A Sexualidade dos Portugueses
De Sofia Aboim
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Sobre este e-book
Sofia Aboim
Sofia Aboim nasceu em Moçambique em 1972. É doutorada em Sociologia pelo ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa (2004). É investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e investigadora visitante no Centre of Gender Excellence (GEXcel) da Universidade de Linköping na Suécia. Desde 1997 desenvolve investigação sobre vários temas, destacando-se a família, o género e a sexualidade, a mudança social, a modernidade e o pós-colonialismo. Tem publicado vários livros e artigos sobre estas temáticas em Portugal e no estrangeiro. Coordena actualmente projectos de investigação na área do estudo das questões de género e discriminação social.
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A Sexualidade dos Portugueses - Sofia Aboim
Introdução
Em 30 de Abril de 1974, apenas cinco dias depois da revolução, estreava nas salas de cinema portuguesas o filme Último Tango em Paris, obra cinematográfica realizada por Bernardo Bertolucci, que dois anos antes, na sua primeira apresentação pública, havia chocado mentalidades um pouco por toda a parte, lançando a polémica sobre a sexualidade, ou melhor, sobre o que dela podia ser mostrado. O enredo do filme é, na verdade, bastante simples. Um casal de desconhecidos – protagonizados por Marlon Brando e Maria Schneider – encontra-se num apartamento vazio e, guardando o anonimato, vivem na tela uma sexualidade liberta que vai derrubando alguns tabus ancestrais que caíam sobre as relações sexuais heterossexuais. Um ou outro excerto mais arrojado – lembremos a famosa cena em que manteiga é utilizada como lubrificante sexual – tiveram o poder de chocar e fizeram com que o filme fosse banido em vários países. Em 1972, data da estreia mundial, Portugal não foi excepção. Contudo, o efeito libertador da Revolução de 1974 sobre os rígidos costumes da época transformou o filme num ícone e levou muitas pessoas a acorrerem às salas de cinema, muito provavelmente movidas pela ânsia de provar o tão desejado fruto até ali proibido pela moral tradicionalista das décadas anteriores.
Apesar da fama que até hoje persegue este filme – e muitos outros exemplos poderiam ser dados –, podemos perguntar a nós próprios, à luz da actualidade, o que teve ele afinal de tão especial, ao ponto de granjear ao seu realizador a fama de pornógrafo iconoclasta, ou seja, uma pessoa que demonstra publicamente desrespeito pelas tradições, atacando-as sem pudor. Esta será provavelmente uma pergunta que os indivíduos das gerações mais novas, já nascidos e criados numa sociedade em que a visão pública de cenas explícitas de sexo se tornou banal, poderão fazer. Afinal, o tão polémico filme sugere mais do que mostra, podendo até parecer ingénuo aos olhos de gerações habituadas ao contacto quotidiano com uma sexualidade que veio progressivamente a invadir os meios de comunicação social generalistas sem grandes censuras. Com efeito, perguntariam os adolescentes de hoje, ou pelo menos a sua maioria, o que tem isto afinal de tão terrível para ter sido proibido e ter representado, dias depois da Revolução de Abril, um símbolo de libertação sexual que então rompia com tabus e silêncios ancestrais?
Sexualidade e mudança na sociedade portuguesa
Quando o acesso a informação sobre sexualidade se tornou tão fácil como hoje é, parece longínqua e própria de tempos antigos a forma como tal tema foi objecto de profunda repressão social. No entanto, bastará recuarmos às décadas de 1950 ou 1960 para percebermos o quanto a sociedade então vigente era conservadora e rígida em matéria de moral sexual. Permeada de interditos, só a sexualidade vivida dentro do casamento, obviamente heterossexual e destinada primordialmente à reprodução e à constituição de uma família, era publicamente aceitável. Durante o período do Estado Novo, a cumplicidade ideológica com uma moral católica de elogio da castidade e virtude femininas e do casal como lugar destinado à procriação era fortemente controladora de qualquer outra forma de expressão da sexualidade. As mulheres e os homens cujas vidas escapassem a estas regras viviam obviamente sob constante receio de estigmatização.
Evidentemente, debaixo desta moral pública preenchida de silêncios sobre a sexualidade e o sexo, a realidade da vida das pessoas era, com muita frequência, outra. O sexo fora do casamento, o número considerável de filhos ilegítimos, a prostituição, a homossexualidade, entre outras tantas práticas, sempre existiram, mas quanto mais escondidas estivessem do olhar público, tanto melhor. Mais protegidas ficariam as mulheres de se verem caídas em desgraça. Mais livres ficariam os homens de verem a sua sexualidade e virilidade heterossexual postas em causa na praça pública, onde certamente seriam objecto de desconfiança e mesmo escárnio. Para os portugueses de gerações mais velhas, esta descrição será seguramente familiar. A verdade é que se, como se irá mostrando ao longo das páginas deste livro, nem sempre os comportamentos seguiam as normas então vigentes, a moral considerada legítima era apenas uma. Tudo o resto era transgressão e desvio. E se sempre houve espaços para transgredir, tinha de se procurar seguir o lema públicas virtudes, vícios privados. Em suma, a sexualidade era, nos tempos a que nos reportamos, um domínio cujos saberes e regras deviam seguir a restritiva moral da Igreja Católica, apoiada pelo Estado Novo e as suas instâncias de regulação.
Por isso mesmo, coisas tão simples como ver um filme, antes proibido pelo lápis azul da Censura, livre do medo que, a par da curiosidade, a repressão sempre gera, foi um acontecimento importante nesses meses e anos após a Revolução de Abril. Muito simplesmente, pela primeira vez na história do século XX português, a sexualidade tornava-se visível para lá das estreitas fronteiras do privado e da obscuridade do interdito. As conversas já não tinham de ser sussurradas e o receio da marginalização sob o crivo do olhar dos outros diminuía, dando início a mudanças profundas.
Nas últimas décadas, poucas coisas terão mudado tão radicalmente como as formas de falar sobre sexualidade e de viver a vida sexual. As imagens e os textos sobre sexualidade foram-se banalizando, podendo mesmo afirmar-se que o sexo (ou seja, as relações e comportamentos sexuais) e a sexualidade (ou seja, além do mero «fazer sexo», o conjunto mais complexo de predisposições, orientações, imaginários e até identidades dos indivíduos) se tornaram parte integrante da sociedade portuguesa contemporânea. Hoje, dificilmente se lê uma revista, cor-de-rosa ou não, se vê um filme, uma série televisiva ou mesmo uma telenovela e se navega na Internet sem que, em maior ou menor grau, conteúdos de cariz sexual estejam à vista de todos e sejam de fácil acesso a pessoas de todas as idades. Multiplicaram-se os chamados «consultórios sexuais» especializados em aconselhar e propor resoluções para dúvidas e problemas. Aumentou sobremaneira a publicitação do saber médico em matéria de sexualidade, prometendo ajuda para os mais variados distúrbios e perturbações, sejam eles fisiológicos ou psicológicos. Trivializou-se, enfim, a visão pública, diariamente transmitida pelos vários meios de comunicação, de corpos em atitudes sexualizadas, muitas vezes explícitas, quase ou até mesmo pornográficas, já bem longe dos pudicos beijos da cinematografia romântica de algumas décadas atrás. A Internet tornou-se um dos principais canais de acesso a informação sobre a sexualidade e o sexo. Bastará aliás que se escrevam as palavras «sexualidade» ou «sexo» num qualquer motor de busca para que milhares de sítios surjam no ecrã do computador, permitindo o acesso a informação médica, a conselhos sobre os mais variados temas sexuais (como «apimentar uma relação», do que gostam os homens e as mulheres, o que fazer nesta ou naquela situação), a páginas de associações que disponibilizam informação sobre direitos e injustiças, a dados e estudos na sua maioria pouco fiáveis que apelam ao lado bombástico da sexualidade, a pornografia variada, a sítios destinados à procura de encontros e parceiros sexuais para todos os