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1984
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E-book388 páginas5 horas

1984

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Sobre este e-book

1984, a obra mais popular de George Orwell, é um impactante romance ambientado em um mundo dividido em três superestados que se mantêm constantemente em guerra. Governada pelo Grande Irmão (Big Brother), que vê e tudo sabe, a sociedade segue os princípios do Socing.
O Partido detém o controle social e o consuma por meio de teletelas, que espionam continuamente a vida dos cidadãos. Entre eles, Winston Smith, um pobre trabalhador do Ministério da Verdade que, ao descobrir o amor por Julia, descobre também que a vida não precisa ser monótona e mortal, o que lhe desperta novas possibilidades.
Apesar de os helicópteros da polícia costumeiramente pairarem e circularem ao alto, Winston e Julia começam a questionar o Partido e são atraídos para um ideal conspiratório. Contudo, o Grande Irmão não tolera dissidentes – mesmo sendo um crime de pensamento. Àqueles com ideias originais, portanto, foi inventada a Sala 101.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de mai. de 2022
ISBN9786589711377
1984
Autor

George Orwell

George Orwell (1903–1950), the pen name of Eric Arthur Blair, was an English novelist, essayist, and critic. He was born in India and educated at Eton. After service with the Indian Imperial Police in Burma, he returned to Europe to earn his living by writing. An author and journalist, Orwell was one of the most prominent and influential figures in twentieth-century literature. His unique political allegory Animal Farm was published in 1945, and it was this novel, together with the dystopia of 1984 (1949), which brought him worldwide fame. 

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    1984 - George Orwell

    capítulo 1

    Era um dia frio e claro de abril, e os relógios batiam uma da tarde. Winston Smith, com o queixo enfiado no peito, esforçando-se para escapar do vento forte, passou rapidamente pelas portas de vidro das mansões Victory, porém, não tão rápido a ponto de evitar a entrada de poeira com ele.

    O cômodo cheirava a repolho cozido e a trapos de tapetes. Num dos cantos, um pôster colorido, grande demais para lugares fechados, foi pregado na parede. Ilustrava simplesmente um rosto enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de aproximadamente quarenta e cinco anos, com um bigode negro e espesso e feições robustamente belas. Winston avançou em direção à escada. Não compensava tentar o elevador. Até mesmo quando tudo corria bem, raramente funcionava; inclusive, nos dias atuais, a eletricidade era mantida cortada durante a luz do dia. Era parte da tentativa de economia durante os preparativos da Semana do Ódio. O apartamento ficava no sétimo andar, e Winston, com trinta e nove anos e uma úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes ao longo do caminho. Em cada andar, em frente ao elevador, o pôster com o rosto enorme observava-o da parede. Era uma daquelas figuras tão elaboradas que os olhos seguiam você quando se movia. O GRANDE IRMÃO ESTÁ OBSERVANDO VOCÊ, dizia o letreiro embaixo.

    Dentro do apartamento, uma voz doce lia alto uma lista de cifras que tinham alguma coisa a ver com a produção de ferro-gusa. A voz vinha de uma placa de metal parecida com um espelho fosco, que fazia parte da superfície da parede da direita. Winston girou um botão e a voz diminuiu, embora ainda conseguisse entender o que estava sendo falado. O volume do instrumento (teletela era seu nome) podia ser regulado, mas era impossível desligá-lo completamente. Ele se moveu até a janela. Sua pequena e frágil figura, bem como a magreza de seu corpo eram evidenciadas pelo macacão azul, o uniforme do Partido. Seu cabelo era muito claro, o rosto naturalmente sanguíneo e sua pele era áspera devido ao sabonete ruim, às lâminas sem cortes e ao frio do inverno que chegara ao fim recentemente.

    Lá fora, mesmo visto da janela fechada, o mundo parecia frio. Lá embaixo, na rua, pequenos redemoinhos de vento giravam poeira e pequenos papéis em espirais. Embora o sol estivesse brilhando e o céu estivesse muito azul, parecia não haver cor em nada, exceto nos pôsteres colados em toda parte. O rosto de bigode negro observava de todo lugar. Havia um colado na casa do outro lado da rua. O GRANDE IRMÃO ESTÁ OBSERVANDO VOCÊ, dizia o letreiro, enquanto os olhos negros olhavam imediatamente para os de Winston. Mais para baixo, no nível da rua, outro pôster, com uma das pontas rasgadas, balançava intermitentemente ao vento, cobrindo e descobrindo alternadamente a solitária palavra: Socing (Socialismo Inglês). Ao longe, um helicóptero, voando baixo sobre os telhados, pairou um instante como uma mosca e se afastou novamente, fazendo uma curva. Era a patrulha policial, observando através das janelas das pessoas. Todavia, as patrulhas não importavam. O único problema era a Polícia das Ideias.

    Por trás de Winston, a voz da teletela ainda falava sobre o ferrogusa e o total cumprimento do Nono Plano de Três Anos. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer som produzido por Winston, que ultrapassasse o nível de um sussurro muito baixo, era captado por ela. Além disso, enquanto ele permanecia no ponto de visão da placa de metal, podia ser visto e ouvido. Não havia como saber se você estava sendo observado num determinado momento. Também não tinha como saber qual o sistema ou a frequência usada pela Polícia das Ideias para observar cada tela individual. Era possível até que eles observavam todos o tempo inteiro. De qualquer modo, eles podiam se conectar à teletela a hora que quisessem. Você era obrigado a viver — e vivia, devido ao hábito que virou instinto — acreditando que, exceto na escuridão, todo som emitido seria ouvido e todo movimento realizado seria analisado.

    Winston manteve suas costas viradas para a tela. Era mais seguro, no entanto, como ele sabia, até as costas podiam revelar algo. A um quilômetro de distância, o Ministério da Verdade, seu local de trabalho, erguia-se vasto e branco acima da paisagem encardida. Aquela, pensou um pouco contrariado, era Londres, principal cidade da Faixa Aérea Um, terceira mais populosa das províncias da Oceânia. Tentou vasculhar alguma lembrança de sua infância que lhe mostrasse se Londres sempre fora assim. Será que sempre houvera aquela vista de casas velhas do século XIX, com as paredes escoradas com vigas de madeira, janelas remendadas com papelão e telhados com ferro ondulado, além de decadentes muros de jardins por todo lado? Os lugares bombardeados, com o pó de gesso rodopiando no ar e a erva de salgueiro se espalhando sobre o entulho? E os locais, onde as bombas abriram grandes clareiras e brotaram sórdidas colônias de madeira que pareciam galinheiros? Contudo, não adiantava; ele não conseguia se lembrar. Nada mais era como na sua infância, exceto uma série de tableaux iluminados, sem paisagem de fundo e geralmente ininteligíveis.

    O Ministério da Verdade — Miniver, em Novilíngua (língua oficial da Oceânia — para mais informações sobre sua estrutura e etimologia, ver Apêndice) — era extremamente diferente de todos os outros objetos. Era uma enorme pirâmide de concreto branco cintilante, projetando-se, terraço após terraço, trezentos metros acima. De onde Winston estava, só era possível ler, na parede branca em letras elegantes, os três slogans do Partido:

    GUERRA É PAZ

    LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

    IGNORÂNCIA É FORÇA

    Comentava-se que o Ministério da Verdade possuía três mil salas acima do nível do solo e, abaixo deste, ramificações equivalentes. Em Londres, havia somente três outros prédios de aparência e tamanho parecidos. Eles reduziram tanto a arquitetura circundante que, do telhado das mansões Victory, era possível avistar os quatro simultaneamente. Eram as sedes dos quatro Ministérios entre os quais o governo era dividido. O Ministério da Verdade era responsável por notícias, entretenimento, educação e belas artes. O Ministério da Paz se responsabilizava pela guerra. O Ministério do Amor era responsável por manter a lei e a ordem. O Ministério da Pujança era responsável pela economia. Em Novilíngua, seus nomes eram Miniver, Minipaz, Miniamor e Minipuja.

    O Ministério do Amor era o mais apavorante, pois não havia janelas no edifício. Winston nunca entrara no Ministério do Amor, nem a meio quilômetro de distância. Era impossível entrar no prédio sem uma justificativa oficial. Mesmo nesse caso, era necessário passar por um labirinto de novelos de arame farpado, portas de aço e ninhos ocultos de metralhadora. Até mesmo as ruas que levavam até as barreiras externas eram vigiadas por guardas com cara de gorila, vestindo uniformes negros e armados de cassetetes. De repente, Winston se virou e fez uma cara com o objetivo de ostentar a expressão de otimismo que convinha ter no rosto quando encarava a teletela. Atravessou a sala e entrou na pequena cozinha. Para poder sair do Ministério naquele horário, sacrificara seu almoço na cantina. Sabia que não havia nenhuma comida na cozinha, exceto um pedaço de pão escuro que ele guardara para comer no café da manhã do dia seguinte. Da prateleira, tirou uma garrafa de líquido incolor com uma simples etiqueta branca na qual se lia gim Victory. A bebida exalava um cheiro oleoso parecido com o da aguardente de arroz dos chineses. Winston serviu-se com um pouco menos que uma xícara de chá, preparou-se para o choque e engoliu o líquido como quem toma um remédio.

    No mesmo instante, seu rosto ficou vermelho e lágrimas começaram a escorrer dos olhos. O líquido era como ácido nítrico, e pior, engoli-lo dava a sensação de receber um golpe de cassetete na nuca. Entretanto, a queimação em seu estômago passou, e o mundo começou a parecer mais agradável. Tirou um cigarro de um maço amassado no qual se lia cigarros Victory. Imprudentemente, segurou-o na vertical, o que fez com que o tabaco caísse ao chão. Na tentativa seguinte, ele teve mais sorte. Voltou para a sala e se sentou junto a uma mesinha que ficava à esquerda da teletela. Tirou, da gaveta da mesa, um porta-penas, um vidro de tinta e um caderno grosso, sem nada escrito, de lombada vermelha e capa marmorizada.

    Por alguma razão, a teletela da sala estava numa posição diferente. Ao invés de estar, como sempre na parede do fundo, de onde podia visualizar a sala inteira, estava na parede mais longa, oposta à janela. Em um de seus lados, havia uma reentrância na qual Winston se posicionara e, provavelmente na época da construção dos apartamentos, abrigava uma estante de livros. Sentado na reentrância e permanecendo ao fundo, Winston ficava fora do alcance de visão da teletela. Podia ser ouvido, é claro! Contudo, enquanto ficava naquela posição, não podia ser visto. Em parte, foi a geografia pouco comum do cômodo que lhe dera a ideia de fazer o que estava a ponto de fazer, mas também foi sugerido pelo caderno que tirara da gaveta. Era um caderno singularmente bonito. Com papel acetinado, cor de creme, um pouco amarelado pelo tempo, era um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Podia imaginar, entretanto, que o caderno era muito mais velho do que isso. Ele o vira exposto na vitrina de uma desleixada loja de badulaques em um bairro pobre da cidade (qual bairro já não se lembrava) e, no mesmo instante, fora tomado pelo desejo de possuí-lo. Membros do Partido não deveriam frequentar lojas comuns (dedicadas ao livre comércio como eram chamadas), no entanto, era impossível obedecer a esta regra com tanto afinco, pois havia diversas coisas, a exemplo do cadarço de tênis e da lâmina de barbear, impossíveis de conseguir de outra maneira. Dera uma olhada rápida para os dois lados da rua, entrara na loja e comprara o caderno por dois dólares e cinquenta centavos. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para algum propósito específico. Sentindo-se culpado, levara-o para casa, dentro de sua pasta. Mesmo sem nada escrito nele, era um bem comprometedor.

    A coisa que estava prestes a fazer era começar um diário. Não era ilegal (nada era ilegal, haja vista que não existiam leis), entretanto, se fosse descoberto, era praticamente certo que seria punido com a morte ou pelo menos com vinte e cinco anos de prisão com trabalhos forçados. Winston colocou a pena no porta-penas e a chupou para retirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, pouco usado até para assinaturas. Ele adquirira aquela, furtivamente e com alguma dificuldade, somente porque sentiu que o belo papel creme merecia que se escrevesse nele com uma pena de verdade, ao invés de ser rabiscado com lápis-tinta. Na verdade, ele não estava acostumado a escrever à mão, exceto para anotações curtas. O comum era ditar tudo ao ditógrafo, o que evidentemente não era possível naquela circunstância. Mergulhou a caneta na tinta e vacilou por um segundo. Um tremor percorreu suas entranhas. Marcar o papel era um ato decisivo. Em pequenas letras desajeitadas, escreveu:

    4 de abril de 1984.

    Recostou-se na cadeira, e uma sensação de completo desamparo percorreu-o. Para começar, já não tinha certeza de que estava mesmo em 1984. Devia ser mais ou menos isso, porque sabia ter trinta e nove anos e acreditava ter nascido em 1944 ou 1945. Contudo, atualmente, era impossível precisar uma data sem margem de erro de um ou dois anos.

    Para quem, ocorreu perguntar-se de repente, estava escrevendo aquele diário? Para o futuro, para os não nascidos. Por um momento, sua mente deu voltas em torno da data incerta na página. Depois, com um solavanco, colidiu com um termo em Novilíngua: duplipensamento. Pela primeira vez, a magnitude de seu projeto o atingiu. Como comunicar-se com o futuro? Era algo naturalmente impossível. Ou o futuro seria parecido com o presente e não se importaria com o que ele tinha a dizer, ou seria diferente e seu diário não faria sentido.

    Por algum tempo, ficou sentado contemplando estupidamente o papel.  A teletela passara a transmitir uma música militar estridente. Curioso, pois parecia que não havia perdido somente a capacidade de se expressar, como também esquecido o que originalmente iria dizer. Durante semanas, havia se preparado para aquele momento e nunca pensara que precisaria de algo além de coragem. Escrever, em si, seria fácil. Tudo o que tinha a fazer era passar para o papel o interminável e incansável monólogo que, há anos literalmente passava em sua cabeça. Contudo, naquele momento, até o monólogo sumira. Além disso, sua úlcera varicosa começou a comichar insuportavelmente. Não ousava coçar-se, porque se fizesse, ela inflamaria. Os segundos passavam. Só estava consciente do vazio das páginas à sua frente, da comichão na pele acima do tornozelo, da música estridente e de uma leve zonzeira causada pelo gim.

    De repente, começou a escrever de puro pânico, somente um pouco consciente sobre o que estava anotando. Sua letra infantil e pequena se espalhava pela página de modo desorganizado, abandonando primeiro as letras maiúsculas e, depois, até os pontos finais.

    4 de abril de 1984. Ontem à noite cinema. Todos filmes de guerra. Um deles muito bom sobre um navio cheio de refugiados sendo bombardeado em algum lugar do Mediterrâneo. A audiência achando muita graça nos tiros dados em um homem gordo que tentava nadar para longe, perseguido por um helicóptero; primeiro ele aparecia chafurdando na água como um golfinho, depois ele aparecia na mira do helicóptero e, na sequência, já estava cheio de buracos e o mar em volta ficou rosa e ele afundou tão de repente que parecia que a água tinha entrado pelos buracos. público chorando de rir quando ele afundou. depois aparecia um bote salva-vidas cheio de crianças com um helicóptero logo acima. tinha uma mulher de meia-idade que devia ser judia sentada na proa com um menino de uns três anos em seus braços. garotinho chorando de medo e escondendo a cabeça entre seus seios como se tentasse se enterrar nela e a mulher envolvendo-o com os braços e tentando confortá-lo, contudo, ela também estava com muito medo, todo o tempo cobrindo-o o máximo possível como se pensasse que seus braços o protegeriam das balas.  então o helicóptero jogou uma bomba de vinte quilos no meio deles clarão terrível e o bote virou um monte de gravetos. então uma tomada sensacional do braço de uma criança subindo subindo subindo pelo ar um helicóptero com uma câmera no nariz deve ter acompanhado o braço subindo e teve muitos aplausos nos assentos do partido mas uma mulher do setor dos proletariados de repente começou a discutir e a gritar que eles não deviam mostrar aquilo na frente das crianças não podiam não era direito não na frente das crianças não era até que a polícia colocou ela colocou ela para fora acho que não aconteceu nada com ela ninguém se importa com o que os proletas falam típica reação de proleta eles nunca....

    Winston parou de escrever, em parte, porque estava com cãibra. Não sabia o que o fizera anotar aquele monte de idiotices. Todavia, o curioso era que, enquanto ele escrevia, uma lembrança completamente diferente se formara em sua mente, a ponto de quase decidir registrá-la. Percebeu que, por causa desse outro incidente, decidiu ir para casa e começar a escrever no diário.

    Acontecera naquela manhã no Ministério, se é que se podia dizer que algo tão nebuloso pudesse ser chamado de acontecimento.

    Eram quase onze da manhã, e no Departamento de Registros, onde Winston trabalhava, já haviam retirado as cadeiras das estações de trabalho para colocá-las no centro do salão, em frente à grande teletela, nos preparativos para os Dois Minutos de Ódio. Winston estava se instalando em uma das cadeiras da fileira do meio, quando, de repente, duas pessoas que ele conhecia de vista, mas que nunca conversara, entraram no salão. Uma delas era uma garota com quem sempre cruzava nos corredores. Ele não sabia seu nome, mas sabia que ela trabalhava no Departamento de Ficção. Presumiu — já que a vira algumas vezes, com as mãos sujas de óleo e carregando uma chave inglesa — que tivesse alguma função mecânica em alguma das máquinas de romances. Era uma garota de ar provocador, de uns vinte e sete anos, com cabelo negro e abundante, sardas e movimentos atléticos e bruscos. Carregava uma faixa estreita, escarlate, emblema da Liga Juvenil Antissexo, enrolada na cintura, por cima do macacão, de modo a mostrar delicadamente as curvas de seus quadris. Winston antipatizara com ela desde a primeira vez que a vira. Sabia o porquê. Era devido à atmosfera de quadras de hóquei, banhos frios, caminhadas comunitárias e mente pura que, por algum motivo, carregava com ela. Ele tinha aversão por quase todas as mulheres, principalmente, pelas jovens e bonitas. Sempre as mulheres, sobretudo as jovens, fanáticas pelo Partido, devoradoras de slogans, espiãs amadoras e farejadoras de rebeldia, todavia, aquela garota em especial lhe dera a impressão de ser mais perigosa do que a maioria. Certa vez, quando os dois se cruzaram no corredor, ela lhe dirigira um rápido olhar torto que parecera perfurar seu corpo e, por um momento, preenchê-lo com o mais profundo horror. Inclusive ele pensou que ela poderia ser da Polícia das Ideias. Isso, na verdade, era muito improvável. Mesmo assim, ele continuou a sentir um estranho desconforto, misturando medo e hostilidade, sempre que ela estava por perto.

    A outra pessoa era um homem chamado O’Brien, membro do Núcleo do Partido e ocupante de um cargo tão importante e remoto que Winston tinha apenas uma ideia de qual fosse sua natureza. Um momentâneo silêncio recaiu sobre as pessoas que cercavam as cadeiras assim que viram o macacão negro de um membro do Partido. O‘Brien era um homem grande, corpulento, de pescoço grosso e rosto rude, brutal. Apesar de sua formidável aparência, tinha um certo charme em seu jeito. Tinha uma mania de reposicionar os óculos no nariz que era curiosamente desarmante — de um jeito impossível de definir, curiosamente civilizado. Era um gesto que, se ainda fosse possível alguém pensar nesses termos, poderia lembrar um nobre inglês do século XVIII oferecendo a caixa de rapé. Talvez Winston cruzara com O’Brien uma dúzia de vezes ao longo do mesmo tanto de anos. Sentia-se profundamente atraído por ele e não era somente pelo contraste entre seus modos educados e seu físico de lutador que o intrigavam.  Era muito mais por causa de uma crença secreta — ou talvez não uma crença, mas uma esperança — de que a política ortodoxa de O’Brien não era perfeita. Algo em seu rosto irresistivelmente sugeria isso. De novo, talvez não fosse nem inortodoxia o que estava escrito em seu rosto, mas simplesmente inteligência. De qualquer forma, ele parecia ser a pessoa com quem se podia conversar, se por acaso, conseguisse driblar a teletela e ficar a sós com ele. Winston nunca fez o mínimo esforço para verificar aquilo. Na verdade, não havia como fazê-lo. Naquele momento, O’Brien verificou seu relógio de pulso, viu que eram quase onze horas e evidentemente decidiu ficar no Departamento de Registros até o término dos Dois Minutos de Ódio. Ocupou uma cadeira na mesma fileira de Winston, alguns assentos de distância. Uma mulher pequena, ruiva, que trabalhava numa sala próxima a de Winston, estava sentada entre eles. A garota de cabelo negro estava logo atrás.

    Um pouco depois, um barulho horripilante, estridente, como o som de uma máquina monstruosa girando sem óleo, saiu da enorme teletela do fundo da sala. Era um som que mexia com os nervos da pessoa e arrepiava até os pelos da nuca. O Ódio tinha começado.

    Como de costume, o rosto de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, apareceu na tela. Ouviram-se assobios, aqui e ali, na plateia. A mulher pequena e ruiva soltou um barulho no qual medo e repugnância se misturavam. Goldstein era o renegado e apóstata que, um dia, muito tempo atrás (quanto tempo ninguém sabia ao certo), fora uma das figuras destacadas do Partido, quase tão importante quanto o próprio Grande Irmão. Só que, depois, engajara-se em atividades contrarrevolucionárias, fora condenado à morte, fugira misteriosamente e desaparecera. Todos os dias, a programação dos Dois Minutos de Ódio era diferente, entretanto, Goldstein sempre era a figura principal. Ele era o traidor original, o primeiro que conspirara contra a pureza do Partido. Todos os crimes subsequentes contra o Partido, todas as perfídias, sabotagens, heresias e desvios eram resultado direto de sua pregação. De algum jeito, ele continuava vivo e planejando conspirações: talvez em algum lugar além mar, sob a proteção de seus aliados estrangeiros — como diziam ocasionalmente os rumores — em algum esconderijo na própria Oceânia.

    O diafragma de Winston se contraiu. Ele era incapaz de olhar para o rosto de Goldstein sem sentir uma mistura dolorosa de emoções.  Era um rosto judaico chupado, envolto por uma vasta penugem de cabelo branco e com um pequeno cavanhaque — um rosto esperto e, apesar disso, inerentemente desprezível, com uma espécie de tolice senil no longo nariz fino, em que se equilibrava um par de óculos perto da ponta. Lembrava a cara de uma ovelha, e a voz também tinha uma qualidade meio ovina. Goldstein bradava seu venenoso ataque às doutrinas do Partido — um ataque tão exagerado e perverso que não servia nem para enganar uma criança. Ao mesmo tempo, plausível a ponto de fazer com que as pessoas fossem tomadas pela sensação alarmada de que outras pessoas, menos equilibradas do que ele, poderiam ser iludidas pelo que estava sendo falado.

    Goldstein atacava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata celebração da paz com a Eurásia e defendia a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, assim como gritava histericamente que a revolução fora traída. Tudo isso num discurso polissilábico que parecia uma paródia de estilo habitual dos oradores do Partido, inclusive com palavras em Novilíngua. Aliás, mais palavras em Novilíngua do que qualquer membro do Partido poderia normalmente utilizar na vida real. Para que ninguém tivesse dúvida da realidade encoberta pela fala de Goldstein, o tempo todo, atrás de sua cabeça, na teletela, apareciam colunas intermináveis do exército da Eurásia — várias fileiras de homens de fisionomia sólida e asiática sem expressão. Esses homens surgiam e desapareciam na tela para serem substituídos por outros iguais. O barulho abafado e ritmado das botas dos soldados formava o pano de fundo para a voz de Goldstein.

    Depois de quase trinta segundos de reunião do Ódio, metade dos presentes no salão começara a emitir exclamações incontroláveis de raiva. A visão do rosto de ovelha satisfeito na tela e do terrível poder do exército eurasiano atrás eram demais para suportar. Além disso, a visão, ou mesmo a ideia de Goldstein, produziam automaticamente medo e raiva. Ele era um objeto de ódio ainda mais comum do que a Eurásia ou a Lestásia, pois, quando a Oceânia estava em guerra com uma dessas potências, geralmente estava em paz com a outra. O curioso era que, apesar de Goldstein ser odiado e desprezado por todos e apesar de todos os dias, mil vezes por dia, nas plataformas, nas teletelas, nos jornais, nos livros, suas teorias serem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, expostas ao escárnio geral como o lixo que eram, o crescimento de sua influência parecia nunca diminuir. Sempre havia novos idiotas para serem seduzidos por ele.

    Não passava um dia sem que espiões e sabotadores simpatizantes dele fossem desmascarados pela Polícia das Ideias. Ele era o líder de um vasto exército nas sombras, uma rede clandestina de conspiradores dedicados a derrubar o Estado. A Confraria era o seu suposto nome. Também havia rumores sobre um livro terrível, um apanhado de todas as heresias, do qual Goldstein era o autor e que circulava clandestinamente aqui e ali. Era um livro sem título. As pessoas se referiam a ele simplesmente como O LIVRO. Contudo, elas só sabiam dessas coisas por meio de boatos imprecisos. Nem a Confraria nem O LIVRO eram assuntos que um membro comum do Partido mencionaria se pudesse evitá-lo.

    Em seu segundo minuto, o Ódio virou uma loucura. As pessoas pulavam em seus lugares, gritando, com toda força, no esforço de afogar a terrível voz que saía da tela. A mulher pequena e ruiva estava num tom cor-de-rosa vivo, e sua boca se abria e se fechava como a de um peixe fora d’água. Até o rosto severo de O’Brien ficara rubro. Ele estava sentado muito ereto em sua cadeira; seu peito vigoroso estufava e estremecia como se estivesse enfrentando uma vaga. A garota de cabelo negro, atrás de Winston, começara a gritar Porco! Porco! Porco! e, de repente, apanhou um pesado dicionário de Novilíngua e o jogou contra a tela. O livro bateu no nariz de Goldstein e caiu: a voz, inexorável, prosseguia. Num momento de lucidez, Winston percebeu que estava gritando junto com os outros e golpeando violentamente a trave de sua cadeira com os calcanhares. O pior dos Dois Minutos de Ódio não era o fato de a pessoa ser obrigada a fazer parte, ao contrário, de ser impossível se manter quieta. Depois de trinta segundos, não era necessário fingir. Um êxtase horrível de medo e de vingança, sob o desejo de matar, de torturar e de afundar rostos com uma marreta parecia circular por todos como uma corrente elétrica, transformando-os, ainda que contra a vontade, em lunáticos a gritar e berrar. Mesmo assim, a raiva sentida era abstrata, sem direção, que podia ser transferida de um objeto para outro como a chama de um maçarico. Desse modo, num determinado instante, a ira de Winston não se voltava contra Goldstein, ao contrário, voltava-se para o Grande Irmão, para o Partido e para a Polícia das Ideias. Em momentos como esse, seu coração se solidarizava com o herege solitário e ridicularizado que aparecia na tela, único guardião da verdade e da sanidade em um mundo cheio de mentiras. Ainda assim, no instante seguinte, juntava-se àqueles que o cercavam e tudo o que era dito sobre Goldstein parecia ser verdade. Nesses momentos, sua aversão secreta pelo Grande Irmão se transformava em adoração, e o Grande Irmão adquiria uma grandeza, transformava-se num protetor destemido, firme feito rocha, para lutar contra as hordas da Ásia. Já Goldstein, a despeito de seu isolamento, de sua vulnerabilidade e da incerteza que cercava sua existência, tornava-se um mago sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização apenas com o poder de sua voz. Em algumas ocasiões, era possível alterar o objeto do próprio ódio através de um ato voluntário. Inesperadamente, graças a um esforço violento parecido com aquele ao qual recorremos para erguer a cabeça do travesseiro durante um pesadelo, Winston transferiu seu ódio do rosto da tela para a garota de cabelo negro que estava atrás dele. Alucinações vívidas, bonitas, passavam por sua mente. Ele a golpearia até a morte com um cassetete de borracha. Haveria de amarrá-la nua a uma estaca e, depois, alvejá-la com flechas como São Sebastião. Haveria de violentá-la e cortaria sua garganta no momento do clímax. Agora, mais do que antes, percebia por que a odiava. Odiava-a porque era jovem, bonita e assexuada, porque queria ir para cama com ela e nunca faria isso, porque, em volta de sua adorável cintura flexível, que parecia lhe pedir que a envolvesse com o braço, havia a horrenda faixa escarlate, símbolo agressivo de castidade.

    O Ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein se transformara num balido de ovelha e, por um instante, seu rosto assumiu um semblante de ovelha. Em seguida, o semblante de ovelha sumiu e foi substituído pelo rosto de um soldado da Eurásia que parecia avançar, grande e terrível, com metralhadora roncando como se pretendesse saltar para fora da tela, de modo que algumas pessoas sentadas na primeira fileira se projetaram para trás em suas cadeiras. No mesmo instante, levando todos os presentes a suspirarem aliviados, a figura hostil desapareceu para dar lugar ao rosto do Grande Irmão, com cabelo negro, bigode negro, cheio de poder e calma misteriosa e tão grande que quase preenchia toda a tela. Ninguém ouvia o que o Grande Irmão estava dizendo. Eram apenas algumas palavras de encorajamento, isto é, palavras ditas no calor da batalha, impossíveis de distingui-las individualmente, mas que restauram a confiança pelo simples fato de serem pronunciadas. O rosto do Grande Irmão sumiu novamente e, em seu lugar, apareceram os três slogans do Partido.

    GUERRA É PAZ

    LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

    IGNORÂNCIA É FORÇA

    O rosto do Grande Irmão parecia ainda estar na tela como se o impacto que a figura causara nas retinas de todos fosse vívido demais para desaparecer instantaneamente. A mulher pequena e ruiva se jogara para frente, apoiando-se no encosto da cadeira à sua frente. Com um murmúrio trêmulo que soava como Meu Salvador!, ela estendeu os braços à tela e enterrou o rosto nas mãos. Aparentemente fazia uma oração.

    Nesse momento, todos os presentes irromperam um canto grave, lento, ritmado, que entoava G-I!... G-I!... G-I!... — uma e outra vez, devagar, com uma longa pausa entre o G e o I — um som grave, em surdina; às vezes curiosamente selvagem, em cujo fundo parecia ouvir-se o ruído de pés descalços golpeando o chão e o latejar de tantãs.  Ficaram assim por aproximadamente trinta segundos. Era um refrão ouvido com frequência em momentos de muita emoção. Em parte, era uma espécie de hino à sabedoria e à majestade do Grande Irmão, mas também era um ato de auto-hipnose, uma ação voluntária de consciência através de um barulho rítmico. Winston gelou por dentro. Durante os Dois Minutos de Ódio, ele não conseguia deixar de fazer parte do delírio geral, mas aquela entonação sub-humana de G-I!... G-I!... sempre o enchia de horror. É claro que cantava com os outros: era impossível não fazer o mesmo. Dissimular os próprios sentimentos, controlar a expressão facial, fazer o que todos faziam: tudo reações instintivas. Todavia, houve um espaço de alguns segundos durante o qual a expressão de seus olhos talvez o tivesse traído. E foi exatamente nesse momento que a coisa significativa ocorreu —

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