Introdução à Trindade
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Introdução à Trindade - Lynne Faber Lorenzen
INTRODUÇÃO
No cristianismo ocidental dos tempos atuais, a doutrina da Trindade é verdadeiramente um enigma. Por um lado, ela é a base do culto litúrgico, expressa na saudação A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós
, na doxologia Louvado seja Deus de quem emanam todas as bênçãos, louvem-no todas as criaturas da terra, louvem-no todas as hostes celestiais, louvor ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo
, e na bênção, Abençoe-vos o Deus todo-poderoso, Pai, Filho e Espírito Santo, agora e para sempre
, todas de estrutura trinitária. Esta foi e continua sendo a estrutura tanto dos credos antigos como dos modernos. Os credos niceno e dos apóstolos começam com um parágrafo sobre Deus Pai que cria o mundo, continuam com uma declaração atinente ao Filho, Jesus Cristo, e terminam com uma afirmação a respeito do Espírito Santo. A doutrina da Trindade é o princípio organizador de quase toda a teologia cristã ocidental. Por outro lado, muitos cristãos ocidentais concentram a teologia e a fé na pessoa de Jesus, excluindo outras categorias teológicas. Para esses, a doutrina da Trindade praticamente inexiste. A relação de Deus com a criação se restringe tanto a Jesus, que é quase impossível situar Deus em algum outro lugar no mundo. Outros cristãos ocidentais usam a doutrina da Trindade no culto e repetem a profissão de fé expressa por um dos credos históricos, mas não vêem nenhuma relação entre essas declarações e o modo como Deus se relaciona com o mundo salvificamente, como salvador. A doutrina da Trindade se separou da doutrina da salvação, soteriologia, da doutrina da Igreja, eclesiologia, e da compreensão cristã do significado de Jesus como Cristo, cristologia. Mais estranho ainda é que essa doutrina se afastou da compreensão cristã de Deus. Ela opera acima ou ao lado dessas três doutrinas, mas não as integra num todo, de modo que é possível desenvolver uma nova doutrina da Igreja ou de Cristo sem nenhuma conse-qüência sobre a doutrina da Trindade. Além disso, como a integração da teologia pela doutrina trinitária é puramente formal, as doutrinas individuais perdem muito de sua interdependência.
Assim, na tradição cristã ocidental, a teologia ficou desarticulada, e a Trindade passou a ser um conceito abstrato que parece dizer alguma coisa a respeito de Deus, mas não influencia nenhuma outra doutrina cristã. Para os crentes em geral, essa desarticulação é tão evidente que chegam a se perguntar por que, tradição à parte, os teólogos insistem em falar da Trindade. Outro fator revelador da extensão desse distanciamento é a falta de sensibilidade de muitos teólogos para a necessidade de estabelecer relação entre a teologia e a Trindade.
Como chegamos a essa situação? No Ocidente, a língua principal era o latim, não o grego, o que significava que teólogos como Agostinho, que não sabiam grego, só podiam recorrer a autores latinos, como Tertuliano, para conhecer a tradição. Assim, depois de Agostinho, que desenvolveu sua própria teologia, as tradições ocidental e oriental seguiram direções cada vez mais divergentes. Agostinho desenvolveu uma doutrina da Trindade, mas para ele tratava-se de doutrina recebida que lhe caberia explicar; ela nunca foi o núcleo da sua própria teologia, e também não foi a doutrina que promoveu a integração da sua compreensão de Cristo, da salvação e do modo como Deus se relaciona com a salvação. O distanciamento da Trindade com relação às demais áreas da teologia cristã começou com Agostinho e continuou na tradição ocidental.
No que se refere aos diálogos ecumênicos entre cristãos ocidentais e orientais essa diferença se tornou crucial. A tradição oriental conservou o vínculo entre a Trindade e a teologia da Igreja, razão pela qual o Oriente insiste em afirmar que a Trindade é necessária para dar testemunho da Igreja enquanto cristã. Não mantendo essa coerência, a tradição ocidental se concentrou em Jesus como o Cristo e passou a considerar a Trindade uma questão separada. Mesmo hoje os parceiros do diálogo freqüentemente falam sozinhos.
Uma solução para o problema seria o Ocidente simplesmente adotar a teologia oriental, mas isso significaria aceitar uma teologia caracterizada pelos teólogos ocidentais como pelagiana ou semipelagiana. Quando teólogos ocidentais usam esses termos, eles dizem que é necessário que façamos alguma coisa para merecer a salvação, pois ela só é concedida pela graça de Deus como dom imerecido. Significaria também aderir a uma doutrina da Trindade em que o conceito de três é essencial e abraçar uma tradição que neste momento não ordena mulheres nem leva em consideração questões de linguagem relacionadas com Deus. Portanto, esta é solução improvável.
A solução descrita neste livro, mais realista, propõe que o cristão ocidental volte a descobrir a função original da doutrina da Trindade como parte integrante da soteriologia, da cristologia e da doutrina de Deus, e que desenvolva uma doutrina que possa reautenticar a Trindade. Para compreen-der como a doutrina da Trindade pode integrar a teologia cristã será necessário examinar a tradição oriental, na qual ela continua exercendo essa função. Esse exame se concentrará na soteriologia e na cristologia e procurará ver como elas fazem parte da doutrina oriental da Trindade. O objetivo é integrar essas doutrinas numa doutrina da Trindade para o Ocidente.
Como a doutrina original da Trindade era devedora ao vocabulário e ao pensamento filosófico do seu tempo e por isso era autêntica para o seu contexto, assim uma doutrina reautenticada da Trindade será devedora a uma cosmovisão filosófica contemporânea, especificamente, à filosofia do processo. Uma metafísica do processo apresenta Deus e o mundo como verdadeiramente relacionados de modo salvífico. Sua doutrina de Deus inclui o mundo todo, desde as partículas subatômicas até os seres humanos, numa relação em que a salvação ocorre. Assim, o pensamento do processo ajudará a desenvolver uma Trindade reautenticada que integra a salvação do mundo com Deus.
Temos necessidade de uma doutrina da Trindade que seja funcional para o Ocidente do mesmo modo que o pensamento trinitário sempre foi referencial para o Oriente. Daí que o primeiro recurso para uma doutrina ocidental reau-tenticada é o ensinamento trinitário clássico da Igreja oriental. O teólogo que mais contribuiu para recuperar esse pensamento oriental para o Ocidente é Jürgen Moltmann. Moltmann rejeita o monoteísmo extremo do Ocidente e oferece uma alternativa trinitária que integra as doutrinas da cristologia e da salvação, mas ele dá tanta ênfase à condição trina, que esta solução pode afastar-se com demasiada rapidez da preocupação ocidental com a unidade em Deus. Apesar de pouco relacionada com a tradição oriental, a teologia feminista recuperou uma compreensão holística e integrada da salvação que é necessária para uma doutrina ocidental adequada da Trindade. Assim, os recursos na tradição cristã disponíveis para este projeto são a ortodoxia, a obra de Moltmann, o feminismo e o pensamento do processo.
A ortodoxia é a teologia da tradição pré-agostiniana da Igreja cristã que ainda hoje continua sendo praticada nas igrejas cristãs ortodoxas orientais. Para essa tradição, a Trindade é a doutrina central, e integra a soteriologia e a cristologia. Assim a função que a Trindade deve ter na teologia cristã se fundamentará nessa tradição oriental. Desse modo, a Trinda-de enquanto Pai, Filho e Espírito Santo aponta para a compreensão da salvação cujo paradigma é a transfiguração. Como Jesus foi transfigurado no monte Tabor (Mc 9,2-8; Mt 17,1-8; Lc 9,28-36), assim todos podemos passar por essa mesma experiência. E isso é possível porque somos criados à imagem de Deus, o que significa que a graça de Deus é inerente à nossa natureza humana e define quem somos. Significa também que a tarefa que somos convidados a empreender é a de realizar essa imagem revelando o amor de Deus para o mundo através de nossas palavras e obras. Assim, pecar é recusar o convite de Deus a participar da salvação. Esse processo gradual de tornar-se pessoalmente Deus pela graça também contribui para a salvação do mundo ao nosso redor. Como a presença de Deus em nós pela graça possibilita nossa transfiguração, assim nossa resposta positiva a essa graça transfigura o mundo todo e o transforma em reino de Deus. Essa compreensão da salvação mostra o modo persuasivo de Deus de relacionar-se com o mundo para realizar a salvação que em sua abrangência inclui não somente os seres humanos, mas o mundo todo.
Jesus é identificado como Filho para indicar o vínculo estreito entre ele e o Pai, e assim o que é revelado no Filho é digno de confiança. Este Cristo de Deus é o fermento na massa, como nós somos fermento no mundo. Neste caso, por ser Cristo verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, a humanidade é transfigurada pela presença da divindade nessa humanidade, e assim esse Filho fornece a compreensão do objetivo da humanidade – tornar-se Deus pela graça – e também os meios que possibilitam esse objetivo. Sem a transfiguração prévia do Filho, a humanidade não conheceria a possibilidade, e sem a existência concreta do Filho, a transfiguração humana não seria metafisicamente possível.
Como o Pai está presente no mundo, e o Filho está presente na pessoa chamada Jesus, assim o Espírito Santo está presente em cada crente, dispensando-lhe fé e perseverança para que siga o Caminho de Deus e possibilitando que todo batizado chegue à theosis (divinização), isto é, que se torne Deus pela graça e nesse processo leve a efeito a salvação do mundo. Assim, nessa Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo são necessários, e são necessários nessas categorias para que a salvação ocorra desse modo. Esta primeira Trindade oferece um modelo a seguir ao integrar salvação, Cristo e Deus numa fórmula-síntese.
O segundo recurso é a obra de Jürgen Moltmann. Moltmann oferece muitos elementos que coincidem com a ortodoxia, especialmente sua compreensão de que a Trindade inclui a cristologia e a soteriologia como componentes básicos. A essas idéias antigas acrescenta o relacionamento recíproco entre Deus e o mundo, de modo que a Trindade econômica
recebe o que ocorre, o que acontece no mundo. Ele também agrega a noção de que o tempo, e portanto a mudança, está no âmago do universo. Como a Trindade econômica
é a história da salvação, o tempo e a mudança também estão incluídos em Deus. Essas idéias, somadas às da ortodoxia, enformarão nossa própria formulação da doutrina da Trindade.
O terceiro recurso à disposição deste projeto é o feminismo. O feminismo liga o fato de sermos criados à imagem de Deus com nosso envolvimento no processo da salvação. O feminismo compreende a salvação de uma forma que destaca o inter-relacionamento de tudo no mundo, a cooperação entre Deus e os seres humanos e a salvação como algo que ocorre aqui e agora e inclui toda a criação. Ele redefine o pecado como obstrução do processo de salvação pela recusa de participar, negando assim a salvação não somente à pessoa mas também ao mundo. O pecado é contra o mundo e por decorrência também contra Deus. O feminismo põe sob suspeição imagens e linguagens anteriores sobre Deus, uma vez que essas imagens foram usadas para excluir a mulher de papéis de liderança na Igreja e, por extensão, também do poder na esfera política. Ele considera essas imagens tradicionais exclusivistas, limitadoras, e portanto inadequadas. Com relação à cristologia, as feministas enfatizam o Cristo como presença de Deus no mundo de um modo que não se limita a Jesus, embora Deus esteja sem dúvida presente nele. Essa ênfase possibilita que se incluam as mulheres, e também os homens, como seres em quem Deus está presente. Para as feministas, a relação entre Deus e as pessoas não é relação de poder-sobre ou de julgamento, mas de amizade e cooperação. O objetivo não é controlar outros, mas libertá-los para responderem a Deus conforme suas capacidades. Deus se relaciona com o mundo de modo persuasivo. Este é também um modo salvífico, e se baseia na experiência que a mulher tem de Deus, do mundo e de Deus no mundo.
É importante observar que a visão feminista do mundo tem muito em comum com Moltmann e com a ortodoxia. A salvação ocorre aqui e agora, e é o processo de transformação do mundo do estado em que ele se encontra agora num mundo vivo com Deus. A salvação envolve o mundo inteiro porque tudo está interligado com tudo; os seres humanos são criados à imagem de Deus e por isso se relacionam com Deus de modo que torna a sinergia ou a cooperação possível e necessária para a salvação; o pecado é a recusa de participar do processo de salvação, embaraçando-o, e assim, pecar contra o mundo é pecar contra Deus; Cristo é a evidência da transfiguração ou transformação; Deus se relaciona com o mundo de forma persuasiva.
O pensamento do processo, e especificamente a teologia do processo, é outro recurso à disposição deste projeto. A teologia do processo concorda com o parágrafo-síntese acima em todas as suas conclusões. O que o processo tem a oferecer, que não esteve à disposição até aqui, é metafísica que descreve como o mundo inteiro trabalha com Deus como parte integrante do processo. Da perspectiva do processo, a salvação é processo contínuo, persuasivo e recíproco entre Deus e o mundo que se movimenta em direção à harmonia em Deus e à harmonia no mundo. A salvação depende da ação persuasiva de Deus para envolver as pessoas na participação desse processo. Como todo o cosmos está incluído, nenhum esforço humano deixa de ter relação com a salvação. A participação humana pode resultar na transformação do mundo de sua situação presente para uma situação harmoniosa por meio de pessoas que cooperam com a atração de Deus que nos atrai a uma visão salvífica do futuro. Esse processo é recíproco