Jacques Lacan: Além da clínica
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Sobre este e-book
Edição mostra em que medida o pensamento lacaniano contribui para os debates sobre filosofia moral, teoria do conhecimento, questões de gênero e o lugar da arte contemporânea
"A psicanálise é [...] experiência única, aliás bastante abjeta, mas que é impossível recomendar em demasia aos que pretendem introduzir-se no princípio das loucuras do homem, pois, por se mostrar aparentada com toda uma gama de alienações, ela as esclarece", Jacques Lacan
Com ensaios de:
Antonio Quinet, Christian Ingo Lenz Dunker, Colette Soler, Dominique Fingermann, Eduardo Socha, Gilson Iannini, Guilherme Oliveira, Joel Birman, Marcus Cesar Ricci Teshainer, Maria Lucia Homem, Miriam Debieux Rosa, Nelson da Silva Jr., Paulo Beer, Ronaldo Manzi, Tania Rivera, Vanessa da Cunha Prado d'Afonseca, Vladimir Safatle.
Antonio Quinet
Antonio Quinet é psicanalista, doutor em filosofia (Université Paris VIII), membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, professor adjunto do programa de pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, diretor da Cia. Inconsciente em Cena, autor de vários livros publicados de psicanálise e de peças encenadas no Brasil e no exterior.
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Jacques Lacan - Antonio Quinet
Sumário
Apresentação
Lacan urgente: o analítico em tempos de estreitamento – Maria Lucia Homem
Confrontar-se com o inumano – Vladimir Safatle
Discurso da ciência, discurso do capitalista: interpretações do neoliberalismo a partir de Lacan – Nelson da Silva Jr. e Paulo Beer
A psicanálise lacaniana e a dimensão sociopolítica do sofrimento – Miriam Debieux Rosa
Um paradigma para o diálogo entre biopolítica e psicanálise – Marcus Cesar Ricci Teshainer e Vanessa da Cunha Prado D’Afonseca
Homo e hétero em Lacan – Antonio Quinet
Antes só: Lacan e a verdade – Gilson Iannini
Da filosofia à antifilosofia – Joel Birman
Estética e descentramento do sujeito – Tania Rivera
Psicanálise e literatura em Lacan – Dominique Fingermann
Então, vocês terão entendido Lacan? – Ronaldo Manzi
O Real e a verdade do sofrimento – Christian Ingo Lenz Dunker
O pudor, uma virtude – Colette Soler
Colaboraram nesta edição
Créditos
eduardo socha
Por certo, haveria alguma conveniência editorial em se valer de uma efeméride nada irrelevante para a organização de mais um especial sobre Jacques Lacan (1901-1981). A boa ocasião estaria nos cinquenta anos de publicação de seu livro mais importante, os Escritos, a coletânea de conferências, artigos, ensaios que o psicanalista produziu entre 1936 e 1966. Ocorre que esse tipo de conveniência geralmente provoca no leitor – e com razão – a desconfiança da celebração protocolar, laudatória, que tende a encobrir com argumentos bem-intencionados ou impetuosos inclusive os problemas da obra. Registrada a efeméride (pois se trata, afinal, de um autor célebre), passaríamos ao próximo assunto e voltaríamos à ordem do dia, com suas as crenças e distopias. Se resolvemos pontuar explicitamente essa desconfiança aqui, é para dela nos afastar e então defender que qualquer avaliação crítica da atualidade do pensamento de Lacan dispensa efemérides. Por um lado, o regime de urgência que caracteriza nosso tempo exige, como contraponto, o contato lento e paciente com sua obra. Por outro, é certo que há certa urgência em compreender o gesto teórico de Lacan, a verdade de sua letra. Uma urgência que talvez coincida com aquela de tentar dizer o que não se deixa dizer e que se coloca, no entanto, como necessário às transformações necessárias: Lacan Urgente
é o título do ensaio de Maria Lucia Homem que abre este especial; sua fórmula concisa e inquieta resume o propósito deste número.
Não se discute mais a relevância de Lacan para a clínica psicanalítica. A polêmica de sua clínica persiste, mas a referência tornou-se incontornável.
Nesse sentido, esta edição especial mostra em que medida o pensamento lacaniano pode contribuir para os debates sobre a filosofia moral, a teoria do conhecimento, o lugar da arte contemporânea, as questões de gênero, o sofrimento social provocado pelo neoliberalismo como estratégia de conformação de sujeitos. Ao mesmo tempo, evita retratar a psicanálise lacaniana como uma espécie de panlogismo, como se fosse a fonte inequívoca de explicação para as diferentes formas de organização da vida psíquica e social. As falhas, as insuficiências, os pontos obscuros da própria equivocidade lacaniana já nos previnem desse tipo de idolatria; uma idolatria, aliás, cuja forma caricata é o uso ainda indiscriminado do lacanês. Os ensaios e artigos deste número comprovam em sua diversidade de estilos que o pensamento de Lacan está em contínua transformação e que às vezes é preciso ir contra o estilo de Lacan a fim de preservar o espírito de sua letra.
Ensaio
Lacan urgente:
o analítico em tempos
de estreitamento
Maria Lucia Homem
Se Freud foi e é um pensador do nosso tempo, podemos dizer que Lacan foi e será um pensador do nosso futuro. Para começar, sua embocadura de enunciação. Muito foi dito sobre seu estilo: peculiar, performático, teatral, enfim, gongórico
, em suas próprias palavras. Sim, pode-se sempre associar os volteios de sua linguagem a um traço profundo da cultura francesa e seu amor às palavras, quase o avesso do ideal de clareza cristalina da matriz anglo-saxã. Porém, para além disso, o sempreanalista Lacan estava advertido de que de onde
se diz e que se diga
sempre correm através do que se diz. E que o ideal de compreensão é um velho resquício dos tempos primordiais da vontade de saber, que talvez não façam tanto sentido para nós, herdeiros do além do sentido
, e ao menos conscientes do algo do inconsciente que perpassa todos os signos e se oferece pelo equívoco. O ser pós-cartesiano, afinal, não é aquele que se oferece ser onde não pensa e justamente pensa onde não é?
RSI: Real, Simbólico, Imaginário
Justamente aí podemos seguir Lacan em outra de suas curiosas e precisas formulações. Quando todos reclamavam que não dá para ler Lacan
, lá vem ele com sua pérola: não escrevo para ser compreendido, escrevo para ser lido
. Pois. E não se trata de uma obra que se esgota facilmente. Ou mesmo que se leia facilmente, já que há algumas prerrogativas para tal trabalho. A primeira, fundamental, é que se esteja advertido justamente de algo além da racionalidade e da consciência. Está aí o eixo central da invenção freudiana sempre reiterada por Lacan. A subversão do cogito, o saber à l’insu: o não saber que se trama justamente onde o sujeito do inconsciente pode vir a se exercer.
Mas há um outro ponto, e que hoje parece cada vez mais fundamental: poder construir um lugar algo descrente da linguagem canônica e, assim, fundar algo de um estilo e de um outro processo de subjetivação. Desde o início de seu trabalho, Lacan operou uma leitura não ingênua da língua. Afinal, o inconsciente não se estrutura como linguagem? Como isso se dá a ver? A todo o momento. Ou, mais precisamente, a cada momento em que algo do que digo escorre por entre os dedos e, ops, revela um átimo do não saber e não ser para além do Eu – Eu que pode advir de algum isso
que lhe constituiria nos primados de seu recorte pelas marcas do Simbólico que nos ultrapassa a todos.
Alívio dos alívios: pois que o tesouro dos significantes me antecede e me marca a pele feito ferro quente no gado. O significante marca a carne. Nada menos que isso é a potência do manancial simbólico no qual somos jogados – batizados, vá – ao nascer. Minto: antes de nascer. Sim, pois cada fêmea humana e simbólica já canta canções de ninar para seu bebê na barriga, e fala com ele, escreve sobre ele, posta fotos sobre ele e seus sonhos sobre ele para todos na grande rede sociossimbólica chamada