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A paixão pelo impossível: preâmbulos do conceito de real no ensino de Jacques Lacan
A paixão pelo impossível: preâmbulos do conceito de real no ensino de Jacques Lacan
A paixão pelo impossível: preâmbulos do conceito de real no ensino de Jacques Lacan
E-book561 páginas8 horas

A paixão pelo impossível: preâmbulos do conceito de real no ensino de Jacques Lacan

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Sobre este e-book

"Uma frase de Platão na República ? sobre a dificuldade dos inícios ? talvez permita sopesar de forma mais acurada a nervura da real proposta neste livro: o início é a metade do todo, no sentido de que o começo é a parte mais importante da Obra. Isso porque um conceito não nasce conceito. Primeiro ele emerge no quadro de uma opacidade elementar ? é mera noção que precisa ser depurada de seu gradiente de indeterminação, para ser alçada ao valor de termo técnico, posto em uso.
É este o valor da hipótese que o Professor Camilo nos oferece: a letra lacaniana é a estrada real que conduz à compreensão do inconsciente, como real, conexionando o rigor lógico e barroco da letra lacaniana com seu próprio engenho clínico e acadêmico, gesto teórico necessário para que suas explicações nos alcançassem o sentido.
Em A paixão pelo impossível: preâmbulos do conceito de real no ensino de Jacques Lacan, Camilo explicita o que seria o próprio contexto de sedimentação do gradiente de significação do conceito de real. O livro nos convida a percorrer os percalços de uma árdua via dialética, que interpõe o texto e contexto do ensino de Lacan, sob o espectro de significação de sua paixão pelo impossível".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de set. de 2021
ISBN9786525207476
A paixão pelo impossível: preâmbulos do conceito de real no ensino de Jacques Lacan

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    A paixão pelo impossível - Wilson Camilo Chaves

    CAPÍTULO 1 - IMAGINÁRIO E REAL

    1.1 O registro do imaginário

    ²

    As primeiras elaborações a respeito do registro do Imaginário³ são desenvolvidas por Lacan (1987) no texto Os Complexos Familiares na formação do Indivíduo (1938). O conceito fundamental trabalhado nesse texto é o do complexo, pivô do desenvolvimento humano, unidade funcional desse psiquismo, não corresponde a funções vitais, mas à insuficiência congênita dessas funções (p. 29). Assim, será em torno do complexo bem como da imago que se estruturará o psiquismo. Para Lacan, na espécie humana, a cultura desempenha um papel equivalente ao que a natureza desempenha nas demais espécies animais. É na família, então, que a cultura predomina sobre a natureza. Estudando concretamente a família humana, Lacan vai se opor a um ponto de vista moralizante. Este estudo abrange a família como objeto e circunstância psíquica, visando os complexos e não os instintos. Ou seja, o complexo, com efeito, liga sob uma forma fixada um conjunto de reações que pode interessar a todas as funções orgânicas desde a emoção até a conduta adaptada ao objeto (p. 19). Assim, pelo complexo, o humano subverte toda fixidez instintiva, surgindo daí as diversidades da cultura. Essa operação pode ser até consciente para o sujeito, embora Freud tenha definido o complexo como essencialmente inconsciente. Na família, os complexos se revelam de forma mais estável e mais típica. Para Lacan, trata-se basicamente de dois complexos, o desmame – que fixa no psiquismo a relação de alimentação e o complexo de intrusão – que representa a experiência que o sujeito primitivamente reconhece como fato de ter um irmão (CHAVES, 2005).

    O ciúme fraterno, para Lacan (1987), resulta não de uma rivalidade vital, mas de uma identidade mental. A imago aqui não estará ligada ao outro (seio materno, do qual, no desmame, o sujeito se separado), mas ao corpo próprio. O irmão é, assim, ao mesmo tempo alvo de desejo e presença confusa de duas relações afetivas, amor e identificação, cuja oposição será fundamental nos estádios ulteriores (p. 32). O estádio do espelho⁴ vem suprir uma deficiência teórica nesse momento de elaboração do complexo de intrusão, correspondendo ao declínio do desmame. O fenômeno aí apreendido refere-se ao fato de o sujeito reconhecer sua imagem no espelho. O estádio do espelho representa, portanto, uma tentativa, por parte do sujeito, de resgatar e refazer o vínculo perdido, apartado pelo nascimento e presentificado no desmame:

    A tendência pela qual o sujeito re-instaura a unidade perdida de si mesmo toma o lugar, desde a origem, no centro da consciência. Ela é a fonte de energia de seu progresso mental, progresso cuja estrutura é determinada pela predominância das funções visuais. Se a procura de sua unidade efetiva promove no sujeito as formas em que ele representa sua identidade, a forma mais intuitiva é dada, nessa fase, pela imagem especular. O que o sujeito dela saúda é a unidade mental que lhe é inerente. O que ele reconhece nela é o ideal da imago do duplo. O que nela aclama é o triunfo da tendência salutar (LACAN, 1987, p. 37).

    A imagem, como forma que fascina o sujeito, o constitui; e o sujeito não será, portanto, anterior a ela. Será na forma e pela forma que sua constituição se dará. Não há, dessa maneira, um exterior que esteja lá fora, mas apenas no interior do próprio sujeito, ou seja, é nele mesmo que o outro estará. A exterioridade, bem como o sentimento de exterioridade, só será possível devido, primeiramente, à presença dessa dimensão no sujeito, comandando, posteriormente, sua relação com toda exterioridade real (OGILVIE, 1991, p. 111). Nesses termos, é importante ressaltar que a concepção de espelho deve ser entendida metaforicamente. Não se trata de uma etapa a ser superada, mas de uma situação que coloca o eu com um outro, dimensão essencial, responsável pela estruturação da fantasia: é a aventura original através da qual, pela primeira vez, o homem passa pela experiência de que se vê, se reflete e se concebe como outro que não ele mesmo – dimensão essencial do humano, que estrutura toda a sua vida de fantasia (LACAN, 1986, p. 96). O sujeito, ainda que deficitário organicamente, é capaz de se ver como um outro a partir da imagem refletida. Assim, é do outro – imaginário, por excelência – que lhe advém uma certa configuração totalizante, uma Gestalt. Isto é, por intermédio da imagem, é possível que ele se veja enquanto corpo organizado. Nas palavras de Lacan (1998a, p. 97):

    A assunção jubilatória de sua imagem especular, por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da alimentação que é o filhote do homem nesse estádio infans, parecer-nos-á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica onde o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito.

    Como se sabe, em 1949, Lacan estava apenas em via de colocar em primeiro plano o papel da linguagem. É nesse texto sobre o Estádio do Espelho que ele propõe a ideia de uma simultaneidade da constituição e da perda. Torna-se, dessa maneira, vão querer saber da constituição do sujeito num sentido metafísico, pois a preocupação de Lacan é com a função do eu que se dá na experiência psicanalítica. Nas palavras de Ogilvie (1991, p. 107):

    A função do eu, o fato de que o sujeito diga eu, isto é, fale enquanto um eu que ele visa como uma unidade, mas sobre o qual nada permite prejulgar quanto ao seu valor, sua extensão, seu lugar e sua importância afetiva (grifo do autor).

    A partir daqui, a razão de ser da constituição do sujeito vai ser procurada por Lacan na relação do sujeito consigo mesmo. O espelho é, portanto, um estádio de identificação, no qual o sujeito assume uma imagem, cuja função é estabelecer a relação do organismo à sua realidade (LACAN, 1998a, p. 99). Realidade de inacabamento, deficiente quanto à coordenação sensório-motora. O que não impede o lactante de ficar fascinado pelo rosto humano, quase tão depressa quanto abre seus olhos à luz do dia (LACAN apud OGILVIE, 1991, p. 116). É o que a criança faz diante do espelho – o rosto materno ou algum outro – que interessa ao psicanalista. Uma ação que escapa à criança, mas ao mesmo tempo, a deixa fascinada. Há aí uma operação de estruturação que abre espaço para emergir algo da ordem do desejo, da fantasia, do inconsciente. Isso mostra o quanto a imagem está revestida de desejo. Lacan (apud OGILVIE, 1991, p. 117) afirma que a imago é a transformação produzida no sujeito que a assume, é o objeto próprio da psicologia e que a identificação a uma imago é a relação psíquica por excelência. O que está em jogo é o que esse outro (imagem refletida) quer ou deseja. O que resta ao eu não é desejar o outro exterior em si, mas o desejo do outro. Logo, a relação do sujeito consigo mesmo passa necessariamente pela relação com um outro. É nesse sentido que podemos compreender a afirmativa lacaniana de que o espelho não é apenas momento do desenvolvimento, mas também função exemplar. Sendo assim, o espelho é um cenário de uma história negativa, e não, como entende o psicólogo, o signo de uma etapa da história positiva de uma aquisição contínua (OGILVIE, 1991, p. 117).

    Segundo Vanier (2005, p. 36), Lacan esclarece a noção de narcisismo por meio do estádio do espelho, permitindo-lhe, dessa maneira, restituir as instâncias da segunda tópica freudiana. Lacan volta várias vezes ao estádio do espelho, principalmente no momento da elaboração da tríade Imaginário-Simbólico-Real, articulando-o a esses três registros. No Seminário I, Os escritos técnicos de Freud⁵, Lacan propõe um esquema⁶ que constitui a ‘forma generalizada do estádio do espelho’ (p. 36). Em que consiste a ênfase colocada por Lacan sobre o narcisismo? Vanier (2005, p. 36) afirma que é consequência de seu interesse pela relação entre a personalidade e o meio social, entre o sujeito e seu entorno. É a exploração da relação com seu semelhante que está em jogo aqui, o que mais tarde se chamará de pequeno outro. Assim, também é do fascínio que a sua imagem causa ao sujeito, bem como sua capacidade de ser cativado pelas imagens que vai se tratar. Desse modo, o estádio do espelho será concebido por Lacan como um momento exemplar, paradigmático, de instauração da relação do homem com sua imagem (p. 37, grifo do autor). Mas, para que essa imagem seja conferida ao sujeito é preciso um terceiro mediador, em outras palavras, uma mediação simbólica faz-se necessária, como veremos mais adiante, para que o sujeito possa assumir tal identificação (p. 37). Desse modo, trata-se do sujeito encontrar aí uma Gestalt, uma forma, a forma total do corpo, que introduz um sentimento de unidade e de domínio, num tempo em que o sujeito ainda está na dependência do outro. Isso corresponde à instauração do narcisismo primário: o Eu (moi) do sujeito encontra aqui sua origem, Eu constituído pela soma dessas identificações que o espelho permitirá efetuar⁷ (p. 37-38). Nas palavras de Lacan (1981, p. 50) citado por Vanier (2005, p. 38): [É] esta base de rivalidade e concorrência no fundamento do objeto [...] que será ultrapassada na fala, [que] é sempre pacto. Dessa maneira, há uma distinção feita por Lacan entre o Eu, como instância imaginária e o sujeito (Je), determinado pelo simbólico, ligado, desse modo, à palavra, à linguagem⁸. Miller (1999, p. 26), referindo-se à fase do espelho, considera que o sujeito, durante toda sua vida, é captado por imagens, às quais ele identifica sucessivamente e, portanto, a esse respeito o seu ego, como diz Freud, alhures, é um bazar de miudezas, identificações que podem ser contraditórias entre si. Referindo-se também à mudança que se deu no pensamento de Lacan com o advento do simbólico, Miller (1999a, p. 27-28) afirma:

    Lacan, em certa época, para dar conta da subsistência da imagem no inconsciente, utilizava o termo imago. Isso não era, porém, muito vantajoso. A palavra ficava ambígua entre a imagem real e a imagem que subsistia no inconsciente. Já mostrei que, introduzindo-se a função simbólica, separam-se os domínios: de um lado o imaginário, o que é efetivamente da ordem da imagem, do outro o simbólico, o que é da ordem da inscrição significante.

    E acrescenta Miller (1999a, p. 28) que a partir daí, é possível distinguir as identificações imaginárias, sempre agressivas, como na fase do espelho – o outro, a quem me identifico, sou eu mesmo – estruturados sobre um: ‘Você ou eu’, são identificações guerreiras, que não trazem estabilidade, nem paz. É nesse cenário que iremos situar a relação entre o imaginário e o real, bem como trazer à tona certa concepção de real vigente nessa ocasião do pensamento de Lacan.

    1.2 Realidade, Imaginário e Real

    No artigo de 1936, cujo título é Para-além do Princípio de realidade⁹, Lacan (1998i, p. 78) faz uma crítica ao associacionismo de uma maneira geral e à psicologia associacionista, mais especificamente, que visa a uma garantia de verdade, faltando-lhe ser simplesmente positiva. Para Lacan, essa psicologia então reinante, associacionista, na esteira da fidelidade à ‘revolução freudiana’, deve ser substituída pela psicologia da forma. Como se sabe, na Tese de 1932, intitulada Da Psicose paranóica em suas relações com a Personalidade, Lacan (1975) propõe uma análise concreta do psiquismo que pudesse conduzir a um determinismo específico da subjetividade. Nessa Tese de 1932, ele se esforça em analisar objetivamente o subjetivo, o sujeito concreto. Ou seja, lançar sobre o caso estudado um olhar tão direto, tão nu, tão objetivo quanto possível (p. 247). Assim, em ambos os textos, na Tese de 1932 e no artigo de 1936, Lacan objetiva reivindicar uma positividade para a psicologia freudiana. Nesse escrito de 1936, ele também vai se preocupar com os dados concretos, porém, tratar-se-á dos dados concretos da imagem. E o associacionismo, como veremos, empobrece consideradamente a riqueza desses dados. Nesse sentido, é o conceito de imagem que Lacan (1975) privilegiará, pois a imagem é esse fenômeno, de certo, o mais importante da psicologia pela riqueza de seus dados concretos, o é também pela complexidade de sua função, complexidade esta que não se pode tentar abarcar num único termo, a não ser o de função de informação¹⁰ (p. 81, grifos do autor). O associacionismo, porém, reduz o fenômeno da imagem à sua função de ilusão, isto é, exclui a imagem, considerando-a como uma sensação enfraquecida, na medida em que aberta menos seguramente a realidade, ela é tomada por eco e sombra da sensação, portanto, identificada, com seu traço, com o engrama¹¹ (LACAN, 1998i, p. 81, grifos do autor).

    Lacan (1998i, p. 81) pretende "resolver nesse artigo de 1936 a antinomia intelectual (no sentido kantiano do termo atestado pelo próprio Lacan, que fala de ‘dialética transcendental’ entre teses empiristas e idealistas respectivamente incompletas¹² (MARCOS, 2003, p. 343). Portanto, para Lacan (1998i, p. 82), o associacionismo jamais vai ascender a uma psicologia autêntica que sabe que uma certa intencionalidade é fenomenologicamente inerente a seu objeto. Desse modo, pertencem à realidade verdadeira, seguindo o raciocínio do associacionismo, somente aqueles fenômenos que, de uma maneira ou de outra, se inserem em algum nível das operações do conhecimento racional. Sentimentos, crenças, delírios, assentimentos, intuições, sonhos, etc. são explicados, segundo Lacan (1998i, p. 82), pelo associacionismo, por algum determinismo estranho à sua ‘aparência’ e chamado de ‘orgânico’, por reduzi-los, quer ao suporte de um objeto físico, quer a relação de um fim biológico" (grifo do autor). Lacan, seguindo Freud, vai dar uma outra conotação a esses fenômenos cujo status é relegado à categoria de ilusão. E, para Lacan (1998i, p. 82), aquela realidade verdadeira é constituída pelo sistema de referências que é válido para a ciência já estabelecida; isto é, mecanismos tangíveis para as ciências físicas, aos quais se juntam motivações utilitaristas nas ciências naturais. A Psicologia, para a escola associacionista, tem o papel apenas de "reduzir a esse sistema os fenômenos psíquicos e verificá-lo, determinando através dele os próprios fenômenos que constituem seu conhecimento" (p. 82, grifo do autor).

    Assim, é pelo fato de estar voltada para a verdade que, para Lacan (1998i), a Psicologia não constitui uma ciência. A partir daí, ele começa a diferenciar a ciência da verdade, pois, o associacionismo identifica verdade com ciência, do que discordará veementemente Lacan. Seu objetivo é inscrever a sua psicologia no terreno da ciência, mas não nos moldes do associacionismo. E que modelo servirá para essa empreitada lacaniana? Perceberemos que será a psicanálise freudiana, ou melhor, a experiência analítica que se fundamenta no real. E de que real se tratará? É o que veremos um pouco mais à frente. Mas voltando à relação entre verdade e ciência, Lacan (1998i, p. 83) vai afirmar que o fim da verdade é outro que não o da ciência, esta, por sua vez, pode até honrar-se de suas alianças com a verdade, pode propor-se como objeto seu fenômeno e seu valor, mas não pode de maneira alguma identificá-la como seu fim próprio. É nesse contexto que Lacan mencionará pela primeira vez, nesse texto de 1936, o termo real, afirmando que:

    A ciência estava bem posicionada para servir de objeto último à paixão pela verdade, despertando no vulgo a prosternação diante do novo ídolo que chamou de cientificismo e, no ‘letrado’, esse eterno pedantismo que, por ignorar o quanto sua verdade é relativa às muralhas de sua torre, mutila o que do real lhe é dado apreender (LACAN, 1998i, p. 83, grifo do autor).

    Em seguida, Lacan (1998i) critica o psicólogo associacionista, que se interessa apenas pelo ato do saber, exercendo, portanto, uma atividade de sábio. É essa mutilação, afirma ele, que comete o psicólogo, e, embora seja especulativa, ela não tem para o ser vivo e para o humano consequências menos cruéis (p. 84). Tal como o psicólogo, o médico também mutila o que do real é dado apreender e compartilha, assim, desse mesmo espírito:

    É um ponto de vista semelhante, com efeito, que impõe ao médico esse espantoso desprezo pela realidade psíquica, cujo escândalo, perpetuando em nossos dias pela manutenção de toda uma formação academicista, exprime-se tanto na parcialidade da observação quanto na bastardia de concepções como a de pitiatismo (LACAN, 1998i, p. 84).

    É nesse contexto que Lacan situa Freud que sendo médico se opôs radicalmente a esta proposta, criando uma outra positividade¹³. Assim, o que opera Freud, segundo Lacan (1998i), é uma revolução metodológica, na medida em que Freud escuta o sujeito, ou seja, dá importância ao seu testemunho, que é o primeiro sinal dessa atitude de submissão ao real em Freud¹⁴. Lacan, então, adianta-se em relação ao que dirá mais tarde, em 1964, no Seminário sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que a Psicanálise não é um idealismo e que a salvação de Freud consistiu justamente em ouvir o que tinha a lhe dizer a histérica, livrando-se, assim, de se tornar um idealista. Mas, antes desse Seminário de 1964, no Seminário da ética, de 1959-60, ele já afirmava que a Ética da Psicanálise está centrada não no ideal, mas no real da experiência psicanalítica.

    Ao longo de todo artigo, Lacan elogia Freud, ainda que de forma temperada (MARCOS, 2003, p. 359). Dessa maneira, de acordo com Marcos (2003, p. 359-360), para Lacan, Freud teria reconhecido que a maioria dos fenômenos psíquicos no homem se relaciona aparentemente a uma função de relação social e que, nesse sentido, o testemunho do sujeito continua sendo a via principal de acesso a tais fenômenos. Lacan faz, nesse ponto, uma crítica da metapsicologia freudiana¹⁵. Segundo Marcos (2003, p. 360), "o conceito energético [noção de libido] resolve assim um problema de equivalência entre fenômenos. Mas, a referência freudiana a uma função biológica vai na contramão da ordem de positividade do saber que Lacan quer promover no artigo de 1936 (p. 360). Assim, a psicologia freudiana, de fato, exacerbando sua indução com uma audácia próxima da temeridade, pretende remontar da relação inter-humana, tal como ela a isola como determinada em nossa cultura, à função biológica que seria seu substrato: e aponta essa função no desejo sexual¹⁶" (LACAN, 1998i, p. 93 apud MARCOS, 2003, p. 360). Ou seja, "como conceito energético, a libido é apenas a notação simbólica de equivalência entre os dinamismos que as imagens investem no comportamento (p. 361). Nesse sentido, o uso lacaniano da noção de imago permite assim uma ‘subversão’ das categorias da segunda tópica freudiana¹⁷ (p. 361). Lacan insiste na dimensão relacional do ‘momento do testemunho’¹⁸ marcada, antes de Freud, por um ostracismo de princípios" (p. 361).

    Aqui, Marcos (2003) faz um importante comentário em nota de rodapé que nos interessa desde já, bem como nos interessará ao longo deste nosso trabalho. Então, ele afirma que o dispositivo da cura participa em 1936 de uma problemática intersubjetiva do reconhecimento (p. 362). Contrapondo a essa perspectiva, Marcos (2003), ainda nos convida a conferir uma citação de Lacan elaborada no Seminário III, sobre as Psicoses: "O manejo atual da relação de objeto no quadro de uma relação analítica concebida como dual é fundado no desconhecimento da autonomia da ordem simbólica¹⁹ que produz automaticamente uma confusão entre os planos do imaginário e do real" (LACAN, 1992b, p. 23 apud MARCOS, 2003, p. 362). Assim, podemos afirmar, como veremos mais à frente, que Lacan já nesse Seminário III, modificará o Esquema L, elaborado na ocasião do Seminário II, não apostando mais, portanto, no paradigma da intersubjetividade.

    Voltando ao artigo de 1936 e à crítica à medicina bem como à psicologia que identifica o imaginário com o ilusório, Lacan (1998i, p. 85) afirma o quanto tal identificação despreza o que tem significação real, o sintoma, concebendo-o como um epifenômeno, ou seja, se é psicológico, o será somente na aparência, e há de se distinguir do registro comum da vida psíquica por algum traço discordante onde se mostre bem seu caráter ‘grave’ (p. 85). É nesse contexto que Lacan assevera sobre a experiência psicanalítica, demonstrando as regras dessa experiência, que em Freud, condensam-se em uma única, na lei da associação livre. Em seguida, Lacan (1998i) começa a descrever fenomenologicamente essa experiência psicanalítica. O termo chave, nesse momento, é a linguagem. Assim, torna-se fundamental apresentar a relação que se estabelece entre a linguagem e o pensamento do sujeito: a linguagem por ser abordada por sua função de expressão social, revela ao mesmo tempo sua unidade significativa na intenção e sua ambiguidade constitutiva como expressão subjetiva, depondo contra o pensamento, sendo mentiroso com ele (p. 86-87). Essa relação entre linguagem e pensamento desdobra-se na relação entre o analista e o analisando, tocando, então, na transferência. Dessa maneira, o que importa não é o que se diz, mas o que lhe diz, pois a linguagem antes de significar alguma coisa, significa para alguém²⁰ (LACAN, 1998i, p. 86). O interlocutor, o psicanalista por excelência, tem aqui um papel fundamental:

    Pelo simples fato de estar presente e escutar, este homem que fala dirige-se a ele, e, já que ele impõe a seu discurso não querer dizer nada, resta o que esse homem quer lhe dizer. O que ele diz, com efeito, pode ‘não ter nenhum sentido’, mas o que ele lhe diz contém um sentido. É no movimento de responder que o ouvinte o sente; é suspendendo esse movimento que ele compreende o sentido do discurso (p. 86, grifos do autor).

    Segundo Marcos (2003, p. 334), "o contexto do artigo de Lacan, ou seja, a elucidação fenomenológica da experiência analítica, dá lugar a uma radicalização subjetiva da fórmula: ‘A linguagem, antes de significar alguma coisa, significa para alguém’. Dessa maneira, a linguagem não diz mais, como em Aristóteles, ‘alguma coisa de alguma coisa’ (legein ti kata tinos). Ela primeiro diz alguma coisa de alguém a um outro; isso mesmo, quando ela fala de algo distinto do sujeito como, por exemplo, quando ela fala de um estado do mundo (p. 334). Assim, a contribuição constitutiva do logos realista ou referencial (que articula os ‘estados da alma’ a noções gerais – dizer alguma coisa – e atribuir tais noções categoriais a ‘alguma coisa’ do real, como uma essência concreta à qual corresponderia um suporte de atribuição, um sujeito lógico no discurso) é aqui recusada"²¹ (p. 334).

    Lacan (1998i) descreve, mais especificamente, sobre o lugar que ocupa, na experiência psicanalítica, a relação do analista com o analisando. Ele afirma que o ouvinte entra nessa experiência na situação de interlocutor. O ouvinte aqui é, claro, o analista. Lacan acrescenta, dizendo que o sujeito solicita o analista, inicialmente, de maneira implícita, para, logo em seguida, solicitá-lo explicitamente. Mas, adverte-nos que o psicanalista permanece silencioso e recusa-se pacientemente a isso (p. 87). Lacan (1998i, p. 87) ainda indaga:

    Não haverá um limite em que essa atitude deva fazer cessar o monólogo? Se o sujeito prossegue nele, é em virtude da lei da experiência; mas, acaso continua ele a dirigir ao ouvinte realmente presente, ou antes, agora, a algum outro, imaginário porém mais real; ao fantasma da lembrança, à testemunha da solidão, à estátua do dever, ao mensageiro do destino? (grifos nossos).

    Lacan explicita nessa proposição a relação entre o imaginário e o real, dando até mesmo a esse imaginário uma certa dimensão real²², se podemos assim nos expressar. Logo, "falar transforma-se no ato de endereçar-se a alguém para sustentar o papel, em uma relação defunta reatualizada deste ou desta que, através da linguagem²³ na qual a imago trabalha, se vê agora invocado como alguém que volta dos mortos" (MARCOS, 2003, p. 339).

    Lacan (1998i) passa a descrever a respeito da reconstituição da imagem pelo sujeito, na medida em que a experiência psicanalítica prossegue: "a conduta deixa de imitar sua sugestão, as lembranças retomam sua densidade real, e o analista vê o fim de seu poder, doravante inutilizado pelo fim dos sintomas e pelo arremate²⁴ da personalidade (p. 88). Lacan, assim, aponta para a situação de que o analisando deve se deparar com o real, produzido pela reconstituição da imagem, que agora já não é tão ilusória, pois, o trabalho da psicanálise, do analista consiste justamente em resolver uma ilusão. Torna-se pertinente fazer a seguinte pergunta: em que consiste esse trabalho, o de resolver uma ilusão? Lacan (1998i) nos responde afirmando que a ação terapêutica deve ser essencialmente definida como um duplo movimento pelo qual a imagem, a princípio difusa e fragmentada, é regressivamente assimilada ao real, para ser progressivamente desassimilada do real, isto é, restaurada em sua realidade própria. Ação que testemunha a eficiência dessa realidade" (p. 89). Roustang (1988, p. 50), a respeito dessa importante afirmativa de Lacan, comenta:

    A imagem, como Gestalt formadora que importa reconstituir, não é o real, mas é da ordem do real, de onde é preciso retirá-la. Esse real deve ser dito eficiente, já que a imagem que dele participa determina e constitui o sujeito. Ele é a razão da permanência através da mudança incessante das aparências. Pelo real, graças a ele, o objeto da psicanálise, pode ser creditado dos traços da objetividade.

    Lacan retoma, aqui, de acordo com Marcos (2003, p. 230-231), uma posição de Henri Wallon (1949) a respeito da imagem especular e opõe o real à ‘realidade própria da imagem’ (p. 348). Assim, a ação do analista encontra-se teleologicamente orientada em direção à conscientização do sujeito a respeito da ‘unidade da imagem que nele se refrata em efeitos díspares, conforme ele a represente, a encarne ou a conheça’ (p. 88) (p. 348). Tal encarnação é da ordem do real, quer dizer, de uma assimilação ao real no sentido clássico do termo (p. 348). Nesse sentido, para além da descrição das modalidades operatórias da intervenção analítica, através da interpretação e da transferência, Lacan sublinha o efeito dessa intervenção: retirar a imagem da ordem do mimetismo a fim de restituí-la em sua dimensão de lembrança (p. 349). Isso, pois, a resolução de uma ilusão através da substituição da miragem à realidade, resolução que distingue a tarefa psicanalítica do puro ‘trabalho de ilusionista’, aparenta-se ao processo e ao progresso de uma subversão na função da imagem no sujeito (p. 349). Tal subversão é "contemporânea à identificação da imagem pelo psicanalista e cuja condição de possibilidade continua sendo a assimilação do psicanalista à imagem. A imagem²⁵ que identifica o sujeito deve ser identificada como tal pelo psicanalista" (p. 349). Assim, vai se esclarecendo o lugar da imagem na experiência psicanalítica nesse momento do pensamento de Lacan.

    Lacan retoma o que ele havia postulado alguns anos atrás, em 1932, na Tese de doutoramento, a respeito do pensamento identificatório e das relações culturais que os homens mantêm uns com os outros e finaliza esse texto de 1936 descrevendo o objeto da psicologia definido em termos essencialmente relativistas²⁶. Marcos (2003, p. 357) afirma que a categoria da ‘relatividade’ permite a Lacan livrar a psicologia da acusação de ‘subjetivismo²⁷’. A psicanálise, sem ser exatamente um ‘trabalho ilusório’, é uma simples técnica, que não pode exigir, a título de experiência, uma objetividade em matéria de observação (p. 358), uma vez que as ‘condições’ de seu exercício aparecem como ‘desafios’ à cientificidade. Ou seja, "a experiência analítica descrita por Lacan ‘como uma constante interação entre o observador e o objeto’ transgride a necessidade de uma ‘referência fixa no sistema observado’ (p. 358). Assim, o uso, para fins de observação, do ‘próprio movimento subjetivo’ – quer dizer, em linguagem freudiana, o uso das relações transferenciais e contratransferenciais que, fora do quadro analítico, encontra-se eliminado por ser visto como fonte de erro – é a condição mesma da possibilidade, o caráter constitutivo da experiência analítica²⁸ compreendida como processo (p. 358). A experiência psicanalítica, então, esforça-se em sublinhar como as lembranças de infância representam, a despeito de sua aparente disjunção, a ‘imagem’ do sujeito que o analista conseguiu suscitar (p. 348). A experiência psicanalítica difere, portanto, da psicologia, a behavorista, principalmente, o que lhe vai impossibilitando (a psicanálise) de se servir da investigação da ciência, do seu método. Assim, pelas razões acima explicitadas, torna-se inviável submeter a experiência psicanalítica ao clivo do método científico.

    Marcos (2003, p. 362-363) afirma que, no mesmo ano em que Lacan publica na revista L’évolution psychiatrique o artigo Para além do ‘princípio de realidade’, redigido entre Marienbad e Noirmoutier de agosto a outubro de 1936, é pronunciado, por ele, em francês, "no XIV Congresso da Internacional Psychoanalytic Association em Marienbad, em 3 de agosto de 1936, um artigo indexado sob o título de The looking-glass phase, no Internation Journal of Psychoanlysis, de 1937, na página 78 do tomo I. Nesses termos, acentua Marcos (2003, p. 363) que as observações conclusivas do artigo publicado em 1936, artigo cujo interesse principal ‘reside na descrição do processo analítico e na possibilidade que ele fornece de isolar a imagem formadora determinante dos comportamentos’ (ROUSTANG, 1990, p. 30-31), mencionam, como linhas abertas de pesquisa, duas questões". Entre elas, destaca-se uma que se refere a The looking-glass phase: "Aqui se colocam duas questões; através das imagens, objetos de interesse, como se constitui essa realidade em que se concilia universalmente o conhecimento do homem? Através das identificações típicas do sujeito, como se constitui o eu (je), onde é que ele se reconhece?" (LACAN, 1998i, p. 95 apud MARCOS, 2003, p. 363). Marcos (2003, p. 363) faz, nesse momento, uma importante indagação: Quais são, então, os modos de constituição da ‘realidade’ e do ‘eu’, isso aceitando que se trata, nos dois casos, de levar em conta o caráter necessariamente mediador das imagens?. A resposta dada por Lacan, assevera Marcos (2003), evoca Freud que teria respondido a essas duas questões "passando novamente ao terreno metapsicológico. Ele formula um princípio de realidade cuja crítica, em sua doutrina, constitui a finalidade de nosso trabalho" (LACAN, 1998i, p. 95 apud MARCOS, 2003, p. 364). Assim, a articulação de uma teoria do Eu percepção-consciência, princípio de adaptação à realidade e de correção do princípio do prazer, choca-se como uma doutrina nova no campo psicanalítico: a teoria do Eu como órgão de desconhecimento (p. 364). Mas, Lacan precisa ainda efetuar algumas pesquisas antes de responder às questões: "Devemos examinar que contribuição trazem, no que tange à realidade da imagem e às formas do conhecimento, as pesquisas que, com a disciplina freudiana, concorrem para a nova ciência psicológica" (LACAN, 1998i, p. 95 apud MARCOS, 2003, p. 364).

    É com "uma observação programática²⁹ que Lacan termina esse artigo de 1936. O que significa, então, para além do princípio de realidade? Significa, pois, para além de uma doutrina do Eu (que se trate da elaborada por Freud ou por Henri Ey), assim como para além de uma doutrina associacionista da imagem (MARCOS, 2003, p. 365). Ainda, significa em direção de uma nova teoria do Eu, da imago e da identificação especular capaz de ‘resolver os embaraços da cogitação analítica’ (p. 72) (p. 365). Desse modo, sintetiza Marcos (2003) a respeito do programa ambicioso de Lacan nesse período de sua obra que é o de almejar, entre outras coisas, fazer desaparecer o termo ‘inconsciente’ em prol da imago" (p. 365). Nesse sentido, Lacan (1998b) afirma:

    Eu havia destacado este traço significativo em minha tese, quando me esforcei por explicar a estrutura dos ‘fenômenos elementares’ da psicose paranóica. Basta-me dizer que a consideração destes levou-me a completar o catálogo das estruturas - simbolismo, condensação e outras que Freud explicitou – como sendo, direi, as do modo imaginário, pois espero que logo se renuncie a usar a palavra inconsciente para designar aquilo que se manifesta na consciência (LACAN, 1998b, p. 184 apud MARCOS, 2003, p. 365).

    E o real? Roustang (1988, p. 51) afirma a respeito do conceito de real que Lacan talvez nunca tenha renunciado aos traços principais que, nessa época, formavam a compreensão desse conceito: o real é um invariante que consiste e resiste, é independente do eu e da consciência, é o ser de todos os fenômenos, é, enfim, racional, e por essa razão é matematizável e logicizável. De acordo, ainda, com Roustang (1988), o real, depois de 1936, vai desaparecer de cena por algum tempo e só voltará a ocupar um lugar de destaque no final de 1955, no Seminário dedicado às Psicoses. Contrariamente a este autor, podemos afirmar que nesse intervalo entre 1936 e 1955, o conceito de real aparecerá em importantes textos, como no texto de 1951, intitulado Intervenção sobre a Transferência e, nos de 1953, Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, O mito individual do neurótico e O simbólico, o imaginário e o real, bem como no Seminário, livro II, O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, de 1954-1955.

    1.3 Imaginário e Real

    No texto Formulações sobre a causalidade psíquica, de 1946, relatório pronunciado por ocasião das jornadas psiquiátricas de Bonneval, num debate sobre a psicogênese, Lacan (1998b, p. 167) faz uma análise fenomenológica a respeito da causalidade psíquica:

    A linguagem do homem, esse instrumento de sua mentira, é atravessada de ponta a ponta pelo problema de sua verdade; seja por traí-la, na medida em que é a expressão de sua hereditariedade orgânica, na fonologia do flatus vocis; das ‘paixões do corpo’ no sentido cartesiano, isto é, de sua alma, na modulação passional; e da cultura e da história que constituem sua humanidade, no sistema semântico que formulou quando criança: seja por manifestar essa verdade como intenção, abrindo-a eternamente para a questão de saber como aquilo que exprime a mentira de sua particularidade pode chegar a formular o universal de sua verdade.

    Mais à frente, Lacan (1998b) define o que entende por psicologia, na medida em que ela se inscreve numa antropologia em que o registro do cultural no homem inclui (p. 168). Nesse contexto, afirma Lacan que poderíamos definir concretamente a psicologia como o campo do insensato, ou, dito de outra maneira, de tudo aquilo que cria nó no discurso – como indicam suficientemente as ‘palavras’ da paixão (p. 168). É à loucura que Lacan está se referindo aqui. Assim, mesmo ainda sem estar de posse do conceito de inconsciente, advindo de Freud, Lacan já situa o campo da psicologia no que o discurso (consciente) dá nó. Lacan (1998b) adianta, nessa ocasião, o que formulará mais tarde, quando construirá seu conceito de significante e postulará a primazia deste sobre o significado, bem como diferenciará o dito do dizer, o enunciado da enunciação. Adiante, ele descreve sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty como salutar para entender essa experiência vivida pelo sujeito:

    A obra do Sr. Merleau-Ponty, no entanto, demonstra de maneira decisiva que toda fenomenologia sadia, da percepção, por exemplo, ordena que se considere a experiência vivida antes de qualquer objetivação; e antes até de qualquer análise reflexiva que misture a objetivação com a experiência. Eu me explico: a mais ínfima ilusão visual patenteia que ela se impõe à experiência antes que a observação da figura parte por parte a corrija; com o que se objetiva a forma chamada de real (LACAN, 1998b, p. 180).

    Lacan (1998b) está se referindo à experiência, nesse instante, como aquela que antecede a qualquer observação. Na verdade, ele também está se referindo ao estádio do espelho e da precipitação do sujeito (infant) diante da imagem, da apreensão da forma como um todo, antes mesmo de se estar maduro neurofisiologicamente. Lacan continua dizendo que "é a ilusão em si que nos dá a ação de Gestalt, que é aqui o objeto próprio da psicologia" (p. 180). Está, assim, ratificado o que lhe preocupava nessa época, ou seja, o fascínio do sujeito diante da imagem, da imago, enfim, diante do outro. Essa preocupação já estava, como vimos, presente no texto de 1936, Para - além do ‘princípio de realidade’ e não somente nele, como também quando da elaboração do estádio do espelho³⁰, desse mesmo ano, e no texto sobre a Família, de 1938. Logo, é ao conhecimento que vem do outro que Lacan também está se referindo. E, mais especificamente, ao caráter paranoico do conhecimento humano, ideia elaborada por Lacan desde 1932, na Tese de doutoramento. Então, ele afirma:

    Ressalto que não se trata de um desmentido de pertencimento, mas de uma negação formal: em outras palavras, de um fenômeno típico de desconhecimento e sob a forma invertida em que insistimos, forma cuja expressão mais habitual – Não vá pensar que... – já nos fornece essa relação mais habitual com o outro como tal, que valorizaremos no Eu (LACAN, 1998b, p. 180-181).

    A fim de ilustrar a problemática a respeito do reconhecimento do Eu que passa pelo conhecimento do outro, Lacan comenta os trabalhos de Charlotte Bühler, ao observar o comportamento da criança com seu companheiro de brincadeiras, que "reconheceu esse transitivismo sob a forma cativante de uma verdadeira captação da imagem do outro (LACAN, 1998b, p. 182). O texto se segue de maneira que Lacan fará uma síntese do que havia postulado até então sobre o conhecimento humano; sobre a alienação do eu no outro e, finalmente, sobre a série de perdas de que é feita a história do homem, de cada homem. Lacan interligará tudo isso com a estrutura da loucura: no limiar desse desenvolvimento, portanto, eis aí ligados o Eu primordial, como essencialmente alienado, e o sacrifício primitivo, como essencialmente suicida: ou seja, a estrutura fundamental da loucura" (p. 188). Assim, de acordo com essa afirmativa, vemos que é fundamental, para Lacan, a ideia de que o Eu só se pode se reconhecer como tal na medida em que se renuncia a si mesmo em prol da imagem refletida no espelho; entretanto, percebida como não sendo a sua, melhor dizendo, sendo a imagem de um outro. É preciso, dessa maneira, que o Eu se aliene no outro e renuncie a si mesmo para que possa se ascender como sujeito. Nesse contexto, é a primazia do imaginário que se realiza aqui.

    No texto escrito dois anos após o escrito sobre a causalidade psíquica, denominado A agressividade em psicanálise – relatório apresentado no XI Congresso dos Psicanalistas de Língua Francesa, reunidos em Bruxelas, em meados de maio de 1948 – Lacan já está totalmente envolvido com a dialética hegeliana, cuja aprendizagem se deu via os cursos de Kojève. Nesse texto de 1948, sobre a Agressividade em psicanálise, Lacan (1998c) dissertará sobre a agressividade que se apresenta na relação psicanalítica, na sua ação, que se desenvolve na e pela comunicação verbal, isto é, numa apreensão dialética do sentido. Ela supõe, portanto, um sujeito que se manifeste como tal para outro (p. 105). Torna-se pertinente salientar que essa afirmativa dá início a primeira das seis teses que são defendidas por Lacan, ao longo de todo o texto. O título dessa primeira tese é: A agressividade se manifesta numa experiência que é subjetiva por sua própria constituição. Assim, destaca-se daquela importante afirmação de Lacan a presença do paradigma da intersubjetividade, salientado na expressão: um sujeito que se manifeste como tal para o outro, paradigma que não o acompanhará por muitos anos. A expressão: apreensão dialética do sentido é também fundamental para entendermos o que, após alguns anos, Lacan fará, beneficiado das descobertas da Linguística moderna, com o conceito de significante e consequentemente com a noção da subversão do sujeito pelo significante; em outras palavras, nesse momento, já está presente a ideia de que a linguagem só tem importância de ser, para a experiência psicanalítica, se se referir ao sujeito, pois é ele quem lhe dá o seu sentido, ou seja, a linguagem só tem sentido na medida em que diz respeito a um sujeito, específico, nessa época, entendido como concreto. Daí a razão da experiência psicanalítica ser essencialmente singular, premissa que será de grande importância para nós, pois, iremos postular, posteriormente neste trabalho, a ideia de que a ética da psicanálise fundamenta-se na singularidade do desejo. É, nesse sentido, que Lacan (1998c) afirma categoricamente: somente um sujeito pode compreender um sentido; inversamente, todo fenômeno de sentido implica um sujeito (p. 105). A respeito dessa afirmativa de Lacan, Jorge Forbes (1996), psicanalista, comenta que Lacan, também com essa afirmativa, resolve de uma vez por todas, se assim podemos dizer, o que ele já vinha trabalhando desde a Tese de 1932, a reintrodução do sujeito no discurso médico-psiquiátrico, dito de outro modo, para Lacan só podemos falar em psicologia, só podemos considerar, estudar um fenômeno psicológico, se aprendermos como dotado de um sentido. Ora, quem lhe dá esse sentido é o sujeito considerado em sua concreticidade, em seu contexto humano, vital. Então, não é à toa, nem por acaso que Lacan busca, em Freud – inicialmente, como estamos vendo, timidamente, fazendo-lhe até críticas, e imbuído de um espírito relativista – fundamentação e alicerce para erguer um conhecimento psicológico, uma ciência psicológica que não tenha mais sustentação no associacionismo. É assim que ele vai se servindo da fenomenologia, da dialética hegeliana, como estamos começando a ver ao comentar esse texto de 1948 sobre A agressividade em psicanálise, para manter acesas as chamas de suas teses, ideias, bem como convencer os demais de suas certezas.

    Voltando ao texto de 1948 sobre a Agressividade em psicanálise, Lacan (1998c) faz uma afirmação, que é fundamental para o objetivo desta nossa obra, de modo a nos fazer pensar no aspecto ético da análise, da prática analítica, que não se trata de maneira alguma de uma técnica somente. Em suas palavras:

    Na análise, um sujeito se dá como podendo ser compreendido, e de fato o é: a introspecção e a intuição pretensamente projetiva não constituem, aqui, os vícios de princípio que uma psicologia, em seus primeiros passos no caminho da ciência, considerou irredutíveis. Isso equivaleria a transformar em impasse momentos

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