compreender a si mesma e quer ser compreendida pelos outros.

    Por isso, tem que apresentar a mensagem cristã (em nosso caso, uma visão da vocação cristã), de modo que pareça mais facilmente aceitável pelas pessoas que vivem em determinado contexto cultural.

    Ora, a visão da cultura que caracteriza a civilização contemporânea tende a ser mais indutiva, empírica e existencial do que dedutivo-normativa. Até não muito tempo atrás, a cultura era concebida normativamente. Isto é, de direito, existia um único sistema de valores, de atitudes, de significados, que eram tidos como normas universais e permanentes, de maneira que quem desejasse ter uma cultura precisava aspirar a essas muitas normas. Isso era requerido, por exemplo, dos povos do terceiro mundo, diante do assim chamado mundo ocidental. Essa visão normativa e dogmática garantia estabilidade, mas descuidava a adaptação ao inevitável desenvolvimento e mudanças da humanidade; sustentava a objetividade da verdade e o valor dos princípios morais, mas nem sempre percebia suficientemente que ambos devem ser integrados em um contexto existencial.

    A civilização contemporânea, por outro lado, está orientada para uma cultura indutivo-existencial. A cultura atual valoriza não tanto o direito, a norma, quanto fundamento racional ou empírico dos significados, das atitudes e dos valores que dão forma aos estilos de vida. Além disso, ela gosta de ver esses estilos de vida no conjunto de um plano que tenha lógica. Isto é, a pessoa atual não gosta tanto de ser colocada, mais ou menos à força, dentro de um plano de vida (cf. Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, no. 4), mas quer de preferência saber, compreender por que está dentro desse plano. Como diz o Concílio Vaticano II na Declaração Dignitatis Humanae: Da dignidade da pessoa humana, tornam-se os homens do nosso tempo sempre mais cônscios. Cresce o número dos que exigem que os homens, em sua ação, gozem e usem de seu próprio critério e de liberdade responsável, não se deixando mover por coação, mas guiando-se pela consciência do dever (n. 1). Finalmente, a cultura contemporânea não considera o homem abstrato, metafísico, idealizado, separado de sua realidade existencial, mas o homem concreto, histórico, situado, de que fala repetidamente João Paulo II na Encíclica Redemptor Hominis (cf. por exemplo, n. 13 e 14).

    Por isso parece oportuno que uma discussão sobre vocação cristã não só não deva contradizer tais elementos culturais, mas até deva inserir-se positivamente neles, para reforçar o que é justo. Isso não quer dizer que a vocação cristã possa e deva buscar suas origens nas exigências intrínsecas da pessoa humana, como era suposto pelo modernismo; e ciência ou um cientificismo agnóstico e amoral não podem substituir a fé. Mas quer dizer que tal vocação precisa aparecer como um plano que convém a pessoa, um projeto de vida que não a destrói nem a diminui, mas até a constrói. Fé não significa um fideísmo absoluto, que não respeita a dignidade do homem, principalmente a sua autodeterminação.

    Concretamente, a vocação cristã deve ser interpretada e apresentada como um acontecimento de salvação, dentro da história da Salvação que – respeitando a liberdade do homem – empenha responsavelmente, em um crescimento contínuo de si mesmo, como algo que na história do homem não se limita à história de seu pecado e de sua redenção, mas considera também a história da Salvação que vai além do pecado e toca tanto Deus nos seus gestos de amor pelo homem como o homem em sua inteira realidade existencial.

    Mas é claro que buscar modos cada vez mais adaptados de comunicar a doutrina cristã não quer dizer alterá-la: porque, uma coisa é o próprio depósito da Fé ou as verdades reveladas e outra, é o modo de enunciá-las, conservando-se, contudo, o mesmo significado e a mesma sentença (Gaudium et Spes, n. 62).

    Capítulo 2

    A vocacão como diálogo

    O segundo pressuposto decorre em parte do primeiro. Com efeito, está baseado em um dado de fato, que sugeriu uma nova perspectiva à teologia. A teologia, levada – ao menos em parte pela presente situação cultural caracterizada pela estima da pessoa humana, passou da antropologia na teologia para uma antropologia teológica. Essa nova perspectiva tem seu fundamento em um dado de fato presente na Bíblia. Vejamos.

    Seguindo a terminologia sugerida por Flick e Alszeghy (1977), poderíamos dizer que o estudo do homem, na luz da fé, até poucos anos atrás, era feito pelo método da antropologia na teologia, isto é, pondo em evidência o que Deus disse sobre o homem. Recentemente, começamos a falar cada vez mais de uma antropologia teológica para designar não tanto o conjunto sistemático das afirmações teológicas a respeito do homem e, portanto, um setor particular da teologia, mas uma dimensão de toda a teologia, vista agora na perspectiva da história da salvação do homem. Assim, a antropologia teológica torna-se o aspecto mais importante da ciência da fé: A teologia dogmática, hoje, deve ser antropologia teológica (Rahner, Theological Investigations, IX, p. 28).

    Essa mudança de perspectiva é chamada de a virada na teologia porque quer sublinhar o fato de que toda a mensagem da revelação está voltada para a salvação do homem e para sua promoção integral. A Revelação não trata diretamente de Deus em si mesmo, mas enquanto ele se interessa pelo homem. Nas palavras de um profundo pensador judeu: A Bíblia é antes de tudo, não uma visão que o homem tem de Deus, mas a visão que Deus tem do homem. A Bíblia não é a teologia do homem, mas a antropologia de Deus, que se ocupa do homem e do que ele requer, mais que da natureza de Deus (Heschel, 1970, p. 135). Daí a tendência cada vez mais forte entre os teólogos de afirmar que a estrutura formal da pesquisa teológica não pode ser diferente da das outras ciências e que, por isso, também em teologia é preciso partir do homem e ter o homem constantemente presente.

    Por isso, vista na perspectiva aqui descrita, a mensagem de Revelação consiste sobretudo na vocação do homem por parte de Deus. Mas, se há vocação, há diálogo, porque há atenção para o outro, isto é, para aquele com quem se quer falar. Por isso, essa Revelação parece indicar implicitamente que o diálogo entre Deus e o homem é uma das abordagens mais úteis para estudar a vocação cristã, uma vez que esse diálogo é um dos aspectos que mais a caracterizam. Afinal,

    Não podemos... aderir a Cristo como Senhor e Salvador, se não compreendemos que fomos criados à imagem de Deus; que, em certo sentido, fomos despojados dessa imagem por causa do pecado e que, em Cristo, imagem do Pai por excelência, foi novamente instaurado o diálogo filial com o Pai, sem o qual, o homem não pode realizar sua unidade existencial (Flick e Alzseghy, 1977, p. 16, grifo nosso).

    O texto que acabamos de citar indica que há razões profundas para considerar a vocação do homem como diálogo. De fato, o homem (e só o homem) é imagem de Deus no universo: Gênesis 9,5-6. Como faz notar Alzseghy (1966), o contexto dessa citação do livro do Gênesis parece sugerir que a especial semelhança pela qual o homem é imagem de Deus é referida não diretamente a qualquer dom da natureza ou da graça possuído pelo homem, mas àquele relacionamento dialógico que só o homem, senhor de sua existência, pode estabelecer com outras pessoas ou valores (cf. p. 428, que indica também S. Otto, Gottes Ebenhild in Geschichtlichkeit, 1964, pp. 53-111).

    A Gaudium et Spes (n. 12) indica duas direções dessa existência dialogal do homem como imagem de Deus. Em 1.o lugar, há o diálogo entre Deus e o homem: segundo o mesmo Documento Conciliar, A Bíblia de fato ensina que o homem foi criado à imagem de Deus, capaz de conhecer e amar seu Criador... (n. 12). Na Sagrada Escritura, o homem é a única criatura a quem Deus diz tu e a quem Deus dá mandamentos e proibições esperando uma resposta por parte do próprio homem. Para ter um ótimo exemplo desse tema do homem imagem de Deus visto em termos de diálogo, podemos ver o texto bíblico de Sirac 17,1-11 (com o comentário de De Geradon, 1958), texto que descreve precisamente o relacionamento dialogal entre Deus e os homens.

    Além do diálogo com Deus, a Gaudium et Spes sublinha o diálogo com os outros homens: Deus não criou o homem para deixá-lo sozinho. Desde o princípio, criou-os homem e mulher (Gn 1,27) e sua união constitui a primeira forma de comunhão de pessoas. De fato, o homem é por intima natureza um ser social e, sem os relacionamentos com os outros, não pode viver nem usar seus dons (n. 12; grifos nossos). A existência do homem é em uma comunidade, isto é, em uma pluralidade estruturada que corresponde a uma exigência da natureza do homem. Além disso, essa comunidade tende a tornar-se uma comunhão de pessoas quando cada um se abre para os outros e aceita os outros, de maneira que as pessoas se completam mutuamente. Assim, revive-se, de modo análogo, a vida das Três Pessoas divinas.

    Finalmente, há o diálogo que Deus mantém com cada homem através das realidades, não só de pessoas, mas também de coisas e de acontecimentos que por ele foram designados para as diversas pessoas. É todo um mundo de valores que transmite a palavra com que Deus fala de si mesmo e que suscita no homem contínuas perguntas sobre o significado último de sua vida e por isso sobre sua vocação. Como vamos ver no correr deste estudo, essas perguntas do homem têm Deus como ponto último de referência. Por isso, mais ou menos conscientemente, o homem está em diálogo com ele.

    Capítulo 3

    A vocação como diálogo com Cristo

    A antropologia teológica que está na base do segundo pressuposto não significa a ruptura da Revelação em favor de um antropocentrismo autônomo que acaba em um subjetivismo.⁴ Menos ainda significa que se deva instrumentalizar Deus a serviço do homem. Antes, sublinha ainda mais a centralidade da iniciativa de Deus na história da salvação do homem, sem diminuir sua participação nesse plano salvífico, E tudo isso acontece na pessoa de Cristo.

    Com efeito, nas palavras da Redemptor Hominis:

    O homem que quer compreender a si mesmo até o fundo – não só de acordo com critérios e medidas do próprio ser, imediatos, parciais, frequentemente superficiais, e mesmo ilusórias – deve, com a sua inquietude e incerteza e mesmo com a sua fraqueza e pecaminosidade, com sua vida e morte, aproximar-se de Cristo. Deve, por assim dizer, entrar em Cristo com todo o seu ser, deve apropriar-se e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para reencontrar a si mesmo (n. 10). Uma vez que em Cristo e por Cristo, Deus se revelou plenamente à humanidade e se aproximou definitivamente dela e, ao mesmo tempo, em Cristo e por Cristo, o homem adquiriu plena consciência de sua dignidade, de sua elevação, do valor transcendente da própria humanidade, do sentido de sua existência (ibid., n. 11).

    O diálogo entre Deus e o homem, uma das características da vocação cristã, tem, portanto, seu centro em Cristo. É Cristo que ... Justamente revelando o mistério do Pai e do seu amor, desvela também plenamente o homem a si mesmo e lhe manifesta sua altíssima vocação (Gaudium et Spes, n. 22). Portanto, é Cristo que liberta o homem, mostrando-lhe a dimensão transcendente de sua dignidade e de sua vocação. Ele chama assim o homem a alargar seus horizontes tanto para um humanismo do ser mais que do ter, como para uma contínua imitação dele mesmo na transcendência para seu e nosso Pai, isto é, como membro do Corpo Místico, de que ele é Cabeça.

    Assim considerada, a vocação cristã não deve ser vista nem de modo teocêntrico nem de modo antropocêntrico, mas de acordo com os dois modos. Como diz João Paulo II na Encíclica Dives in Misericordia:

    Enquanto as diversas correntes de pensamento, no passado e no presente, estiveram e continuam a estar propensas a dividir e até a contrapor o teocentrismo e o antropocentrismo, a Igreja, seguindo Cristo, procura uni-los na história do homem de maneira orgânica e profunda. E esse é um dos princípios fundamentais, talvez o mais importante, do Magistério do último Concílio (n. 1).

    O antropocentrismo cristão pede necessariamente o teocentrismo, que não está em oposição com ele, mas é a fonte de sua verdadeira natureza. Não se pode compreender o homem em diálogo com Deus a não ser em Cristo, ou, melhor, no Deus que Cristo revelou. Podemos dizer com K. Rahner (1967) que a cristologia é o princípio e o fim da antropologia; e a antropologia plenamente realizada é a própria cristologia.

    Por isso, o discurso sobre o diálogo vocacional deve evitar os dois extremos do teocentrismo e do antropocentrismo que se opõem. Entre outras coisas, é a dignidade do homem que requer isso. De fato, se Cristo ... revelando ao homem o mistério do Pai e do seu amor desvela também plenamente o homem a si mesmo e lhe manifesta sua grandíssima vocação (Gaudium et Spes, n. 22), a dignidade do homem é diminuída, tanto por um como pelo outro extremo: um teocentrismo excessivo pode facilmente fazer-nos perder de vista o homem, o que o homem é e deve ser para entrar no diálogo, e a contribuição ativa que deve levar para o diálogo. Um antropocentrismo acentuado e rígido pode levar a negar os elementos da revelação divina presentes no homem como parte necessária de seu diálogo com Deus. Por isso, devemos considerar em conjunto os elementos teológicos e os elementos antropológicos. Além disso, os elementos antropológicos devem estar de algum modo de acordo com os teológicos, para que a visão do homem seja compatível com o chamado divino.

    Esta conclusão, sugerida pelo segundo e o terceiro pressuposto, indica a necessidade de enfrentar a atual tarefa, propondo um quarto pressuposto: seguir uma abordagem interdisciplinar ao desenvolver o assunto que nos foi proposto. Mas uma abordagem interdisciplinar que leve em conta suficientemente o que foi discutido no primeiro pressuposto: integrar contribuições indutiva empíricas ou indutivo-existenciais em uma moldura de perspectivas dedutivo-normativas. Esta última afirmação precisa de uma explicação, pelo menos parcial, que será dada quando apresentarmos o quarto pressuposto, que discute uma abordagem interdisciplinar.

    Capítulo 4

    Uma abordagem interdisciplinar

    4.1. Fundamento e utilidade teológica

    As primeiras três opções metodológicas levaram-nos a propor pressupostos que querem ser os elementos basilares, segundo os quais e em torno dos quais possamos ordenar nossa discussão sobre a vocação. Por isso, eles constituem o que Mondin (1977) chama, aplicando-o ao estudo da teologia, um instrumento arquitetônico, isto é, um instrumento que fornece, que oferece a verdade revelada. Esse instrumento arquitetônico de estudo deve ser distinguido dos instrumentos hermenêuticos, que procuram entender, aprofundar, esclarecer, formular, exprimir a verdade revelada.⁵ Por isso, é claro que os pressupostos arquitetônicos são tirados da fé, da Revelação, enquanto os hermenêuticos provêm da razão.

    Tudo isso está perfeitamente conforme com o diálogo vocacional, resultado de fé e razão: a vocação é obra de Deus no homem, mas com a participação, colaboração e corresponsabilidade deste último. E está, além disso, em plena sintonia com o diálogo em Cristo: no plano gnosiológico, fé e razão comportam-se como as duas naturezas de Cristo Encarnado. Ontologicamente, fé e razão têm sua própria integridade, não devem ser confundidas; são profundamente unidas, de acordo com uma ordem de precedência que vê, em primeiro lugar, a fé e, em segundo, a razão. Desta forma, a fé, própria dos pressupostos arquitetônicos, constitui o elemento determinante com relação à razão, própria dos pressupostos hermenêuticos, mas na salvaguarda da própria razão. Daí o fundamento teológico da abordagem interdisciplinar de fé e razão que é proposta aqui para uma discussão sobre a vocação cristã.

    Por isso, é claro que, na abordagem interdisciplinar aqui delineada em poucos traços, as ciências humanas, tanto as mais especulativas como a filosofia, como as mais positivas como a psicologia e a fenomenologia, etc., não têm a pretensão de definir positivamente ou de alargar o campo da fé, da verdade revelada. As ciências humanas são e querem permanecer auxiliares da teologia.

    Mas também é claro que elas podem dar e de fato dão sua contribuição. Com efeito, em primeiro lugar, a teologia é, por definição, um aprofundamento da fé obtido mediante as estruturas, as categorias e as operações da razão: a antropologia filosófica é preâmbulo da fé. Em segundo lugar, só as ciências experimentais e humanas são capazes de fornecer à teologia os instrumentos conceituais aptos para formular com clareza e tornar mais explícitos alguns aspectos particulares do mistério da salvação, como ele é manifestado, por exemplo, pela vocação cristã. Podemos indicar alguns dos serviços que as ciências humanas podem prestar, aplicando a elas, de modo análogo, o que Santo Tomás dizia da filosofia em confronto com a teologia: Na teologia, pode-se usar a filosofia de três modos: em primeiro lugar, para provar os preâmbulos da fé (...); em segundo lugar, para esclarecer mediante analogias os argumentos da fé; em terceiro lugar, para refutar as objeções levantadas contra a fé (In Boetii de Trinitate, Proem. Q. II., a. 3).

    4.2. Fundamentos e utilidades pastorais

    Poderiam objetar: mas por que questionar o que temos de mais caro, nossa vocação cristã, submetendo-a a uma pesquisa da razão, que indaga tanto por meio da filosofia como por meio das ciências humanas mais positivas? Podemos dar diversas razões de vantagem pastoral e de crescimento na vocação; vamos falar mais longamente sobre elas a seguir.

    Aqui, podemos limitar-nos a citar algumas. Em 1o lugar, tal pesquisa da razão pode favorecer um crescimento tanto na liberdade interior como na caridade fraterna. De fato, em primeiro lugar, não se trata de passar da fé à dúvida, mas da fé a uma verdade racionada, a uma verdade que nos liberta porque nos permite viver a vocação cristã sem ficções táticas e sem atormentadas interrogações e inquietudes mais ou menos conscientes. Além disso, não somos libertados da fé, mas de um substitutivo dela como pode ser uma aquiescência habitual, uma falsa serenidade enganosa que nasce de uma falta de vontade de enfrentar e verificar a verdade; libertamo-nos de uma atitude existencial bem diferente da metânoia ou conversão pregada por Cristo e posta em prática pelos santos.

    Em segundo lugar, examinar nossa vocação num espírito de fé, mas também numa busca da verdade rigorosa e imparcial, quer dizer colocar-se em uma condição de diálogo com os outros homens, de caridade fraterna pelo meu próximo, que também se interroga sinceramente, com pureza de intenções e com ampla disponibilidade de coração. Significa abrir-se a uma compreensão e a uma participação mais profunda na condição comum com os outros homens, que sentem e vivem com as mesmas interrogações, manifestas ou não.

    Em terceiro lugar, considerar a vocação cristã em uma abordagem interdisciplinar é proceder na direção do desenvolvimento do método teológico que Lonergan (1976-1977) chamou de práxis. Práxis é a tradução, em termos de método, do espírito que anima a Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje (Gaudium et Spes) do Concílio Vaticano II, isto é, um desenvolvimento de método necessário à teologia para inserir-se mais plenamente na vida prática e cotidiana do mundo contemporâneo.

    Este nosso mundo contemporâneo tem suas exigências, que caracterizam o seu modo próprio de entender e aceitar a verdade.

    Antes de tudo, como diz Lonergan (1973 e 1976-1977), devemos levar a sério a revolução científica dos séculos XVI e XVII. Essa revolução marcou o início da ciência moderna, que para H. Butterfield (1965) é o acontecimento mais significativo para a humanidade depois do surgimento da Cristandade. Três efeitos podem ser considerados como importantes na revolução científica do mundo contemporâneo: o visar a utilidade prática de utilizar e de dominar, manipular as coisas por meio de um processo contínuo de ensaio e erro; um desejo de autonomia em conhecimento, cujos termos e relações basilares devem ser matemáticas na origem e experimentais na verificação; o estar interessada não nas palavras mas na realidade, excluindo assim problemas que não podem ser resolvidos pela observação ou pela experimentação. Devemos notar que esses três elementos são o oposto de tudo que era considerado o fundamento da autoridade na ciência, quer no mundo antigo, como o aristotélico, quer no mundo da Idade Média. Em resumo: a visão contemporânea da aprendizagem, do conhecimento tende a ver todo sistema novo não como deduções de verdades necessárias, mas como conclusões verificadas de hipóteses; a confiança é posta mais no método do que nos primeiros princípios considerados como necessários. As contribuições de Riemann, de Einstein, de Heisenberg, que deram nova dimensão às anteriores de Euclides, de Newton, de Maxwell, são prova dessa tendência e dessa confiança.

    Um segundo aspecto da cultura contemporânea merece também um breve aceno. A cultura de nosso tempo é, sem dúvida nenhuma, inclinada ao secularismo. O movimento secularista do Iluminismo do séc. XVIII atacou não só a tradição religiosa, mas toda tradição, e assim desvalorizou a contribuição indispensável que a verdade herdada dá ao conhecimento humano.

    Mas todos esses fatores incidem inevitavelmente sobre a capacidade do homem contemporâneo de aceitar a legitimidade de leis e estruturas como o depósito da sabedoria e da prudência da humanidade. Além disso, torna menos possível estar acriticamente aberto à verdade e aos valores morais. Essa crença menor está particularmente presente quando as verdades e os valores morais não estão suficientemente integrados no contexto existencial da vida da pessoa individual, vista em sua única, irrepetível identidade e dignidade.

    Como faz notar Lonergan (op. cit., 1976-1977), quanto mais os estudos abandonam as concepções universais abstratas para se voltar aos seres humanos concretos, tanto mais fica evidente que a idade científica da inocência acabou: já não se pode ter como certa a autenticidade humana (p. 341). As revoluções trazidas pelos séc. XVI, XVII e XVIII, a que já acenamos, estão na base desse desenvolvimento e dessa situação atual de inocência perdida. De fato, já não se tende a supor que a verdade se limite às conclusões necessárias deduzidas de princípios intrinsecamente evidentes. Nem estamos inclinados a crer que toda a realidade seja óbvia e presente e que a objetividade seja apenas questão de olhar adequadamente a mesma realidade, vendo aquilo que há, não vendo aquilo que não há. Da mesma maneira, como no passado, podemos admitir que existe um problema difícil, mas não aceitamos facilmente que uma filosofia sã e crítica – como a de Kant, de Comte, ou de qualquer outro – possa resolvê-lo de uma vez por todas.

    Por isso, com Lonergan (1976-1977) perguntamo-nos se existe um método que possa lidar com o autêntico e o não autêntico, com o racional e o irracional; e indicamos essa abordagem com o nome grego, práxis (p. 341-342). A abordagem interdisciplinar ao estudo da vocação cristã, que será proposta e usada neste livro, corresponde a esses requisitos e, por isso, favorece a práxis. De fato, como veremos, essa abordagem parte do pressuposto de que a autenticidade do homem não é algo que se possa dar por admitida e que, por isso, precisa discernir entre avaliações, decisões e ações autenticas e não autênticas, entre o bem real e o bem aparente na vocação crista. Em outras palavras, essa abordagem é um método que parte da decisão de tomar a sério a afirmação de Pascal: o coração tem razões que a razão não conhece. Além disso, ela favorece a práxis, porque ajuda na busca de uma resposta à pergunta suscitada pela práxis: que se pode fazer por este autêntico e não autêntico, por este bem real e por bem aparente da vida cristã?

    É claro que, com isso, não estamos querendo chegar a uma compreensão completa e sistemática da vida humana; esse alvo seria uma ilusão, e uma ilusão perigosa (K. Rahner, 1974-1975, XIII, p. 90). Mas queremos dar uma pequena contribuição à exigência pastoral repetidamente manifestada pelo Concílio Vaticano II. Bastem aqui algumas citações para esse propósito: no n. 62 da Gaudium et Spes, indicando os novos problemas suscitados pelos recentes estudos e as novas descobertas das ciências, o Concílio convida os teólogos a buscar modos sempre mais adaptados de comunicar a doutrina cristã aos homens de seu tempo. Para isso, no zelo pastoral, são aconselhados um conhecimento suficiente e um uso mesmo das descobertas das ciências profanas, em primeiro lugar da psicologia e da sociologia, de modo que os fiéis sejam levados a uma vida de fé mais pura e mais amadurecida. Expressões análogas são usadas no Decreto sobre a Formação Sacerdotal (Optatam Totius, n. 2), quando se fala da pastoral vocacional, como também na Gaudium et Spes com referência à formação dos ministros sagrados que poderão apresentar aos nossos contemporâneos a doutrina da Igreja acerca de Deus, do homem e do mundo de maneira mais apta, fazendo com que seja aceita com maior boa vontade também por eles (n. 62).

    Em uma perspectiva pastoral, poderíamos perguntar: qual é o impacto sobre a vocação cristã das ideias, dos condicionamentos culturais que provieram e se reforçaram como efeito da revolução científica de séc. XVI até hoje? Essa herança cultural a que aludimos afeta o mundo dos valores, quer enquanto pode fazer diminuir o número das vocações sacerdotais-religiosas nos países que mais ressentem essa revolução científica, em contraste com os que menos foram influenciados por ela, quer enquanto influenciam o tipo de mentalidade vocacional de alguns de nossos atuais candidatos? O que temos em mente são as três ideias de utilidade prática, autonomia, experimentação, indicadas em nossa discussão precedente. Até que ponto essas ideias, esses condicionamentos culturais influenciam os candidatos em sua resposta à vocação cristã?

    4.3. Dificuldades e problemas inerentes à abordagem interdisciplinar

    Em três artigos (Theological Investigations, XIIT, pp. 61-102), K. Rahner apresenta as dificuldades, verdadeiramente notáveis, que estão ligadas a um estudo interdisciplinar. Limitar-nos-emos aqui a alguns acenos.

    Em 1o lugar, é difícil definir a natureza de uma discussão interdisciplinar (Rahner, op. cit, p. 80).

    Depois, há dificuldades ligadas a cada uma das diversas ciências. Este estudo vai considerar aspectos da teologia, da filosofia, da fenomenologia e da psicologia social, mesmo no que diz respeito à psicologia do profundo (que precisa ser distinguida da psicanálise).

    Ora, por exemplo, no que diz respeito à teologia não é possível definir seu objeto em geral: Deus é um mistério absoluto; nas palavras de Rahner: o que a Cristandade afirma é que sua mensagem diz respeito precisamente àquilo de que não se pode dar nenhuma mensagem ‘clara’ porque – por definição – não tem nem pode ter nenhum lugar particular e estável com referência ao que são o conhecimento e a liberdade humana (op. cit., p. 97). Os teólogos não estão de acordo na resposta à pergunta: que é a teologia? E, como faz notar Alfaro (1974), esse desacordo não é casual; a definição da teologia é já em si mesma uma tarefa teológica; não se pode dizer o que é a teologia, sem fazer teologia, isto é, sem entrar num raciocínio teológico.

    Similarmente, não é possível falar da natureza própria da vocação cristã, porquanto é uma realidade transcendente, que é dom de Deus.

    No que diz respeito ao papel da filosofia num esforço interdisciplinar, é preciso reconhecer a existência de tal pluralismo de filosofias, que ninguém mais capaz de conhecer a fundo (Rahner, op. cit., p. 71). Também os filósofos não estão de acordo sobre a definição da filosofia. A história mostra que cada um dos filósofos definiu-a dentro da própria filosofia, dentro do próprio tema filosófico fundamental e do próprio método.

    O mesmo vale para a psicologia, sobre a qual queremos nos demorar um pouco mais. Como para a filosofia e, em parte, também para a teologia, não existe a psicologia, mas diversas correntes de psicologia. Esta última e as outras ciências diferentes da teologia e da filosofia desenvolveram sua própria autonomia e não estão ligadas a nenhuma escola de filosofia em particular (Rahner, ibid., pp. 72-75, 94-95).

    Devemos fazer uma indicação breve, mas particular sobre as possíveis dificuldades derivadas da pesquisa experimental em psicologia. Teorias e explicações psicológicas cientificamente relevantes devem ser empiricamente prováveis com fatos observáveis, que estão direta ou indiretamente ligados ao comportamento humano. Por exemplo, a hipótese de que algumas motivações psicológicas, como os valores proclamados pelos indivíduos, têm uma influência no processo de entrada na vida religiosa ou sacerdotal, deve ser provado pelo fato de que os indivíduos com valores religioso-morais mais altos de fato escolhem tal vocação. Mas, até que ponto é válida essa prova e, por isso, quais são as condições e os limites dessa validade?

    A primeira coisa a observar é que a validade de tal pesquisa é estatística e expressa como afirmação estatística, não como lei determinística. Em outras palavras, a verificação experimental das hipóteses não leva ao julgamento de verdade ou falsidade, no sentido estrito da palavra, mas apenas a afirmações mais ou menos prováveis. Isto é, essas afirmações não excluem a possibilidade do oposto, mas somente a probabilidade de o oposto ser verdadeiro. Mas as probabilidades de excluir o oposto são muito grandes; em geral, consideram-se cientificamente válidas só probabilidades de excluir o oposto que são de 95 por cento ou maiores até 999 sobre mil. Consequentemente, a psicologia experimental é uma ciência nomotética, não normativa; quer dizer, é uma ciência que procura formular em suas teorias não normas de comportamento humano, mas leis universais, ainda que estatísticas. Não diz o que se deve fazer, mas o que de fato o homem tende a fazer e a ser. É óbvio que o conhecimento dessa realidade existencial pode ser útil para aconselhar, para formular providências ou decisões de natureza pastoral.

    Em segundo lugar, é verdade que o resultado de uma prova experimental que confirma uma hipótese, não constitui um critério absoluto e definitivo da veracidade ou falsidade dessa hipótese ou afirmação. Mas também é verdade que a convergência de muitas confirmações torna muito plausível a verdade da hipótese. Em outros termos, se de uma teoria derivam tantas hipóteses e todas se confirmam, essa teoria parece ser útil (Herrmann, 1971; Köhler, 1981). Essas verdades e utilidades merecem ainda mais ser consideradas seriamente, se as afirmações, as hipóteses são predições que se verificam no tempo; um exemplo pode ser predizer que algumas estruturas psicológicas inconscientes das pessoas tendem a favorecer seu abandono da vida religiosa ou sacerdotal, e essa predição, com o passar do tempo – mesmo anos – tende sempre a se verificar, apesar das variações em lugar e outras circunstâncias.

    Em terceiro lugar, a validade das pesquisas da psicologia é ainda maior se, em acréscimo às condições acima expostas, a pesquisa não considera o comportamento de alguns sujeitos submetidos a um experimento determinado, mas estuda como se comportam as pessoas de todos os dias em situações diferentes (pesquisa de campo). Vemos, assim, que tem fundamento e plausibilidade afirmar que podem fazer-se generalizações quanto ao comportamento humano como tal na base de pesquisas psicológicas que forem feitas com critérios sérios. A psicologia pode ser complementar e ajudar as outras ciências, como a filosofia e a teologia em modo geral, e não só em alguns casos patológicos, excepcionais ou extremos.

    Na verdade, a psicologia deve ser capaz de chegar a algumas generalizações de comportamento da pessoa humana; assim, é possível adotar uma abordagem interdisciplinar com a filosofia e a teologia, isto é, com ciências que se servem de concepções gerais, universais, abstratas.

    Em acréscimo aos três aspectos aqui mencionados, é preciso levar em conta outras dificuldades, para chegar a generalizações em psicologia. Por exemplo, como bem nota Kiely (1980, p. 33 ss.), se nos basearmos apenas em dados oferecidos diretamente pelas observações clínicas de alguns indivíduos, esses dados serão mais limitados a determinados casos concretos, que tornam difícil chegar a uma generalização. Afinal, a observação clínica, como a dos casos acompanhados em psicoterapia ou em diagnósticos, está voltada principalmente para um único indivíduo e para sua particular combinação de dificuldades e recursos. Por isso, os resultados dessa observação de uma pessoa particular são aplicáveis só de modo aproximativo a conceitos teoréticos gerais. Daí a dificuldade de atingir o nível de abstração que permite a generalização. Semelhantemente, não é possível formular generalizações só postulando que uma teoria psicológica da personalidade humana é adequada porque contém aquilo que deveria ser verdadeiro. De fato, existem pelo menos umas trinta teorias da personalidade (sem contar as de origem filosófica) e, por isso, toda generalização assim conseguida não seria mais do que um exercício na construção de hipóteses. O mesmo pode ser dito se se procuram combinar elementos que parecem interessantes e são tomados por teorias diferentes; a combinação é só hipotética e pode levar facilmente a um ecletismo arbitrário.

    Por isso, somos forçados a escolher o caminho indicado na página precedente pela pesquisa de campo em psicologia, a qual, entretanto, tem que satisfazer a alguns requisitos precisos elencados por Kiely (1980, p. 36-38): precisa estar baseada em pressupostos e proposições bem definidos; precisa tratar com tais amostras suficientemente representativas das populações, dos tipos de pessoas que se quer estudar (devem empregar planos e técnicas estatísticas que não tenham efeitos distorcivos); devem alcançar o processo motivacional profundo da pessoa, que subjaz ao seu comportamento, seus ideais etc. O último requisito quer chamar a atenção para a limitação de pesquisas baseadas sobretudo em questionários; essas pesquisas atingem as conclusões da pessoa, incluídas as que dizem respeito a ela mesma, mas não lançam uma luz direta sobre os processos que levaram a essas conclusões. Por exemplo, se uma pesquisa revela que um senso de alienação é frequentemente denunciado pelos indivíduos como motivo de seu abandono da vocação religiosa, não diz nada sobre as motivações que levaram ao referido sentido de alienação.

    É óbvio que é praticamente impossível satisfazer plenamente a todos esses requisitos. Mas penso que teremos dado mais um passo no caminho que desejamos, quando houver outros dois requisitos: o de estudar a pessoa humana não só de acordo com conteúdos, mas também de acordo com estruturas que lhe são naturais e, por isso, passíveis de generalização em todas as situações, tempos (p. ex. antes e depois do Vaticano II), culturas, etc. Segundo requisito: examinar o acordo ou desacordo, a consistência ou inconsistência existente entre as estruturas mais relevantes da pessoa. Foi isso que se procurou fazer no estudo da vocação e da antropologia cristã (Rulla, 1971, Rulla, Ridick, Imoda, 1976, 1978; Rulla, 1978a). Essa contribuição será discutida mais longamente a seguir. Basta dizer aqui que ela é uma espécie de aplicação do princípio de não contradição, porque, de fato, uma consistência é um estado de não contradição dentro da pessoa, ao passo que uma inconsistência é um estado de contradição. Uma aplicação análoga do princípio de não contradição foi feita por Kohlberg (cf. p. ex. 1971 e 1978-1979) estudando o desenvolvimento das estruturas cognitivas pelas quais resolve dilemas morais.

    Nas páginas precedentes, foram discutidas um pouco mais longamente as dificuldades próprias da psicologia, quando se quer fazer notar que, se essas dificuldades forem superadas, de fato até a pesquisa experimental pode chegar a generalizações de natureza estatística acerca do comportamento que depois podem mostrar-se convergentes com as fornecidas pela filosofia e a teologia.

    Para continuar nossa discussão sobre a abordagem interdisciplinar, falta considerar brevemente outra série de problemas extremamente complexos: os que dizem respeito à integração entre as diversas ciências relacionadas com a nossa tarefa.

    A complexidade deriva de muitos fatores. Por exemplo, a história mostra que a teologia surgiu do encontro da fé crista com a filosofia grega e que sua relação com a filosofia sofreu uma evolução com o surgimento de novas filosofias (Ebeling, 1962). Por isso, essa relação entre filosofia e teologia é um problema que exige levar em conta a filosofia moderna e que fica aberto ao futuro da teologia e da filosofia. Similarmente, a relação entre teologia e filosofia depende da diversidade das posições teológicas a respeito da situação do homem pecador (perversão total ou não) e das condições necessárias para que o ato de fé seja opção autenticamente humana (Alfaro, 1974). Aqui há diferenças entre a teologia católica e a protestante, como também dentro da teologia protestante. Na base dessas diferenças, está a maneira diferente de conceber teologicamente a transcendência e a imanência da graça, da revelação e da fé.

    De maneira análoga, a relação entre filosofia e teologia, entre razão e fé é vista diferentemente, de acordo com as diversas posições dos diversos filósofos sobre o problema de Deus e do conhecimento humano de Deus. Assim, por exemplo, para Kant, colocar a religião e a fé no campo da razão prática implica a separação entre a teologia e a filosofia; o saber absoluto de Hegel implica na absorção da teologia dentro da filosofia; e para Heidegger é impossível um autêntico pensar filosófico no crente.

    Voltando ao nosso tema: seguindo as indicações de Rahner (Theological Investigations, XIII, 61-70, 81-93, 97-102), é necessário antes de tudo encontrar categorias, elementos comuns às diversas disciplinas em questão. Além disso, tais categorias devem ser comuns por sua natureza, isto é, não tornadas comuns por um processo de adaptação forçada. Ao mesmo tempo, essas categorias devem ser tais, que respeitem a natureza e as contribuições de disciplinas mais positivas como a psicologia e a fenomenologia por uma parte, e, por outro lado, ser abertas à integração com a teologia. Por isso, torna-se útil pensar em uma abordagem filosófica que exerça essa função de ponte entre as diversas disciplinas mencionada.

    Parece que se delineiam duas tarefas a cumprir: identificar os possíveis fundamentos filosóficos para uma integração interdisciplinar e indicar concretamente o método a seguir para realizar essa abordagem. O primeiro ponto quer responder à pergunta: por que é possível adotar uma abordagem interdisciplinar? O segundo ponto considera a pergunta: que fazer para pô-lo em prática? Como dissemos um pouco acima, essas duas tarefas têm que ser feitas em duas etapas: uma integração das ciências antropológicas, isto é, das ciências do homem como a psicologia e a fenomenologia, com a filosofia antropológica, e, então um exame da relação das ciências antropológicas com a teologia.

    Essas duas partes da tarefa serão discutidas respectivamente nas duas seções 4.4 e 4.5 que seguem.

    4.4. A Integração dos elementos antropológicos

    A contribuição excepcional dada por Lonergan (ver principalmente Insight 1958 e Method in Theology, 1973) à integração dos elementos antropológicos, parece ser a mais útil no estudo da vocação cristã⁶. A razão dessa escolha precisa ser encontrada na virada antropológica na teologia a que acenamos na seção 2 deste estudo. De fato, essa virada focaliza a atenção sobre a pessoa humana como sujeito; a mesma coisa faz a abordagem de Lonergan. Assim, é na pessoa que se encontra o natural ponto de encontro das diversas ciências.

    Para sermos mais precisos, Lonergan usa, como ponto de partida de seu método, as operações da pessoa que conhece e decide. Para ele, essas operações estão necessariamente nas origens de toda ciência como produto do sujeito, Daí a utilidade de seu método, que permite uma visão comum das diversas ciências, de maneira a levar ordem, luz e unidade a uma totalidade de disciplinas e de modos de conhecimento, que, aliás, ficariam sem relações mútuas, obscuras quanto a seus fundamentos e incapazes de ser integradas pela rainha das ciências, a teologia (Lonergan, 1967, p. 115; ver também Insight pp. IX-XXX, e Method, pp. 20-25). De fato, o fundamental nas diferentes ciências não são seus conteúdos ou descobertas, ou as diversas regras especializadas de método, mas a atividade da pessoa em quem têm origem tanto as descobertas como as regras do método. Assim, compreende-se por que é possível uma abordagem interdisciplinar.

    Aqui, não estamos querendo descrever e muito menos justificar cientificamente o método transcendental de Lonergan. Algumas de suas ideias serão discutidas quando forem usadas no correr deste estudo. Queremos sublinhar dois pontos relativos a esse método: 1) apresentar brevemente a essência do método transcendental como instrumento interdisciplinar, isto é, como método que serve para toda ciência e permite a integração entre as ciências; 2) indicar sua utilidade para o estudo da vocação cristã.

    Em primeiro lugar, trata-se de um método e, por isso, de ... um esquema normativo de operações frequentes e com conexão entre si, que dão resultados cumulativos e progressivos (Lonergan, 1973, pp. 13-14). Essas operações são processos através dos quais passa todo conhecimento humano; progridem da experiência através da pesquisa e da reflexão para o julgamento, para depois voltar à experiência e recomeçar a subida para um outro julgamento (Lonergan 1958, p. 375).

    Em segundo lugar, trata-se de um método transcendental, porque os resultados considerados não são limitados a uma ciência, mas dizem respeito a qualquer resultado que possa ser objeto das noções transcendentais. Em outras palavras, enquanto os outros métodos procuram satisfazer às exigências e explorar as oportunidades próprias de campos particulares, o método transcendental intenta satisfazer às exigências e explorar as oportunidades oferecidas pela própria mente humana (Lonergan, 1973, p. 14). E quais são essas exigências e oportunidades? Podem ser sinteticamente expressas como o processo de autocorreção da aprendizagem, que consiste em uma sequência de perguntas, intuições, outras perguntas e outras intuições, até um imite em que não houver mais perguntas pertinentes (Lonergan, 1958, p. 300). Essa busca constante de soluções para os problemas, para as perguntas que ainda estão sem resposta, permite superar o perigo de que o método e significado próprio de cada ciência se torne absoluto, a ponto de pretender que as outras ciências o adotem. Na realidade, outras ciências podem levantar outras perguntas a mais, que são de tipo diverso, requerendo adaptação de método e respostas.

    Por essa breve apresentação, podemos ver como o método transcendental permite uma integração interdisciplinar. De fato, ele permite descrever o relacionamento entre as diversas ciências. Em última análise, as ciências são diferentes, não tanto pelos conteúdos de suas observações, como pelo significado atribuído a essas observações. Ora, de acordo com a apresentação de Lonergan (1958, pp. 262-267), há diversas espécies de explicações da relação das coisas entre si, e essas diversidades de espécies constituem as diversas ciências. Lonergan parte da física e – através da química e da biologia – chega à psicologia, e assim por diante, para demonstrar como o que não tem mais significado a nível de uma ciência não é senão o ponto de partida para um novo significado em um nível superior de ciência.

    A utilidade do método transcendental para a nossa discussão é múltipla. Em primeiro lugar, ele dá uma estrutura dentro da qual os dados e as generalizações da pesquisa experimental psicológica podem ser considerados em conjunto com as reflexões filosóficas e teológicas. Também oferece estruturas intrínsecas que facilitam partes importantes da nossa exposição. Além disso, oferece certos esclarecimentos que são pertinentes com uma discussão sobre a vocação cristã como, por exemplo, o das três diferentes conversões (Method, pp. 238-243). A abordagem de Lonergan torna possível redescobrir um isomorfismo entre o método do pensamento tomista e o método das ciências experimentais (Lonergan 1967, pp. 142-151). Enfim, essa abordagem, enquanto providencia uma orientação sistemática no estudo das diversas ciências, deixa os resultados que ele fornece abertos para ulteriores expressões e correções. E isso, mais uma vez, está perfeitamente de acordo com a natureza da mente humana, que se desenvolve, progride nas diversas ciências. Supera-se, assim, a imobilidade presente no ideal aristotélico (Lonergan, Method, p. 24).

    Mas a utilidade maior do método de Lonergan talvez seja a de evitar dois extremos no processo de integração dos elementos antropológicos. Um primeiro extremo seria o de unificar, de identificar as diversas antropologias, em vez de integrá-las. As diferenças entre as diversas antropologias, por exemplo, a antropologia cultural ou sociológica ou psicológica ou filosófica, permanecem e precisam ser respeitadas. Com efeito, as antropologias das ciências particulares são limitadas em sua natureza e em seu método; podem fornecer ideias de significativos aspectos parciais do homem, mas devem ser integradas na totalidade, para se tornarem fecundas em vista de uma compreensão global do homem. Por isso, elas não podem suplantar uma antropologia filosófica, cujo método consiste justamente em colher e pensar o homem em sua globalidade. O pensar filosófico tem como objetivo responder a perguntas, tais como: que é o homem? Que está fazendo na terra? Qual sua razão de ser? Como justificar os desejos que o atraem e as inquietudes que o perturbam? São perguntas tipicamente filosóficas, a que não se pode responder só com um incremento do saber científico.

    O segundo extremo seria o oposto do primeiro. Consistiria na dissociação entre o pensamento filosófico e o saber científico. Se é verdade que o pensar filosófico se distingue do saber científico, também é verdade que o pensar filosófico parte do saber científico; e isso tanto porque é do saber científico que vêm as indicações que podem atenuar ou modificar alguns aspectos de certas interpretações do real, também porque estas últimas devem ser depois traduzidas em fatos existenciais próprios de indivíduos concretos. Tal concretização precisa respeitar as estruturas ou leis de fenômenos que só a ciência pode esclarecer. Uma filosofia melhor do homem e da sociedade é possível, se se levar em conta o que a ciência disse ou diz a respeito deles. Uma coisa é que a filosofia tenha suas próprias exigências de método, que são diferentes das de outras ciências, mas – como diz Ricoeur, (1978) – outra coisa é não subordinar justamente a ideia de método ao conceito mais fundamental da relação da verdade com as coisas e as pessoas. É certo que a filosofia antropológica não se identifica com a ciência antropológica, mas não pode deixar de passar através dela e de procurar integrá-la para conhecer e ajudar a pessoa concreta. Se não for assim, a antropologia filosófica torna-se um discurso vão ou separado da objetividade do senso comum e da realidade como é representada pelo homem comum.

    Por outro lado, a psicologia não deveria estar dissociada da filosofia. Como diz Allport (1961): Todos os livros sobre a psicologia da pessoa são ao mesmo tempo livros sobre a filosofia da pessoa (p. XI). Uma psicologia sem pressupostos filosóficos é simplesmente um mito; não existe (Arnold, 1954; De Waehlens, 1958; Wyss, 1973; Krasner e Houts, 1984).

    Neste tema de integração entre os elementos antropológicos, há um aspecto que merece comentário especial, dadas suas importantes implicações metafísicas e metodológicas que tocam um estudo do homem em geral e da vocação cristã em especial. Esse aspecto é um dos pontos principais discutidos pelo Cardeal K. Wojtyla em seu livro The Acting Person (1979a), publicado originalmente em polonês em 1969.

    Como observa o autor na introdução, o livro nasceu da necessidade de ver o aspecto objetivo daquele grande processo cognitivo, que se pode definir na base como experiência do homem (p. 3). Experiência em que conseguimos conhecer a nós mesmos. O livro é uma busca original de um método objetivo para determinar a intuição do homem.

    As análises do livro, feitas de acordo com um método fenomenológico, demonstram que a metafísica tradicional era orientada para uma experiência mais do que tudo exterior. A filosofia grega era filosofia do ser, concebido como objeto, e, portanto, impessoalmente (aquilo que está diante de mim) e não do ser concebido como pessoa. Por isso, a metafísica tradicional não desenvolveu suficientemente o aspecto interior, subjetivo daquela realidade que constitui a pessoa humana. Ora, esse aspecto subjetivo – como ressalta o Autor em outro trabalho (1978a) – é justamente aquilo que no homem não se consegue reduzir ao mundo que o circunda: é justamente aquilo que determina seu ser como pessoa, é a sua experiência vivida (experience lived through ou, em alemão, Erlebnis), que modela a pessoa de maneira especial. Os dois termos, objetivo e subjetivo, não querem opor objetivismo-realismo a subjetivismo-idealismo, ... correntes, filosóficos e mesmo práticos, de considerar o homem: como um objeto ou como um sujeito, porque a subjetividade do homem como pessoa é também objetiva (Wojtyla, 1978a, p. 109; ver também The Acting Person, pp. 56-59).

    Desse modo, realiza-se o que Wojtyla considera uma das principais tarefas de seu livro: uma correta integração dos dois aspectos da experiência humana, o aspecto exterior e o aspecto interior, o objetivo e o subjetivo, cuja diversidade e incomensurabilidade constituíram o ponto em que começou a divisão da filosofia em duas correntes: filosofia do ser, com sua concepção objetivista-realista do homem, e filosofia da consciência (e autoconsciência), com sua concepção subjetivista-idealista da pessoa.

    Muitas vezes, pensa-se que essas duas correntes são irreconciliáveis. Wojtyla demonstra, ao contrário, que tal conciliação é possível, contanto que se renuncie a absolutizar uma dessas correntes para vantagem: 1) de uma sua relativização, 2) de uma possibilidade de provar seus relacionamentos recíprocos, e 3) de um juízo imparcial sobre a contribuição que todas as duas dão à realidade dinâmica do homem. É o que vamos procurar fazer na continuação deste estudo (cf. seções 7 e 8).

    Complementa-se, assim, o estudo e a compreensão do homem no mundo (o tipo cosmológico de compreensão sublinhado pela metafísica clássica) com a compreensão do homem em si mesmo, que Wojtyla sugere chamar de tipo personalístico de concepção do homem (1978a, p. 111). E essa é uma útil integração antropológica e uma contribuição enriquecedora para o estudo do homem. De fato, a doutrina tradicional sobre o homem como pessoa, expressa na definição de Boécio: rationalis naturae individua substantia acentuava... mais a individualidade do ser substancial do homem, como possuidor de uma natureza racional ou espiritual, do que toda a especificidade de subjetividade essencial ao homem como pessoa (Wojtyla, 1978a, p. 109, grifo nosso).

    Poderíamos fazer considerações análogas para a outra definição de homem, que está na base da antropologia tradicional de Aristóteles: o homem zoon lokigon, homo est animal rationale. É verdade que a corrente metafísica aristotélica não considera o homem como objeto. A tradição aristotélico-tomista sublinha a necessidade de tratar o homem como sujeito metafísico, como suppositum ou sujeito de existência e de ação que – em segundo lugar – é pessoa. Mas essa definição é construída de tal modo, que parece excluir a possibilidade de ressaltar a subjetividade do homem. De fato, a definição distingue a espécie (homem) por meio do gênero mais próximo (um ser vivo) e o fator que diferencia a espécie nesse gênero (dotado de razão). Mas a subjetividade, para dizer pouco, indica que o homem não pode ser reduzido ou adequadamente explicado por meio do gênero mais próximo e da diferença específica. Subjetividade é o sinônimo daquilo que é irredutível no homem (Wojtyla, 1978a, p. 109). O ser humano não é redutível ao nível do mundo e da natureza. Daí o crescente interesse da antropologia contemporânea em interpretar a subjetividade pessoal do homem, de que The Acting Person é uma expressão e exemplo.

    Por isso, parece que à virada antropológica em teologia corresponderia uma virada personalista em antropologia, que complemente a concepção cosmológica do homem. Ela está presente também na ética (cf. por exemplo, a contribuição de Wojtyla, 1978b).

    Como consequência dessas duas viradas, estamos cada vez menos dispostos a aceitar como suficientes as definições tradicionais de homem como animal racional ou como rationalis naturae individua substantia. O homem é dificilmente redutível a uma fórmula filosófica; impõe-se uma compreensão mais completa e mais unitária da pessoa humana, que leve em conta os recentes progressos das ciências do homem no que vai além de sua natureza racional ou espiritual. Afinal, isso significa levar em conta um dado de fato, expresso repetidamente pelo Concílio Vaticano II na Gaudium et Spes, p. ex., nos números de 7 a 14: o homem, nas rápidas mudanças da cultura e da sociedade de hoje, manifesta de modo mais agudo sua complexidade e problematicidade, as quais, entretanto e em última análise, têm sua raiz no coração do próprio homem (cf. ibid., n. 10), sua subjetividade pessoal.

    Essa subjetividade da pessoa é bem expressa pelo método transcendental de Lonergan; de fato, ele é desenvolvido em termos das operações do sujeito, descobertas no sujeito

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