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Somente a graça: A salvação como dádiva de Deus
Somente a graça: A salvação como dádiva de Deus
Somente a graça: A salvação como dádiva de Deus
E-book37 páginas11 horas

Somente a graça: A salvação como dádiva de Deus

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Sobre este e-book

Nesta obra, parte de uma série sobre os cinco solas da Reforma, vou explorar a noção de graça com um panorama do modo como ela é encontrada na Bíblia. Em seguida, vou dedicar tempo considerável à observação da graça do modo como tem sido articulada ao longo da história da igreja, concluindo com a Reforma. Escolhi terminar a discussão histórica com a Reforma não porque considero a Reforma uma era dourada particularmente pura ou um zênite da vida da igreja. Fiz isso porque acredito que os padrões básicos da compreensão protestante e evangélica da graça estão suficientemente desenvolvidos na Reforma para permitir-nos tirar lições para os dias de hoje.

A linguagem da graça permeia de tal maneira a Bíblia e todas as tradições da teologia cristã que afirmar que a salvação vem somente pela graça é, em si, dizer muito pouco. Não distingue Agostinho de Pelágio, Tomás de Aquino de Gabriel Biel, Martinho Lutero de Desidério Erasmo, ou Guilherme Perkins de Jacó Armínio. O que os distingue é como a graça é compreendida. Portanto, há uma necessidade de definição, a fim de que a graça não se torne apenas uma peça vazia de retórica teológica. Na verdade, diferentemente de "somente a fé", é improvável que "somente a graça", como simples expressão, provoque muita controvérsia entre aqueles que alegam ser cristãos.

A graça é o cerne do evangelho cristão. É uma doutrina que toca as profundezas da existência humana porque não só nos revela o próprio coração de Deus, mas também nos atrai de volta àquela preciosa comunhão com ele que tão tragicamente foi perdida na queda. Minha esperança é que este pequeno livro possa guiar você não apenas a uma melhor compreensão doutrinária da questão, mas também a dar-lhe uma visão mais gloriosa do Deus a quem adoramos. (Do Prefácio)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de out. de 2022
ISBN9786559891726
Somente a graça: A salvação como dádiva de Deus

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    Somente a graça - Carl R. Trueman

    Parte 1

    Capítulo 1

    A graça na Bíblia

    Por vocação, sou professor de história da igreja e pastor de uma igreja local. Portanto, a maior parte deste livro representará, se não os meus pontos fortes, pelo menos as áreas em que provavelmente sou mais competente: História e Eclesiologia. Ainda que o assunto do livro, somente a graça, inevitavelmente nos remeta a questões históricas e práticas, acima de tudo remete-nos às Escrituras. E isso é o correto. Escrevo como protestante, um herdeiro da Reforma, e, desse modo, como alguém comprometido não apenas com o princípio de somente a graça, mas também com o de somente a Escritura.[1] Portanto, toda teologia deve ser regida ou regulada pelo ensino da Escritura. Assim, embora os heróis históricos da narrativa que conto sejam Agostinho, Tomás de Aquino e os reformadores, eles eram motivados pelo desejo de compreender e de proclamar o que Deus havia ensinado a respeito da graça nas palavras inspiradas das Escrituras. Por esse motivo, é importante começar nosso estudo abordando o próprio ensino bíblico acerca da graça.

    Uma pesquisa da palavra graça e seus cognatos na versão ESV (English Standard) da Bíblia encontra mais de 150 ocorrências ao longo do Antigo e do Novo Testamentos, com a grande maioria neste último. De fato, graça, como termo específico, tem ocorrência relativamente rara no Antigo Testamento. No entanto, não devemos deixar-nos enganar por uma abordagem tão incipiente e concluir que o conceito de graça não permeia toda a Bíblia, do início ao fim. Uma busca do termo Trindade mostra que não há absolutamente nenhuma ocorrência, embora nenhum cristão ortodoxo negue que o conceito seja parte vital do ensino da Bíblia. Assim é com a graça: a graça permeia a Escritura como um dos ensinos mais importantes sobre Deus e seu relacionamento com a criação.

    De fato, quando começamos a considerar o ensino da Escritura sobre a graça, podemos caracterizá-lo a princípio dizendo que tem duplo significado teológico na Bíblia. Em primeiro lugar, com mais frequência quer dizer o favor imerecido de Deus. Talvez possamos dizer, com toda a reverência devida, que desse modo a graça fala da atitude de Deus para com a criação e para com seu povo. Quando pensam na graça nesse sentido, os teólogos reformados têm feito mais uma distinção entre a graça comum, que se refere ao favor imerecido, mas não salvífico, de Deus para com a criação caída que limita o mal e permite aos seres humanos prosperar neste reino terreno, e a graça especial, que se refere ao favor salvífico imerecido de Deus manifestado na obra do Senhor Jesus Cristo e por meio dela.

    Em segundo lugar, a graça pode significar a realização ativa do favor imerecido de Deus na vida da igreja e do cristão. Aqui a linguagem da graça refere-se à obra de Deus naqueles em relação aos quais ele demonstra uma atitude de favor salvífico. Ele não só nos salva dos nossos pecados, mas também nos faz amadurecer na fé e usa-nos para trazer glória ao seu nome enquanto estamos aqui na terra. Esta também é, em última instância, a obra graciosa de Deus. Portanto, esses dois significados estão intimamente relacionados: é porque somos salvos pela graça que essa graça age na nossa vida para cumprir os propósitos de Deus em nós. A vida cristã tem sua origem na graça de Deus e é vivida mediante a graça de Deus. E isso é verdadeiro tanto no Antigo quanto no Novo Testamento.[2]

    A graça no Antigo Testamento

    Nas traduções para a língua inglesa do Antigo Testamento, embora o substantivo graça seja raro, o adjetivo gracioso é mais comum.[3] Isso porque a graça de Deus não é um atributo da natureza de Deus no sentido de que, digamos, a onipotência e a onisciência o são. A graça está estreitamente ligada ao fato de que seres humanos são caídos e portanto merecem a ira e o juízo de Deus. Podemos dizer que a graça é uma resposta, uma aplicação do caráter e dos atributos de Deus, à rebelião humana. A graça é aquele aspecto da ação divina mediante o qual Deus abençoa suas criaturas rebeldes, seja pela preservação (graça comum), seja pela salvação (graça especial). Ela caracteriza o modo como ele lida com aqueles que, por rejeitá-lo como criador e soberano, não merecem nada dele e ainda assim ele escolhe abençoá-los. O caráter da graça é manifestado em particular na salvação. Um Deus amoroso, afrontado pela rebelião das suas criaturas, deseja trazê-las de volta à comunhão consigo. No entanto, sua santidade não pode simplesmente permitir que o pecado delas passe sem resposta, pois, se permitir que nossa ímpia rejeição a ele permaneça, Deus está contradizendo sua própria natureza. A resposta é a graça, a ação da parte de Deus, motivada pelo amor e moldada pela santidade, que leva em conta a seriedade do pecado e ainda assim leva os pecadores de volta à comunhão com ele.

    Em suma, se o mundo não existisse e jamais tivesse caído, não se poderia dizer que Deus é gracioso. Uma geração mais velha de teólogos teria se referido a isso como um atributo relacional de Deus, que existe apenas em relação a algo além do próprio Deus. Descreve uma disposição ativa em direção a essa outra coisa.

    Quando Deus passa diante de Moisés no Sinai, em Êxodo 34.6-7, ele proclama a si mesmo como sendo gracioso.

    (…) passando o

    Senhor

    por diante dele, clamou.

    Senhor

    , Senhor Deus compassivo [gracioso], clemente [misericordioso] e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado, e visita a iniquidade dos pais nos filhos e nos filhos dos filhos, até à terceira e quarta geração!

    Aí, o Senhor descreve-se como gracioso e misericordioso, duas maneiras de dizer essencialmente a mesma coisa. Observe, porém, o motivo pelo qual ele declara isso. Diante do pecado e da rebelião humanos, o Senhor escolheu não exigir justiça, como tinha o direito de fazer. Ao contrário, escolheu ser gracioso e misericordioso. Em outras palavras, ele decidiu mostrar favor imerecido para com aqueles que não o merecem, e nas suas palavras a Moisés ele lembra seu povo desse fato. A disposição graciosa de Deus está no âmago de muitas bênçãos bíblicas que têm sido pronunciadas sobre o povo de Deus ao longo dos anos.[4]

    A graça misericordiosa de Deus para com seu povo permeia a narrativa do Antigo Testamento, do momento em que ele permite que Adão e Eva vivam depois de terem pecado, passando pela preservação amorosa de seu povo Israel em face da frequente murmuração e rebelião, até a vinda de Cristo. A graça também fornece o pano de fundo de um dos mais famosos exemplos de petulância profética. Quando Jonas vai relutantemente a Nínive conclamar os ninivitas ao arrependimento, e o Senhor, em conse­quência, poupa a cidade e seus habitantes, Jonas fica furioso. O fundamento da queixa é irônico: ele alega que sabia que o Senhor faria isso porque entendia, ecoando Êxodo 34.6, que Deus era um Deus gracioso (Jn 4.2). É irônico porque era somente o fato da graciosidade de Deus que permitia que o próprio Jonas desfrutasse do relacionamento com o Senhor. Jonas relutava em conceder aos outros aquilo que ele tinha como natural.

    A história de Jonas é por demais humana. Como o grande cínico Gore Vidal disse certa vez que, sempre que ouvia a respeito do sucesso de um amigo, um pedacinho dele morria. Vidal toca em algo muito verdadeiro: há uma parte de nós, como homens pecadores, que odeia o sucesso alheio, e ver a graça de Deus tão gloriosamente manifestada na vida dos ninivitas era mais do que Jonas podia suportar. No entanto, a reação de Jonas só é tão feia porque a graça de Deus é tão linda. Uma cidade inteira de seres humanos dissolutos, corruptos e vis é, então, livrada do juízo e levada à alegre comunhão com Deus. O foco da história não está tanto na amargura da alma de Jonas, mas na gloriosa graça de Deus.

    Graça e aliança

    No cerne do ensino do Antigo Testamento sobre a graça de Deus está a aliança de Deus com seu povo. A aliança provê a revelação histórica, o fio condutor e a estrutura dos atos graciosos de Deus. A cerimônia da aliança abraâmica descrita em Gênesis 15 é ao mesmo tempo convencional e muito incomum. De um lado, era comum que as alianças do Oriente Próximo da antiguidade fossem ratificadas pela partição ao meio de animais sacrificiais, entre os quais as partes da aliança passariam como modo de dizer: Se quebrarmos os termos desta aliança, que sejamos partidos ao meio, assim como essas criaturas o foram. No entanto, em Gênesis 15, Abrão não passa entre as carcaças; só o Senhor faz isso. Ao agir dessa maneira, o Senhor, de modo incondicional e unilateral, se compromete com Abrão e seus descendentes. Como vemos no Novo Testamento, essa ação prefigura a obra de Cristo na cruz do Calvário, onde ele toma sobre si a pena pelos nossos pecados em cumprimento da aliança.

    A aliança torna-se a chave da administração da graça de Deus em vários momentos importantes na história de Israel. Em 2Reis 13, lemos sobre como Hazael, rei da Síria (a quem o Senhor havia suscitado para disciplinar seu próprio povo, 1Rs 19.15-17), estivera oprimindo o reino de Israel. É dito que o Senhor decidiu ser gracioso para com seu povo e preservá-lo, por amor da aliança com Abraão, Isaque e Jacó (v. 23). Em outras palavras, a base para os atos graciosos de Deus para com seu povo em meio ao pecado e à rebelião contínuos eram as promessas da aliança que ele havia feito aos patriarcas. Reis justos como Ezequias perceberam isso, e em 2Crônicas 30 vemo-lo citar a aliança graciosa de Deus quando conclamou a nação ao arrependimento. Os judeus estavam conscientes da sua história de aliança com Deus e profundamente cientes de que essas promessas formavam a base da posição graciosa que eles tinham diante dele.

    Dada a importância da aliança nas interações graciosas de Deus com seu povo, a narrativa da graça de Deus para com eles era essencial para a identidade de Israel. Ela moldou o que podemos chamar de vida litúrgica da nação, tanto nas histórias que contavam a respeito de si mesmos em casa quanto nas grandes declarações públicas diante da nação e do mundo. Em Êxodo 12, Moisés fala ao povo sobre um tempo em que seus descendentes não terão uma memória de primeira mão dos acontecimentos do êxodo nem um entendimento imediato do significado da ceia pascal. Nesse contexto, ele os instrui a saber de cor e a relatar a história do grande resgate que Deus havia feito do seu povo na terra do Egito. Quando uma nova geração pergunta Quem somos nós?, a resposta é clara: Somos o povo escolhido de Deus a quem ele graciosamente resgatou da servidão no Egito. A graça de Deus constitui a base da identidade nacional deles. São um povo formado e sustentado pela graça.

    Graça, confissão e bênção

    Também vemos isso quando consideramos a confissão de fé judaica no Antigo Testamento, a shemá de Deuteronômio 6. Ao recitar as palavras da shemá, o povo declara que Deus é único, seguido do mandamento de amá-lo e da advertência para não esquecer os atos grandiosos e graciosos de libertação que o Senhor realizou pelo seu povo. A identidade do povo de Deus é estabelecida pela sua história, e sua história é a de um ato salvífico, imerecido e gracioso da parte de Deus para com eles. Em suma, eles são o povo da graça de Deus. A graça é essencial para a identidade deles. Quando se lembram de quem Deus é, têm de se lembrar necessariamente do que ele fez por eles. A identidade deles não tem início com as suas próprias atividades, mas com a ação anterior de Deus para com eles.

    Israel é quem é porque é o objeto da graça divina, e essa verdade é central à grande bênção que deve ser dada ao povo, a bênção araônica de Números 6.24-26: "O

    Senhor

    te abençoe e te guarde; o

    Senhor

    faça resplandecer o rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti; o

    Senhor

    sobre ti levante o rosto e te dê a paz".

    Até hoje, essas palavras são frequentemente proferidas no fim dos cultos de adoração em igrejas protestantes, precisamente porque lembram o povo de quem eles são – pecadores que receberam o favor gratuito de Deus e se tornaram seu povo. A bênção aponta as pessoas para a graça de Deus, pela qual se aproximam dele. Quando colocam-se diante de Deus, criaturas caídas e pecadoras precisam ser lembradas de que Deus é gracioso para com elas, que ele escolhe abençoá-las não por causa de algum mérito que tenham, mas simplesmente porque ele, o Senhor, escolheu ser misericordioso para com elas. Deus não as trata conforme o pecado e a rebelião delas mereciam. Deus é um Deus de graça, e sua graça define o que significa para elas ser o povo de Deus.

    A bênção de Números 6 foi dada originalmente ao sacerdócio araônico, e isso a vincula estreitamente a todo o sistema sacrificial do Antigo Testamento. Vamos observar isso porque hoje temos uma tendência a reduzir a graça a um tipo de sentimento divino. Essa redução da graça barateia o perdão. De modo incorreto, acreditamos que nos desculpar será suficiente para cobrir o mal do nosso pecado. No entanto, a graça é muito mais que um conceito sentimental. A graça está ligada ao ser e à ação de Deus, sobretudo à ação de Deus em Cristo. Portanto, é preciosa e não deve ser tratada de maneira trivial, como se fosse algo barato.[5]

    Graça e sacrifício

    Em contraste com o sentimentalismo barato, a graça de Deus no Antigo Testamento é mais que um capricho ou uma capitulação fraca à rebelião humana. Deus não ignora o problema do pecado nem finge que este não existe. Ele sente uma ira santa perante o pecado e não pode simplesmente perdoar a rejeição de sua regra como algo que nunca tivesse acontecido. Portanto, é necessário que haja uma ação expiatória para lidar com as transgressões dos seus mandamentos. Assim, Deus estabelece um sistema sacrificial sob o comando de Moisés, cuja manifestação suprema é o Dia da Expiação, detalhado em Levítico 16, pelo qual o pecado pode ser tratado. O próprio Deus cria o sistema sacrificial, regula-o por meio da sua palavra e do sacerdócio eleito e, por fim, é Deus quem escolhe aceitar os sacrifícios apresentados a ele.

    Este fato – de que Deus estabelece e regula o sistema sacrificial – não deve ser ignorado. É significativo porque nos ensina que os sacrifícios do Antigo Testamento não eram uma tentativa dos seres humanos de encontrar algo que aplacasse ou lisonjeasse um Deus colérico. Imaginamos equivocadamente que Deus estava irado com seu povo, e este de algum modo descobriu modos de desviar-lhe o braço e conquistar o favor dele apesar do pecado. As Escrituras nos ensinam que foi Deus quem tomou a iniciativa, revelando como seres humanos pecadores podiam relacionar-se com ele. Essa iniciativa é mais uma evidência de sua graça e favor para com seu povo. Não se trata de a humanidade erguer-se em direção a Deus, mas de Deus abaixar-se em direção à humanidade, uma ação totalmente baseada no favor imerecido de Deus para com seu povo. Ele determina, pela graça, os sacrifícios que servem para satisfazer sua justiça.

    Evidentemente, a atividade graciosa de Deus não começa com o sistema sacrificial instituído sob Moisés. Indícios dela são encontrados já no início do Antigo Testamento. Vemos pela primeira vez a manifestação da graça de Deus quando ele confronta Adão e Eva no jardim depois da queda. Adão e a esposa fizeram para si roupas com folhas numa tentativa de cobrir-lhes a vergonha. Quando se aproxima, Deus não aceita a cobertura, mas tampouco os elimina da face da terra. Ao contrário, ele mata animais e com a pele deles cobre Adão e Eva, a fim de que a nudez pecaminosa seja ocultada. Deus trata do problema imediato da culpa deles à sua própria maneira. Em outras palavras, ele provê a solução do problema do pecado de Adão. Em Gênesis 3, apesar de toda a sua ira pela rebelião de Adão, ele se revela um Deus gracioso, que salva seu povo mediante o sacrifício animal. Esses temas são recorrentes nas Escrituras, como vemos novamente em Gênesis 22, por exemplo. Depois que Deus pediu que Abraão sacrificasse seu único filho ao Senhor, Abraão faz a declaração portentosa de que o próprio Deus proveria o cordeiro para o holocausto (Gn 22.8). Mais uma vez, vemos Deus revelar-se como gracioso, porque provê para seu povo o que este não pode prover para si – o sacrifício requerido pelo pecado. Deus e sacríficio estão inextricavelmente ligados em toda a relação de Deus com seu povo no Antigo Testamento.

    Talvez aqui valha a pena fazer uma pausa por um momento e refletir sobre as implicações existenciais do fato de o sacrifício estar ligado à salvação e à graça. Os sacrifícios eram brutais e sangrentos. Com frequência, os opositores da indústria da carne dizem que mais pessoas seriam vegetarianas se tivessem de matar os animais que comem. Provavelmente seja verdade, porque matar um animal é um acontecimento dramático e intenso, sobretudo quando é feito com uma faca, e não com uma arma de fogo. Envolve violência e, literalmente, sangue e vísceras. Imagine o impacto sobre Adão e Eva ao serem vestidos com peles cruas e ensanguentadas de animais mortos por Deus para cobri-los. Isso teria sido um grande contraste com as folhas que escolheram para si. O Senhor estava sinalizando para eles que suas ações tinham consequências catastróficas, que iam além dos piores pesadelos. E imagine estar presente num sacrifício e ver o sangue literalmente jorrar de um cordeiro. Uma coisa é entender o significado cúltico e doutrinal do sacrifício. Outra, completamente diferente, é testemunhar pessoalmente um sacrifício.

    A alienação humana de Deus é algo que nos afeta no nível mais profundo e é um problema de proporções catastróficas. O modo anódino, friamente objetivo, como discutimos o sacrifício na sala de conferências, ou a transformação da cruz num item de decoração, são testemunhos eloquentes de como transformamos o problema da condição humana e a resposta da graça de Deus em ideias prestes a se tornarem meras abstrações. A natureza violenta do sacrifício põe sob julgamento a inadequação dessas concepções e lembra-nos da dimensão existencial poderosa da rebelião humana e da graça divina. O pecado é uma rebelião violenta e letal contra Deus; a graça bíblica é a resposta violenta, brutal e sangrenta de Deus.

    Graça e oração

    Os seres humanos são pecadores e não merecem das mãos de Deus nada senão a justiça e a ira. No entanto, como vimos, a ação graciosa de Deus é tanto uma resposta ao pecado quanto o que dá a Israel sua identidade básica. Assim, não deveria surpreender-nos descobrir que a graça é um elemento fundamental da piedade do Antigo Testamento. Ao longo das narrativas do Antigo Testamento, dos Salmos e dos profetas, observamos que o povo de Deus clama ao Senhor nas orações, implorando que ele seja gracioso.

    Evidentemente, a oração está estreitamente ligada à noção de sacrifício. Não devemos nos esquecer disso, pois fazê-lo seria separar a oração da sua posição na ação graciosa de Deus e também perder o aspecto existencial poderoso e brutal que observamos acima com relação à natureza do sacrifício. Se a graça não é sentimento vazio, então tampouco a oração é uma ação sentimental. Quantas vezes vemos no noticiário exemplos de sofrimento humano com a resposta de que as pessoas estão orando pelas vítimas? Conquanto em certo sentido a resposta seja boa, é difícil não perguntar se frases como nossos pensamentos e orações estão com as vítimas não são na verdade só outra maneira de dizer sentimos muito pelas vítimas e queremos expressar nossa solidariedade para com elas e seus entes queridos. Isso não é oração bíblica. A oração bíblica baseia-se na graça de Deus e, portanto, no caráter de Deus como expresso nas suas ações salvíficas para com seu povo e como anunciado nos sacrifícios sangrentos do Antigo Testamento.

    É por isso que o lugar primário da oração no Antigo Testamento é o tabernáculo e, depois, o templo, os lugares em que Deus habita em aliança com seu povo e onde lhe são oferecidos sacrifícios. O templo era uma casa de oração (Is 56.7; cf. Mt 21.13). Também era o lugar onde as orações eram respondidas. A confusão existencial do salmista quanto à aparente prosperidade dos maus, por exemplo, é resolvida quando ele leva suas perguntas ao santuário de Deus (Sl 73.16-17). Só podemos especular quanto ao que exatamente aconteceu-lhe no templo para resolver o problema, mas decerto tinha algo que ver com as ações sacrificiais que aconteciam ali.

    Se o sacrifício é o contexto da oração, então mais uma vez podemos observar que o caráter de Deus revelado nesse sacrifício tem a maior importância. Quando conduz o povo de Israel em oração de confissão coletiva, Neemias (Ne 9) relata como Deus os salvou no passado, apesar do pecado e da rebelião, e lhe atribui graça (v. 17), conscientemente ecoando as palavras que Deus havia declarado sobre si mesmo em Êxodo 34.6. Neemias sabe que nesse momento crítico, quando Israel volta para Jerusalém, um conhecimento da graça de Deus será de vital importância para o povo. Eles devem ser ensinados a lembrar quem são à luz do que Deus tem feito por eles, de modo que possam entender o significado das suas ações. Neemias não fala das necessidades imediatas do povo; ele remete às grandes interações históricas de Deus com seu povo, conclamando-os a trazer à memória como Deus revelou-se misericordioso e fiel a eles no passado. Neemias se dirige tanto ao povo quanto ao próprio Deus na sua oração, pedindo que Deus seja o Deus que prometera ser e lembrando o povo de quem eles são. Claro, ele está comprometido com o grande projeto de reconstruir o templo, o próprio lugar onde os sacrifícios que sustentam a oração são realizados.

    Em nenhum lugar o impacto existencial da graça é mais evidente que nos salmos. Quando nos voltamos para eles, descobrimos que estão repletos de referências à graça de Deus, bem como clamores explícitos para que ele seja gracioso. De fato, a graça de Deus serve como base para a piedade do salmista. É somente a graça de Deus que constitui a base de qualquer compromisso salvífico com ele. Em Salmos 4, ele clama que Deus seja gracioso ao ouvir-lhe a oração (v. 1). Salmos 6 pede ao Senhor que seja gracioso ao não repreender o salmista em sua ira (v. 1). Em Salmos 9, o salmista clama que o Senhor seja gracioso ao salvá-lo da perseguição nas mãos dos inimigos (v. 13). Às vezes, o sofrimento do salmista leva-o a perguntar se Deus ainda é gracioso (Sl 77.9), embora em outros tempos sua confiança transborde com declarações exultantes do quanto Deus é gracioso, ecoando outras declarações do caráter gracioso de Deus encontrado em Êxodo 34.6 (Sl 103.8; 145.8) ou a bênção sacerdotal (Sl 67.1). Como já observado, a aliança também figura como fundamento da graça de Deus. Comumente, a oração assume a forma de clamor a Deus e de pedir a ele que seja o Deus gracioso que prometera ser. O salmista não olha para seu próprio mérito, mas, antes, para o caráter de Deus, segundo ele tem se mostrado na relação com seu povo.

    A partir de um estudo da oração nos salmos, fica claro que a graça de Deus, o favor imerecido na relação com seu povo, é fundamental para o relacionamento entre os seres humanos e seu criador. A oração não é uma conversa entre iguais nem um exercício cooperativo entre um servo e um rei. A piedade dos salmos é decididamente unilateral, arraigada no caráter de Deus e na sua resposta ao pecado humano. O salmista não reconhece nenhum mérito em si, mas olha apenas para a graça de Deus ao fazer seus pedidos. Quando passamos para o Novo Testamento, vemos essa graça encarnada e definitivamente revelada no Senhor Jesus Cristo, embora mesmo na piedade do Antigo Testamento vemos o povo voltando-se para a graça de Deus. Viver no favor e na graça de Deus tem sido o anseio perene do povo de Deus desde o princípio. O salmista sabe que a única resposta às perguntas mais profundas e perturbadoras da existência humana é a graça de Deus.

    De fato, no cerne da piedade bíblica estabelecida no Antigo Testamento há um grito de desespero humano. Os salmistas reconhecem que há esperança, mas esta é encontrada apenas na iniciativa graciosa de Deus. Eles desesperaram de si mesmos e não veem esperança numa criação caída. Sabem que, se a salvação deve vir, só pode vir do próprio Deus e só pode estar arraigada no caráter e nas ações dele. A razão é simples: os seres humanos estão em rebelião contra Deus. A criação geme sob o peso do pecado humano e da ruptura de nosso relacionamento com o criador. A experiência humana é trágica: a vida não é como devia ser e termina na morte, a pena do pecado. A morte é um intruso antinatural no reino da existência humana, e a esperança, se é que há alguma, deve estar no próprio Deus intervindo na criação a partir de fora e agindo em direção a ela com misericórdia

    É por isso que, mesmo no mais sombrio dos salmos (Sl 88), no qual não há nenhuma expressão explícita de esperança, o salmista usa o nome da aliança de Deus. O desespero é confrontado pelo cenário maior da aliança de Deus e da sua graça. O problema da humanidade não é a falta de autorrealização que exige afirmação e assistência pessoal. É que nos rebelamos contra Deus no núcleo do

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