O ano da cólera: Protestos, tensão e pandemia em 5 países da América Latina
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Sobre este e-book
Em O ano da cólera a jornalista e correspondente da Folha de S. Paulo, Sylvia Colombo se debruça sobre cinco países da América Latina e oferece um panorama sobre o que aconteceu antes e durante a pandemia, nos turbulentos anos de 2019 e 2020. O livro traz os protestos e tensões no Chile, na Bolívia, na Venezuela, na Argentina e no Uruguai, que representaram tanto uma insatisfação coletiva, quanto um presságio de tempos de confinamento e mortes.
Sem deixar de fora as particularidades de cada local, a autora e jornalista conduz o leitor por um passeio pela história e seus personagens. De um lado, governantes – alguns deles ditadores - amados e odiados; do outro, o povo, e a certeza de que a América Latina segue pulsante e complexa. Da acelerada abertura da economia que fez crescer a desigualdade em países como o Chile e a Bolívia aos períodos eleitorais agitados na Venezuela e na Argentina, Sylvia também mostra como o Uruguai se tornou um exemplo de equilíbrio a ser seguido na região.
O recorte feito no livro representa também questões presentes em outras nações da região como o Peru, o Equador e a Colômbia. Há pontos de contato entre as trajetórias dos países da América Latina que viveram alguma convulsão social ou transformações importantes no ano de 2019. A sincronicidade de certos eventos, como o passado colonial em comum e os períodos ditatoriais, deixaram chagas abertas que ainda latejam.
A Covid-19 escancarou ainda mais a dependência e miséria latino-americanas diante de sistemas de saúde precários e governos negacionistas, incompetentes ou corruptos. O livro mostra que sem perspectiva para o fim do coronavírus, a América Latina pós-pandemia ainda terá muito o que enfrentar.
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O ano da cólera - Sylvia Colombo
CHILE
Enterrando o último resquício da ditadura
CHEGAR A S ANTIAGO PARA cobrir o plebiscito que definiria se a população queria ou não que o país tivesse uma nova Constituição foi como aterrissar numa cidade que tinha atravessado uma guerra ou sido varrida por alguma catástrofe natural.
Foi assim que vi a capital chilena quando nela desembarquei em 22 de outubro de 2020, apenas três dias antes da votação que havia sido convocada pelo presidente Sebastián Piñera para acalmar os ânimos de incansáveis manifestantes. Eles haviam estado nas ruas desde o dia 18 de outubro do ano anterior, parando apenas por alguns meses por conta da pandemia do novo coronavírus.
Seu grito havia ficado marcado nas pedras. Os muros da cidade, portas de lojas, estátuas e pontes estavam cheios de pichações com gritos de guerra e mensagens contra o governo. Uma das mais comuns era a que dizia: Não são trinta pesos, são trinta anos.
Ela fazia referência ao fato de que as manifestações não haviam começado apenas por conta de um aumento nas tarifas do metrô, mas sim por toda a injustiça social presente na sociedade desde o período da redemocratização.
De certa forma, essas pinturas contavam visualmente, e no espaço de apenas um ano, a história do turbulento período que o país havia vivido até ali.
A chaga que o Chile ainda tenta fechar, de fato, está aberta há muito tempo. Mais especificamente, desde a manhã do dia 11 de setembro de 1973, quando as Forças Armadas iniciaram uma movimentação para constranger o presidente socialista democraticamente eleito Salvador Allende e forçá-lo a deixar o poder.
Allende governava desde novembro de 1970, com uma agenda que prometia diminuir a terrível desigualdade que sempre castigou o Chile. Desde a campanha eleitoral, as forças que estavam desgostosas com sua candidatura — principalmente o empresariado capitalista e a aristocracia, com seus privilégios — haviam colaborado para, primeiro, tentar fazer com que sua eleição fosse impossível.
O que hoje chamamos de fake news abundavam no discurso de seus opositores. Foi sua primeira estratégia. Diziam que Allende iria instalar uma ditadura proletária, mudar o modelo econômico do país e promover transformações por meio da luta armada.
Só que era tudo falso.
Allende era um socialista que não aceitava outra via que não fosse a democrática para chegar ao poder e para realizar seus projetos. Tanto que o revolucionário Che Guevara, ao autografar um livro seu para entregá-lo ao chileno, escreveu: Para Allende, que por outros caminhos busca conseguir o mesmo.
Segundo documentos que vieram a público ao longo das últimas décadas, ficou comprovado que os EUA de fato intervieram nas eleições chilenas, apoiando os grupos opositores a Allende. Entre os interesses norte-americanos no país, estavam suas grandes empresas de mineração, dedicadas principalmente ao cobre. Trata-se de um de seus principais produtos de exportação. O Chile é o maior produtor deste metal, responsável hoje por 28% do mercado global.
Mas essa não foi a única razão para o envolvimento dos EUA no processo político que se desenrolava no Chile. O mundo vivia a dinâmica da Guerra Fria, e para os EUA já era uma enorme dor de cabeça que Cuba tivesse realizado uma revolução socialista e estivesse, naquele período, sob a influência da então URSS. Se houvesse outro país na América Latina com essa mesma orientação, isso seria um verdadeiro pesadelo para os norte-americanos.
Depois da vitória de Allende nas urnas, a estratégia dos opositores do líder socialista teve de mudar. Afinal, ele tinha sido eleito pelas regras do jogo democrático e levava muita gente ao entusiasmo. Era necessário encontrar um outro meio de destruir seu projeto. O foco foi posto, então, em tentar dinamitar as possibilidades que ele pudesse vir a ter de implementar suas políticas.
Para isso, continuaram recebendo apoio do governo de Richard Nixon. Os norte-americanos nunca enviaram tropas e, até onde se sabe, não dispararam sequer uma bala em território chileno. Porém, está provado que foram partícipes importantes no apoio diplomático, logístico e de inteligência àqueles que de fato articularam, em primeiro lugar, a estratégia de dinamitar a governabilidade de Salvador Allende. Depois, no golpe militar que em 11 de setembro de 1973 derrubou o presidente.
O país viveria, desde então, 16 anos de uma ditadura que, para se impor, agiu de modo sangrento. Mais de três mil pessoas desapareceram e outras 35 mil foram torturadas, segundo estimativas de organizações de direitos humanos. Além disso, cerca de duzentos mil chilenos tiveram de deixar o país. Alguns só voltariam depois da redemocratização, outros jamais o fariam.
Apesar de o golpe militar não ter tomado os chilenos de surpresa (afinal, havia meses que já se falava de traição na alta cúpula das Forças Armadas, e de um possível levante para tirar Allende do poder), a violência desatada logo nos primeiros dias e nos anos que se seguiram ao golpe foi surpreendente para