Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

O amigo pergunta: Sobre psicanálise pelas redes sociais
O amigo pergunta: Sobre psicanálise pelas redes sociais
O amigo pergunta: Sobre psicanálise pelas redes sociais
E-book364 páginas16 horas

O amigo pergunta: Sobre psicanálise pelas redes sociais

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Escrever sobre psicanálise costuma ser a arte de complicar o que é, por natureza, apenas complexo.

Quem abrir este livro em busca de hermetismos que demandem uma exegese (ou mesmo de palavras como "hermetismo" e "exegese") vai se frustrar: a linguagem aqui é límpida. O autor não quer humilhar ninguém — nem assumir, por algumas páginas, o papel do Superego.

Este é um dos fundamentos do método desenvolvido por Francisco Daudt: deixar de lado o aprisionamento pelo Superego (por submissão ou por rebeldia) e investir na compreensão de como ele se forma — e na apropriação do que seja efetivamente nosso naquilo que parece estar fora (ou acima) de nós. Ou, dito em daudtês, separar o bebê da água do banho. E saber o que descartar, obviamente.

O amigo pergunta amplia — em forma e conteúdo — o processo de desmonumentalização da psicanálise, que vem sendo feito desde A criação original, O aprendiz do desejo, O aprendiz da liberdade e O amor companheiro.

É Freud, sim — mas em "língua de gente".
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento25 de out. de 2022
ISBN9786559055029
O amigo pergunta: Sobre psicanálise pelas redes sociais

Relacionado a O amigo pergunta

Ebooks relacionados

Psicologia para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de O amigo pergunta

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    O amigo pergunta - Francisco Daudt

    O_amigo_pergunta_CAPA_epub.jpg

    Sumário

    Sobre psicanálise

    Sobre a Prática da Psicanálise

    Doenças e outros atrapalhadores do desejo

    Reflexões

    Amigos que fizeram perguntas:

    Adrilles Jorge, Alberto Maia, Bony Schachter, Cláudio Kuyven, Clô Franklin, Clóvis Marques, Cristiano L. Lenz, Douglas Estevam, Eduardo Affonso, Gustavo Wong Berner, Helena Flávia de Rezende Castelo Branco, Ingrid Hilbert, João Fillipe V. N. de Amorim, José Guilherme Vereza, Leandro Alves de Siqueira, Lucas Peccin, Lúcia Bergamaschi Costa Weimar, Marcelo Albiero de Faria, Márcia Pires, Márcio Fagundes, Márcio Guedes, Marcos Frederico F. Lopes, Maria Scalise, Narcisa de Paula, Nelson Vasconcelos, Paula Reis, Pedro Oliveira, Renato Capper, Rodrigo Herzog, Samuel Fernando, Sandra Helena Frazão, Sérgio Perocco.

    Prefácio

    Tenho horror de prefácio.

    Ainda mais num livro que foi escrito para quem não lê, para quem lê só textos pequenos em mídias sociais, para viciados em telinha, para leigos interessados em psicanálise, mas que, com justa razão, largam a leitura ao primeiro termo complicado, para estudantes de psicanálise que querem entender o que leem.

    Eu gosto de nheengatu. Os descobridores perguntaram como se chamava a língua daqueles índios que eles encontraram no litoral. É nheengatu, disseram os índios. Mas o que isso quer dizer? É língua de gente, responderam.

    Pois então: o meu livro fala de psicanálise em língua de gente. E em linguagem de rede social: você pode lê-lo em sequência, ou pode abrir em qualquer página para ler um tópico ou dois, pois ele agora está a seu serviço, como um psicanalista contratado deve fazer.

    E chega de prefácio.

    Sobre psicanálise

    O que é psicanálise?

    Francisco Daudt (F. D.): Originalmente, a palavra inventada por Freud significa análise (ação de decompor um todo em suas partes componentes) da alma (psique, em grego; aparelho psíquico). Em termos atuais, poderíamos dizer que é a investigação do funcionamento dos nossos softwares (os programas ou aplicativos que rodam em nossas mentes).

    É uma tentativa de abordar a coisa mais complexa sobre a face da Terra: a mente humana.

    Ela nasceu de uma incapacidade: Freud viu que as histéricas, sob hipnose, falavam de um passado que não estava alcançável quando acordadas. Falavam de um Inconsciente, algo nelas que se ligava a seus sintomas.

    Só que Freud percebeu que não era bom hipnotizador. Convidou-as então a falarem sem censura. Foi o começo da psicanálise.

    A primeira decomposição em partes foi separar um Inconsciente da consciência e de um pré-consciente. Mais tarde, ele definiu as partes de outra maneira: um Eu (Ego), um Algo em Mim (Id) e um Acima de Mim (Superego).

    A psicanálise foi concebida como um tratamento de doenças psíquicas; a partir das descobertas de Freud, constituiu-se também como uma teoria da mente.

    Ela não é uma ciência, não há como usar o método científico e todos os seus requisitos em sua prática. Afinal, é uma pessoa conversando com outra.

    É um conhecimento que pode estar mais perto ou mais longe da verdade, dependendo dos critérios de seu uso: quanto mais transparentes forem esses critérios; quanto mais eles puderem ser questionados e, caso sejam ilógicos, refutados, mais chances de estar certos eles terão.

    Mas ela parte de premissas que são autoevidentes:

    – existem em nós arquivos de memória inalcançáveis pela consciência, e que são os alicerces de nosso funcionamento mental: o Inconsciente.

    – a maneira como fomos criados deixa marcas em nosso comportamento pelo resto da vida: o Complexo de Édipo.

    A psicanálise não é um conhecimento fechado, ela está em permanente construção/desconstrução. Não há nenhum autor, nem Freud, nem ninguém depois dele, que tivesse proposto uma teoria completa e intocável.

    Não há sentido, portanto, em haver um psicanalista ortodoxo: ortodoxia (opinião certa) pode servir a religiões, mas não a um conhecimento que aspira a ser verdadeiro (em grego, episteme).

    Sendo assim, a psicanálise, mesmo não podendo ser ciência, tem que se valer da epistemologia, da filosofia da ciência, que é o mais eficiente método inventado para se aproximar do conhecimento verdadeiro.

    Esta é a minha proposta para a psicanálise: que ela se ancore na epistemologia, que a busca do verdadeiro seja sua bússola.

    Para isso, tenho em Karl Popper (filósofo da ciência, Viena, 1902-1994) minha principal referência. Seu princípio é a transparência das hipóteses. Que elas sejam fáceis de se detectar o erro nelas contido. Se escaparem dessa peneira, terão mais chances de ser verdadeiras.

    Minha psicanálise, portanto, tem que falar linguagem intencionalmente clara. Não pode falar jargão. Não pode causar perplexidade nem deixar ninguém tonto.

    Tem que mostrar a que veio, tem que explicar seus conceitos, tem que abrir as regras de seu jogo.

    Tem que conquistar confiança; nunca a confiança cega, mas aquela de olhos bem abertos.

    Ela veio para entender e explicar, nunca para confundir.

    Psicanálise e justiça

    O que a psicanálise usa como poder de cura?

    F. D.: Ela usa a justiça.

    Existe em todos nós uma sensibilidade para o par justiça/injustiça. Ele se refere às trocas humanas. É como se houvesse uma balança de dois pratos dentro de nossas cabeças, não à toa ela é o símbolo da justiça. O que é equilibrado, o que é bem acertado, o que está bem para ambas as partes nos dá conforto, nos deixa em paz... porque é justo. A justiça é fundamental para a paz de espírito.

    A injustiça provoca raiva e indignação. Essas duas são o motor de correção do que nos parece errado, danoso. Sem elas, deixaríamos a coisa passar, não haveria incômodo e a injustiça se perpetuaria.

    Podemos dizer então que a raiva é mãe da justiça. A raiva em si não pode ser vista como coisa feia e condenável; precisamos dela para acertar ponteiros com o mundo, para equilibrar a balança da justiça. Ela também pode ser chamada por nomes mais suaves, como desconforto, mágoa, ressentimento. Escolhi resumir tudo isso num nome só: raiva.

    Mas a raiva não é coisa fácil de administrar. Suas expressões mais primitivas são a vingança, o rancor, o ódio que, se transformados em ação, produzirão novas injustiças (pelo exagero), num ciclo interminável. 

    A civilização deu ao Estado o monopólio da violência: só a ele cabe usar de força para fazer com que as leis se cumpram e a justiça se faça. Mesmo que o início deste processo tenha sido meio tosco: no código de Hamurabi (1.800 a.C.) o justo, a justiça era olho por olho, dente por dente. A pena de Talião era ainda bem próxima de uma vingança, uma retaliação (re + ação de Talião).

    A democracia surgiu como alternativa de governo porque os gregos consideraram a tirania injusta: os poderes sempre pendiam para o lado do Tirano (não era um xingamento, era o título do rei), a balança da justiça estava desequilibrada, o povo não era considerado. A partir daí, quando o governante mostrava tendências tirânicas, a assembleia votava sua expulsão escrevendo seu nome numa ostra: era o ostracismo.

    Nas democracias modernas, os poderes foram divididos em três para facilitar a busca de justeza/justiça/equilíbrio. Fala-se muito em harmonia entre Executivo, Legislativo e Judiciário, mas a função implícita deles é suspeitar permanentemente uns dos outros, em alerta contra tendências tirânicas que algum possa exercer. Já vemos aí que a justiça depende de equilíbrio entre poderes. 

    Acontece que, na micropolítica familiar em que nascemos, sempre houve e haverá um desequilíbrio enorme de poder entre os governantes (os pais) e os governados (os filhos). Dada à gigantesca necessidade de amparo com que nascemos, a criança tenderá a entubar qualquer injustiça sofrida, por uma questão de sobrevivência. Se a injustiça desperta raiva, o que fazer quando essa raiva se dirige a alguém que amamos, e de quem dependemos?

    A criança aprende desde cedo que a violência é uma resposta errada para sua raiva. Só que não lhe é ensinada a certa. Ao contrário, o que lhe ensinam é que ter raiva é errado. É claro que a criança não entende as sutilezas com que a raiva pode se apresentar. Mágoa, ciúme, indignação, ressentimento, reclamação, rancor, ódio, intriga, desconforto, tudo é englobado num grande não devo sentir, porque é feio.

    E com isso ela perde a capacidade de buscar justiça. A repressão dos sentimentos de desconforto, face às exigências de convivência com o mundo, se transforma em fonte de doenças psíquicas. Vícios, neuroses e perversões são as manifestações doentes daquele instrumento de justiça perdido.

    Vícios, neuroses e perversões são o que leva alguém a um consultório de psicanalista (isso, na melhor das hipóteses; as perversões e os vícios podem incomodar/ferir os outros muito mais do que causar conflito interno na pessoa).

    Que caminho toma a psicanálise, na busca da cura dessas doenças? Ela usa o poder da justiça. O psicanalista, tal como um advogado de defesa, recebe um prisioneiro da doença, pagando uma pena que se arrasta por décadas, às vezes. Pede os autos do processo para estudá-lo. Questiona os supostos crimes, as culpas e os dolos, as leis e o tribunal que levaram o paciente à doença. Ele dá voz e poder àquela antiga criança, que agora tem lugar e direito a uma segunda instância, a um recurso de sua pena.

    É uma revisão curiosa, pois leis, juízes e tribunais agora moram na cabeça do paciente. Os próprios autos do processo ali estão arquivados de forma codificada no inconsciente do réu. Ao trabalho de advogado, soma-se o de detetive e perito. A libertação do prisioneiro – a cura – se dá em foro íntimo (muito desprivilegiado, aliás), quando o réu se descobre passivo de uma trama de poder que era, de origem, problema de seus pais, mas que ele absorveu e endossou por uma questão de sobrevivência. 

    O psicanalista dá ao ressentimento, à indignação, à revolta, à raiva, à mágoa, ao desconforto, um lugar honroso de escuta, mesmo quando expressos de forma bruta e primitiva, pois sabe que eles são o começo do acerto de ponteiros com a história, o primeiro passo para a reparação necessária. Ao psicanalista caberá mostrar para o réu as formas civilizadas e aceitáveis desses sentimentos, que são pleitos justos de equilíbrio de poder, a serem usados por ele pelo resto de sua vida.

    É o momento em que a psicanálise e o judiciário se assemelham: ambos almejam um valor maior, a Justiça. Ambos lidam com as limitações e dificuldades implícitas à negociação humana. Ambos buscam canais competentes para a indignação com o malfeito, com o erro, com o injusto.

    Ambos não podem se perder nas questiúnculas do dia-a-dia, ambos precisam ter em mente o imperativo que os guia: a busca da Justiça.

    O mapa da mente

    Ego, Id e Superego, inconsciente, pré-consciente, o que é isso tudo?

    F. D.: É uma especie de mapa da mente, desenhado por Freud. No começo, ele a dividiu em consciente (o que está na sua cabeça agora), pré-consciente (o que não está agora, mas você pode alcançar facilmente) e inconsciente (o que nos produz coisas esquisitas, como os sonhos, por exemplo, mas não conseguimos alcançar).

    Num segundo tempo, ele concebeu algo como softwares, programas mentais que se mostram em nossos atos e pensamentos:

    Eu (Ego), é o mais óbvio, é como a gente se vê e se reconhece: eu sou assim.

    O Acima de mim (Superego), uma espécie de juiz que nos critica, que nos cobra, que exige de nós perfeição, que nos faz sentir culpados.

    O Algo em mim (Id), aquele inconsciente que nos produz coisas esquisitas, como sonhos e sintomas, e que nos impulsiona com a força de um Desejo que não nos é claro.

    Esses nomes estranhos (Ego, Id e Superego) estão em latim porque o primeiro tradutor de Freud para o inglês era médico, Ernest Jones, e como todo médico, achou que falar difícil dava mais importância à psicanálise. Pois é… ele foi o primeiro de muitos.

    Democracia mental, a meta da psicanálise

    Você disse que existe guerra política dentro da mente, como assim?

    F. D.: A política se define como correlação de poderes dentro da polis, da cidade-estado grega. Pois eu digo que o mesmo se passa dentro de nossas mentes. Na minha analogia, Ego, Id e Superego se equivalem aos três poderes:

    1. O Ego é o executivo. Ele faz, gerencia, administra… ou sobrevive como pode à guerra dos outros dois.

    2. O Superego é o judiciário. Julga e condena, contém leis tirânicas, critica e põe constantemente o pobre Ego em suspeita de crimes.

    3. O Id é um parlamento, tão problemático como representante dos desejos do povo que suas proposições são todas esquisitas, pois esses desejos são muito inconscientes…

    Quando os sapiens viviam na savana como caçadores-coletores, quando não havia a polis, os poderes se equilibravam melhor. Surgida a agricultura/pecuária, surgiu a polis; surgida a convivência com os estranhos, surgiram as leis e seu dono tirânico: o Superego.

    Tirano não era um xingamento, era o título do rei. A tirania imperou como forma de governo por quase 10 mil anos. Até que, apenas 2.400 anos atrás, surgiu na Grécia Clássica um alternativa notável: a democracia.

    O poder foi formalmente dividido em três, cada um vigiando para que o outro não pusesse as manguinhas de fora e se tornasse tirânico. Havia conversa (parlare, parlamento), havia leis advindas do desejo do povo, claramente exposto em votações, e havia um executivo, que sim, podia ser demitido e mandado para o ostracismo, se se metesse a besta.

    E a psicanálise, o que tem a ver com isso? É que ela pega o cliente em claro domínio da tirania: seu Superego/Tirano o atormenta, porque seus desejos/Id parecem todos errados e pecaminosos. O cliente/Ego vive transgredindo as leis do Tirano, e tendo tremenda ressaca moral depois (nos vícios)… o que fortalece o retorno do Superego. Ou ele é obediente às tais leis, mas vive dominado por esquisitices de seu comportamento, que ele não entende nem controla, e que o alugam imensamente (nas neuroses).

    Esses são os frutos da tirania mental: as doenças.

    A psicanálise sabe que a tirania é injusta; a psicanálise sabe que a sua força de cura mora no nosso inato desejo de justiça; ela usa esse desejo de justiça para mostrar a injustiça da tirania e buscar a democracia mental: dar voz e voto a cada instância; tirar do inconsciente o mais legítimo desejo do povo; fazer do cliente (de seu Ego) o bom gerente/executivo desses desejos…

    … e finalmente, a psicanálise deseja, como Benjamin Franklin incluiu no Bill of Rights, fazer ver ao cliente que ele tem direito à busca da felicidade.

    O Superego como parte do problema

    Você acha que acrescentou alguma coisa às teorias psicanalíticas que já existem?

    F. D.: Creio que sim. Espero ser refutado, que alguém venha me mostrar artigos em que minha hipótese já tenha sido descrita. Mas, como em 45 anos de psicanálise clínica nunca li ou ouvi nada de parecido, tenho a impressão de que, sim, é algo novo. Não apenas novo, mas crucial no jeito de se entenderem as doenças psíquicas e na maneira de se criar uma estratégia de tratamento delas.

    Trata-se de um novo jeito de se ver o Superego. Há uma crença antiga, seja no senso comum, seja na psicanálise, de que o Superego é necessário para a ética, para os processos civilizatórios do indivíduo, para ele ser correto, para eliminação de suas doenças psíquicas e de seus vícios. "Quem não tem Superego é psicopata, é serial killer, é preciso sentir culpa para se andar na linha!", seria o resumo desse pensamento, dessa crença.

    Para questioná-lo, é preciso entender o que ele é e como funciona. O Superego é um software cultural construído em cima de um natural que vem pela genética. O natural é um programa de sobrevivência que se liga a partir dos dois anos de idade: medos. Medos herdados que vêm nos salvando a vida nos últimos 70 mil anos: escuro, altura, confinamento, cobra, grandes répteis, grandes insetos voadores, e um último – o mais importante deles – que será base para a construção dos medos culturais embutidos no Superego, o medo do desamparo.

    A criança de dois anos tem medo de sair de perto dos pais, se está em lugar estranho. Mas já começa a sofisticar esse medo: que coisas ela não pode fazer, pois seus pais não gostam e ela corre o risco de ser desamparada por eles? Quais desejos seus a põem em conflito com a autoridade que a ampara? Ah, mas ela pode ter medo de apanhar, e não de ser desamparada. O medo do castigo físico não é tão grave quanto o medo que vem junto: eles não gostam mais de mim.

    Freud enunciou esses medos como ameaça de castração, mas se isso fazia sentido na época dele – e eu sou tão velho que na infância fui ameaçado de castração, por um tio sádico –, hoje não faz mais. Já a ameaça de desamparo jamais se tornará obsoleta.

    Mais tarde, a ameaça de desamparo passa pra dentro da cabeça: não se sente mais aquela coisa de alguém falando de fora. Não, a criança se antecipa e começa a se vigiar: se, motivada por seus desejos, faz algo de impróprio ou inaceitável pela cultura, sente-se culpada, envergonhada, angustiada, atormentada. As vozes da cultura/pais já passaram para dentro. Já é o Superego em ação.

    Essa guerra se estenderá pela vida afora. Há dois grupos de desejos feios, proibidos, inaceitáveis pela cultura/Superego: os derivados do sexo e os derivados da raiva. Da briga entre esses desejos e o Superego surgirão os sintomas de neuroses e de vícios, frisando que foi a briga que distorceu esses desejos e os tornou mais inaceitáveis ainda.

    São essas as doenças o objeto de investigação e tratamento pela psicanálise.

    Uma segunda face do Superego é a construção imaginada de um Ideal que devemos alcançar. Essa, curiosamente, não tem a ver com a sobrevivência do indivíduo, mas sim com a sobrevivência da espécie, o impulso sexual.

    Ela parte de uma lógica inconsciente: se formos/parecermos perfeitos, não apenas escaparemos da crítica, mas seremos amados. A crítica do Superego nos faz sentir uns merdas; parecer/ser Ideal nos faz sentir fodões. E o fodão parece ter mais chances de acasalamento, parece aumentar nosso cacife sexual.

    E aqui estamos nós: aprisionados entre dois fogos de uma guerra interna. Nosso Eu (Ego) tendo que atender a medos (de desamparo) e ambições (de ser ideal), ambos impossíveis de solucionar, em permanente aluguel mental, sem paz para reflexão, condenado a reagir, tendo que achar um meio de realizar seus desejos. O meio mais costumeiro é a transgressão, quando dizemos foda-se ao Superego, com a consequente ressaca moral, culpa e angústia por tê-lo desafiado.

    O que entendi é que nossa relação com o Superego é de crueldade, vingança, submissão, obediência e rebeldia, ressentimento e glorificação. Ou seja, uma relação viciosa de sadomasoquismo e de domínio/submissão.

    Nossa relação com o Superego é o pai e a mãe de nossos vícios e neuroses.

    Freud uma vez disse: onde esteve o Id, que esteja o Ego. Traduzindo: vamos trazer para nosso entendimento (para nós, para o nosso Eu, para o Ego) os processos e desejos inconscientes que nos manipulam a partir desse Algo em nós (o Id).

    Pois eu digo – e esta é a novidade que proponho –, onde esteve o Superego, que esteja o Ego. Traduzindo: vamos entender como as leis de nosso Superego foram construídas. As problemáticas, tolas ou injustas (a masturbação é pecado e vai te mandar para o inferno) serão canceladas, pois o Ego discorda delas. As interessantes e apreciadas (você tem que ser honesto) serão trazidas para mim, para meu Eu, para o Ego, e por ele apropriadas: eu não tenho que ser honesto; eu acho bom ser honesto, eu quero ser honesto. A honestidade será um valor meu, nunca uma tarefa imposta por uma instância acima de mim ("das Über-ich", o Acima de mim, o Superego).

    A meta da psicanálise será, portanto, me tornar sujeito de meus verbos, dono de meus valores, gerente dos meus desejos. Ela investigará como o complexo de Édipo (como fui enrolado pelos problemas de meus pais, que não tinham nada a ver comigo) me levou a ter minha cabeça tumultuada por essa guerra interna.

    Através dessa investigação, saberei como meus desejos foram distorcidos pela guerra, como eles podem ser autenticamente meus (expurgada a distorção), como meu Superego foi formado, como ele me manipula e me leva a exteriorizar a relação que tenho com ele (trazendo a guerra fodão/merda para minha relação com o mundo). Dessa consciência virá o desejo de justiça – esta é a maior força da psicanálise – e dele, o desmonte da manipulação, para que eu – o Ego – esteja na gerência da minha vida.

    Espinoza disse que a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam: eis aí a função da psicanálise.

    Psicanálise: ciência? Pseudociência? O quê?

    Samuel Fernando: Eu achava que a psicanálise era uma pseudociência perigosa…

    F. D.: E você, Samuel, tinha e tem muitas razões para achar isso.

    Eu próprio também acho que ela vive esse risco. Não conheço muitos psicanalistas que se preocupem com epistemologia, que declarem em que se baseiam para a busca do conhecimento verdadeiro.

    Vou repetir muitas vezes o que vai aqui, mas acho necessária essa reafirmação. Não acredito que a psicanálise venha a ser uma ciência, algum dia. Sua pesquisa é muito pessoal, muito dependente da postura do psicanalista. Seria um embrião de ciência, uma protociência, como a alquimia foi o embrião da química? Não sei responder. Ela é uma forma de conhecimento empírico (através da observação e experimentação) que pode se valer dos instrumentos científicos para sua busca de verdade.

    Para atender esse meu desejo, escolhi o filósofo da ciência Karl Popper e sua refutabilidade das hipóteses, como norte: seja claro no que você propõe ao cliente, e dê a ele toda a liberdade de dizer que você está errado. Só tome como aproximadamente certa a hipótese que for confirmada sem hesitação.

    O problema é que a psicanálise requer gente inteligente que também dê valor às ciências exatas, não só às humanas. O culturalismo é uma praga, na psicanálise; a aversão à psicologia evolucionista, a qualquer influência biológica no funcionamento da mente, é uma tristeza.

    Acreditar na tábula rasa, que nossa mente é uma folha em branco em que a cultura escreverá tudo, é o maior risco de reducionismo que a psicanálise corre. É deixar de lado um componente crucial da nossa complexidade.

    Afora o triste fato da seleção adversa que uma psicanálise obscura, hermética e poética promove: gente que não entende o que lê ou ouve, e tem vergonha de admitir isso, passa a se enganar e achar que entende, passa a mistificar e humilhar terceiros com sua suposta sapiência: seleção garantida de crentes do fodão/merda…

    Deste psicanalista para neurocientistas e psicólogos evolucionistas

    (Eles estudam a espécie; a psicanálise estuda o indivíduo)

    Samuel Fernando: Vejo a psicanálise frequentemente criticada por gente das ciências da mente. O que você teria a dizer para eles?

    F. D.: Bom, primeiro uma breve definição de psicologia evolucionista: ela estuda os comportamentos que herdamos de nossos ancestrais, e que nos fizeram sobreviver e reproduzir até aqui. Ela é filha da seleção natural, de Charles Darwin.

    A psicanálise que busco construir se vale da psicologia evolucionista e da neurociência (ambas estudam a mente da espécie) para estudar a mente do indivíduo.

    Estudar a mente do indivíduo implica conhecer infinitos vetores, aspectos, um de cada vez, entendendo como eles interferem na resultante doença, ou desejo. E assim mesmo só ter uma pálida ideia, pois não há complexidade igual sobre a face da Terra.

    Ela começa contemplando o genérico: reprodução e sobrevivência como drives (impulsos) básicos, um buscando o prazer, o outro evitando o desprazer; softwares genéticos, como tipos mentais (orientação sexual, cabeça de homem, cabeça de mulher, obsessividade, herança para vício, para depressão, inteligências abrangentes ou especializadas, e seus vários níveis, capacidades de reflexão/reação etc.).

    Levando tudo isso em conta, volta-se para a pessoa, começa a entender como se deu o embate desejo/cultura naquele indivíduo. Como ele negociou sua busca de prazer frente ao medo do desamparo por desagradar seu ambiente familiar; de que características pessoais ele teve que abrir mão, por conta desse embate; que crenças disfuncionais absorveu, como decorrência do embate; que distorções sofreu seu desejo (a psicanálise que busco não considera a vontade de se drogar como parte do Desejo autêntico de alguém, senão que a vê como uma distorção, um paliativo do desejo).

    Toda essa pesquisa e investigação se dá, em psicanálise, por engenharia reversa: o cliente chega com seu sofrimento, sua doença, seus sintomas. O pressuposto psicanalítico é que esse sofrimento é fruto daquele embate desejo/cultura (quando se fala cultura aqui, se supõe o atropelamento que o senso comum produz sobre as singularidades do indivíduo, começando pela família, continuando fora dela). É a partir dessas doenças/sintomas que se vai investigando e deduzindo, tanto o desejo mais autêntico, quanto seus atrapalhadores.

    Essa psicanálise que faço define saúde mental como a eficiente negociação com o mundo para a realização dos desejos do indivíduo. Considera como doença todos os atrapalhadores dessa negociação, que levam à distorção de seu desejo.

    Não vejo conflito de interesses, portanto, entre as ciências da mente e a psicanálise. O estudo da espécie serve ao indivíduo; o estudo do indivíduo serve à compreensão da espécie. Uma ajuda a outra.

    Psicologia evolucionista e psicanálise

    Stephen Kanitz: Por que você quer trazer a psicologia evolucionista para a psicanálise?

    F. D.: A psicologia evolucionista estuda como a seleção natural embutiu em nós comportamentos que já vem com a máquina, e quais são eles: quando você leva o recém-nascido ao peito e ele vira a boca para o lado certo, isso veio com a máquina, ele não foi ensinado por ninguém.

    Quero trazê-la porque as duas estudam o sapiens por ângulos complementares: a psicologia evolucionista contempla a espécie; a psicanálise contempla o indivíduo.

    A meu ver, não há como entender o indivíduo sem saber as forças biológicas da espécie que nele operam.

    Os culturalistas, aqueles que creem que

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1