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Teologia para viver com sentido: Homenagem aos 80 anos do teólogo João Batista Libanio
Teologia para viver com sentido: Homenagem aos 80 anos do teólogo João Batista Libanio
Teologia para viver com sentido: Homenagem aos 80 anos do teólogo João Batista Libanio
E-book372 páginas4 horas

Teologia para viver com sentido: Homenagem aos 80 anos do teólogo João Batista Libanio

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Sobre este e-book

Teologia para viver com sentido é um livro homenagem ao teólogo brasileiro João Batista Libanio, por ocasião de seus oitenta anos de vida. Nele, articulam-se textos teológicos de nível acadêmico com aspectos pastorais e testemunhais, escritos de forma original e atraente, que são inseparáveis na trajetória de Libanio. Somados à relação de sua vasta produção teológica, têm como objetivo ajudar a conhecer e compreender a magnitude deste homem que é, sem dúvida, um dos maiores nomes da teologia em nosso país e na América Latina. Organizado com a contribuição dos Programas de Pós-Graduação de Teologia da Faculdade Jesuíta (FAJE) e da PUC-Rio e do PPG de Ciências da Religião da PUC-Minas, esta obra dialoga com Libanio a partir do horizonte da Teologia Fundamental. Trata de pensar a experiência religiosa e a fé em perspectiva de diálogo com a sociedade contemporânea, plural e multiforme. Os autores dos capítulos - pessoas amigas, professores e ex-alunos de Libanio - beberam da fonte genuína da teologia deste grande mestre e sentiram-se tocados pelo seu testemunho de vida. Tão forte quanto o impacto de seu legado teológico, marcado pela profundidade espiritual e pelo rigor científico, é sua presença simples, respeitosa e, ao mesmo tempo, sábia e iluminada. Uma presença que por si só humaniza e convida a contemplar o infinito. Sua riqueza intelectual, sua coerência pastoral e suas lições de vida são a herança que queremos fazer frutificar, como sinal de nossa homenagem e de nossa gratidão.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento2 de jun. de 2016
ISBN9788535641806
Teologia para viver com sentido: Homenagem aos 80 anos do teólogo João Batista Libanio

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    Teologia para viver com sentido - Afonso Murad

    Afonso Murad

    Vera Bombonatto (orgs.)

    Teologia

    para viver com sentido

    www.paulinas.org.br

    editora@paulinas.com.br

    Introdução

    Afonso Murad¹ e Vera Bombonatto²

    Vivemos num tempo de muitas perguntas e poucas respostas, vários problemas complexos e insuficientes soluções duradouras. A teologia, peregrina junto com o homem e a mulher de hoje, não escapa desta realidade. Mas os desafios a estimulam a escutar, com sensibilidade apurada, os apelos da humanidade e neles interpretar a presença-ausência de Deus. Experiência que consola, unifica e interpela. Então, a teologia abre caminhos inusitados, cunha respostas à luz da fé e colabora com outras ciências nas soluções das questões decisivas neste momento histórico. Ao realizar tal intento, ela recria a si mesma, numa fidelidade simultânea à Bíblia, à tradição eclesial e ao futuro que se descortina.

    Este livro, escrito a muitas mãos, somou os olhares de vários(as) teólogos(as) e professores(as) das ciências da religião para ajudar a tornar a fé compreensível, crível e vivível (Torres Queiruga) na atualidade. É uma contribuição concreta desses saberes para o espaço acadêmico, as Igrejas cristãs e a sociedade. Duas chaves temáticas orientaram seus autores e elas se interpenetram, a ponto de não ser possível separá-las: a Teologia Fundamental e a pessoa e obra do teólogo brasileiro João Batista Libanio, por ocasião de seus 80 anos de vida.

    Entende-se aqui como Fundamental a área da Teologia cristã cujo objeto é a revelação, a fé e o pensar teológico. Ela se detém inicialmente sobre a fé (e a religiosidade), como fenômeno pessoal, coletivo e institucional. Crer, enquanto ato teologal, significa responder à proposta divina, que se denomina revelação. A Teologia Fundamental também estuda sobre a natureza, o método e o estatuto epistemológico da teologia, e sua relação com as ciências da religião e outros saberes. Como visa a compreender, justificar, anunciar e dialogar sobre a fé (e a partir da fé), ela se torna imprescindível para a Teologia pública. Elaborar Teologia Fundamental é colocar-se em diálogo profícuo com a universidade, as ciências e os cientistas, os diversos movimentos em prol de cidadania, enfim, a sociedade civil. Por isso ela se reveste de importância crescente, tanto para a docência nas Instituições de Ensino Superior de Teologia quanto para a evangelização. Nesse sentido, cremos que este livro será útil para professores de teologia, mestrandos e doutorandos, bem como para estudantes de teologia e ciências da religião e agentes de pastoral, pois aborda um conjunto de temas centrais da Teologia Fundamental. E, no momento, não há trabalho no Brasil que contemple o assunto com tal abrangência. Tomamos como referência nuclear (mas não exclusiva) a originalidade do pensamento de J. B. Libanio. Por quê?

    Esta obra consiste numa homenagem aos 80 anos de vida do grande teólogo brasileiro João Batista Libanio. Em vários países do mundo cultiva-se o hábito saudável de publicar um livro para reverenciar autores que se destacam pela sua produção científica e literária e contribuem qualitativamente em distintos campos da sociedade civil. Em alemão, tal obra se chama Festschrift. Optamos por fazer uma Festschrift para Libanio, pois temos muito a agradecer-lhe pela imensa e excelente produção teológica nas áreas da Teologia Fundamental, da sistemática, da espiritualidade e da pastoral. Não somente isso. Libanio acompanhou várias pessoas que escrevem nesta obra, como orientador de estudos, de dissertação e tese de doutorado, ou como orientador espiritual, ou enquanto amigo e companheiro de caminho na fé.

    Não hesitamos chamá-lo mestre, pois trata-se de uma autoridade da teologia no Brasil e na América Latina. Um mestre que ensina seus discípulos a pensar, que não retém para si os conhecimentos, que prepara as pessoas para a autonomia e o pensar maduro. Libanio tornou-se conhecido no mundo como um dos protagonistas da Teologia da Libertação. Suas obras foram publicadas em vários países e idiomas. Até o momento da edição deste livro, ele não sofreu nenhuma perseguição ou restrição à sua missão de teólogo, mesmo tendo abordado temas polêmicos, que retiram os atores eclesiais de sua zona de conforto. Seu segredo, que ele mesmo já revelou, consiste em apresentar sua visão de maneira dialética e sábia. Em cada afirmação, apresenta o sim e o não, mostrando como eles estão presentes nos fatos e no pensamento, em diferente intensidade. Não se prende a posições unilaterais. Agindo com honestidade intelectual, desvela os esquemas mentais próprios, dos seus interlocutores e daqueles que se colocam como seus inimigos. Dotado de inteligência brilhante, grande capacidade comunicativa e bom humor, Libanio seduz o público que o escuta. Mas não retém as pessoas em torno de si nem deixa-se levar pela ilusão da fama, dos holofotes que cegam o olhar das celebridades.

    Este livro visa a tornar mais conhecida a pessoa e a obra do Padre Libanio, para que professores e estudantes de teologia e ciências da religião se inspirem nele e somem com ele na imensa tarefa de pensar a fé e a religiosidade na sociedade contemporânea, e contribuir na formação da consciência planetária. Seria inviável fazer isso sem tomar um ponto de partida, pois Libanio escreve e atua em muitas frentes. Por isso, escolhemos o foco da Teologia Fundamental.

    O livro oferece artigos de vários autores, de distintas Instituições de Ensino Superior, especialmente da FAJE, PUC-Rio e PUC Minas, de forma a contemplar enfoques múltiplos e complementares. Nesse sentido, também, não há uma sequência recomendada, como num livro didático. O leitor pode recorrer aos artigos que melhor respondem às suas buscas existenciais, teóricas ou pastorais. Organizamos a obra em dois blocos, sempre tendo em vista o duplo eixo de Teologia Fundamental e J. B. Libanio.

    O primeiro bloco se abre com artigo do próprio Libanio: Teologia Fundamental: itinerário de um professor. Ele relata como viveu a mudança da Apologética para a Teologia do Diálogo com a Modernidade e a Pós-Modernidade. E finaliza sugerindo procedimentos originais para os novos professores. A seguir, Maria Clara Bingemer brinda o leitor com o artigo A teologia Fundamental hoje: transformações a partir do Concílio. Apresenta temas centrais desta área da teologia, no estilo de um verbete de dicionário. Parte da relação entre teologia e antropologia, reflete sobre linguagem e experiência e a dimensão reveladora da história. No núcleo do artigo, desenvolve o delicado tema da relação entre Escritura e Tradição Eclesial, bem como as suas instâncias. Por fim, deixar pistas para a temática sob a ótica latino-americana.

    Roberlei Panasiewicz e Paulo Agostinho Baptista, no artigo Crer e dialogar: o desafio de ser cristão na sociedade atual, apresentam um panorama da sociedade contemporânea sob a perspectiva da subjetividade pós e hipermoderna. Recorrendo à contribuição de Libanio e de outros teólogos contemporâneos, descortinam as possibilidades do futuro do Cristianismo na sociedade plural. Sustentam que a identidade cristã se fortalece (e não se dissolve) ao se confrontar com o diferente. Trata-se de aprender com as oportunidades do pluralismo religioso e o despontar de novos sujeitos e lugares teológicos. Já o artigo de Pedro Rubens de Oliveira, Dar razões da esperança cristã no seio da ambiguidade religiosa: preâmbulos de uma Teologia Fundamental como discernimento, oferece categorias de leitura para compreender as dimensões racional e interpretativa da ciência da fé. O autor percorre longo caminho de hermenêutica filosófica, passeando livremente no meio de pensadores como Habermas e Gadamer, Derrida e Ricoeur. Trata-se de um rigoroso exercício de Teologia Fundamental, a partir da filosofia. Como isso fornece parâmetros para a análise de duas diferentes formas de viver a fé na atualidade: a das Comunidades Eclesiais de Base e a do Pentecostalismo. De certa maneira, Pedro Rubens responde à pergunta colocada por César Alves no artigo seguinte, Alma e sentido da Teologia Fundamental. O autor pôs a questão: qual seria o princípio irrenunciável da Teologia Fundamental: a filosofia ou a Bíblia? À luz do Concílio Vaticano II, César resgata a importância de ambas as instâncias, pois não se trata de contrapô-las.

    Encerrando o primeiro bloco, Afonso Murad reflete sobre o campo de abrangência da Teologia Fundamental, bem como sua importância para o diálogo com a sociedade contemporânea, na linha da Teologia Pública. Defende que a Teologia Fundamental não deve ser uma mera reflexão formal, anterior à teologia propriamente dita, mas sim um componente presente em todas as áreas, pois trata-se do fundamento de um pensar iluminado pela fé. Por isso ela prepara o aprendiz para aprender a aprender. O autor conjuga a contribuição de dois grandes teólogos latino-americanos, Juan Luis Segundo e João Batista Libanio, nas tarefas da teologia de autocompreender-se, dialogar com a sociedade e articular o pensamento de forma heurística, sistemática e crítica.

    O segundo bloco inicia-se com alguns temas que constituem parte da atuação pastoral e acadêmica de Libanio, por serem questões relevantes para a Igreja, a teologia e a sociedade na América Latina e no Caribe. Escolhemos aqui dois temas: as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Teologia da Libertação (TdL). O artigo de Pedro Ribeiro de Oliveira, CEB: espaço religioso de afirmação popular, mostra o atual impasse das CEBs diante da estrutura eclesiástica católica. Nascida como uma nova forma de ser Igreja, a partir do protagonismo popular, sofre pressões para ser reduzida a uma saudosa experiência do passado. A seguir, Paulo Fernando Andrade, no artigo A Teologia da Libertação entre passado e futuro, apresenta um quadro diacrônico desta corrente teológica latino-americana, desde os inícios até os nossos dias. Conclui sua reflexão apontando a originalidade e a permanência da TdL. Na sequência, nada melhor do que apresentar uma síntese de Libanio sobre o assunto.

    Agora, então, passamos do tema Teologia Fundamental para o autor, J. B. Libanio. Faustino Teixeira brinda-nos com uma bela síntese da vida de nosso homenageado, no artigo Cultivo da formação e a vida intelectual. Mais do que fragmentos de uma biografia (que vale a pena ser lida por si), Faustino apresenta os traços de Libanio como formador, o que inspira a missão de milhares de educadores no nosso País, em várias áreas do saber. A seguir, o artigo de Mauro Passos: Um teólogo em movimento: caminhos e diálogos, consiste numa abordagem original da obra de Libanio, do ponto de vista literário. Trata-se de uma laudatio, que discorre sem exageros e sugestivas analogias.

    Dois testemunho fecham com chave de ouro este Festschrift sobre Teologia Fundamental, dedicada aos 80 anos de Libanio. Lauro Oliveira, pároco na cidade de Vespasiano (região metropolitana de Belo Horizonte), expressa sua gratidão pelo trabalho que Libanio desenvolve com ele. Mais um traço inusitado do rico perfil de Libanio: o teólogo renomado é também presbítero e agente de pastoral, que serve ao Povo de Deus com palavras e gestos simples e profundos. Por fim, a conclusão nas breves e expressivas palavras de Leonardo Boff, que vale a pena saborear.

    Dois anexos completam o livro. Flávio Senra, que recebeu Libanio no seu programa de TV Religare, entrevista-o com questões inteligentes, relacionando sua vida e obra com o contexto atual do mundo em mudança, das Igrejas e da teologia. Vários aspectos, abordados pelos artigos do livro, são aqui retomados por Libanio de forma concisa, como se fosse uma conclusão aberta. Uma pergunta merece ser lida com atenção: qual o fio condutor de sua obra? O segundo anexo, de Geraldo de Mori, apresenta uma bibliografia primária de J. B. Libanio, reunindo títulos dos principais livros e artigos do autor, em várias línguas. Prova patente da amplidão e abrangência da obra de Libanio, destina-se, especialmente, a pesquisadores.

    Este livro é o resultado da parceria de três Instituições de Ensino Superior: o Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte-MG (FAJE), o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC Minas e o Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUC-Rio. Trata-se, portanto, de uma publicação interinstitucional, visando ao desenvolvimento da pesquisa e a divulgação científica da teologia e das ciências da religião. O projeto foi elaborado coletivamente e passou por várias etapas de discussão, no correr de um ano de trabalho. Nele se envolveram diretamente professores, pesquisadores e coordenadores dos PPGs parceiros. Dentre eles, destacam-se: Roberlei Panasiewicz (PUC Minas), Paulo Fernando C. de Andrade (PUC-Rio), Afonso Murad (FAJE), além de Vera Bombonatto, de Paulinas Editora.

    Esperamos que esta obra enriqueça o horizonte teológico e das ciências da religião no Brasil, a partir da figura e da obra estimulante de João Batista Libanio.

    A Teologia Fundamental: itinerário de um professor

    João Batista Libanio³

    Introdução

    A Teologia Fundamental entra-me na vida, em primeira e balbuciante tentativa, nos anos jovens de formação antes da Filosofia. No curso colegial, o programa previa um esboço de apologética, ensinada, aliás, em perspectiva extremamente tradicional. Deixemos fora essa mancha longínqua.

    O primeiro contato sério se deu no curso de graduação de Teologia. Depois vieram anos de contato com ela já na qualidade de orientador de estudos dos alunos de Teologia brasileiros na Gregoriana. E, por fim, os anos de docência. Percorrerei rapidamente tais etapas.

    1. Teologia Fundamental: sob o império da razão apologética

    Entrei em contato com a Teologia Fundamental no contexto extremamente conservador da Pontifícia Universidade de Comillas, Santander. Embora já circulasse, em outros centros teológicos, a Nouvelle Théologie, iniciada no pós-guerra, reinava ainda a velha apologética e dogmática na maioria dos cursos teológicos católicos do mundo. Os manuais publicados pela BAC⁴ e pela Pontifícia Universidade Gregoriana⁵ orientavam tal matéria mundo afora. À guisa de exemplo pitoresco: apareceu, naqueles idos, em Comillas, um professor de Teologia Fundamental nos EUA, tido, então, como país de vanguarda. Perguntaram-lhe alguns curiosos que manual ele usava no curso. Respondeu sem mais: o da BAC...

    A Teologia Fundamental se constituiu para justificar racionalmente para o cristão a própria fé e defendê-la contra os ataques da razão iluminista e, de modo especial, dos mestres da suspeita. Estudava e firmava os fundamentos da fé até chegar a mostrar a obrigação de crer. A Modernidade cultural instaurara a autonomia quase absoluta da razão e das ciências empíricas, destronando a fé e a Teologia. Além disso, a Reforma acentuara a subjetividade com os três princípios básicos: sola scriptura, sola fide, sola gratia. E, em relação à Bíblia, valorizava o livre exame. Em forte reação contra a razão ilustrada e contra a Reforma, a Teologia Fundamental católica armara enorme parafernália de raciocínios lógicos.

    Em primeiro plano, tratava-se de defender a acessibilidade à revelação para, a partir dela, construir toda a teologia. A razão autônoma teimava em negar-lhe a existência, reduzindo-a a mera projeção da subjetividade humana. L. Feuerbach formulara, sem dúvida, a crítica mais contundente e contra ela se organizara o arsenal de guerra da apologética.

    Esta lutava contra dois extremos presentes na Modernidade. A supervalorização da razão em detrimento da fé e a desvalorização da razão em prol da afetividade, da incapacidade de o ser humano atingir a verdade. A posição tradicional defendeu a possibilidade racional de mostrar a plausibilidade da revelação, caso Deus quisesse no-la comunicar.

    Adestrava-se a razão especulativa na defesa da fé católica com respeito à revelação por quatro passos em oposição ao racionalismo. Elaborou-se lógica de argumentos para provar a possibilidade, a conveniência, a necessidade e o fato da revelação e tudo o que daí decorria.

    Não lhe bastava defender unicamente a revelação divina. Pois quem estava a interpretá-la punha-se como arauto da instituição Igreja. A Teologia Fundamental pretendia mostrar que a Igreja e a Teologia por ela elaborada tinham a garantia absoluta de verdade, de infalibilidade, de veracidade. Até lá chegava a pretensão lógica e racional. Uma vez estabelecida essa base, toda a Teologia Sistemática que daí decorria recebia o aval de autenticidade e verdade. Em face dessa Teologia, faço-me hoje duas perguntas: que aprendi dela e que tive de abandonar como algo superado pela nova etapa?

    Ela prosseguia, em linha direta, a Filosofia aristotélico-tomista estudada naqueles tempos. Aguçava ainda mais tal mentalidade. Os conteúdos estudados caducaram-me rápido. Desmoronou-se o edifício então construído. As teologias bíblica e patrística e a dos grandes teólogos da fase seguinte corroeram radicalmente aquele arcabouço arcaico. Não lhe sobrou quase nada. Os manuais, escritos em latim, jazem hoje empoeirados nas estantes. Aproximou-se desses livros a obra apologética do Padre Cerruti, que lecionou tal tipo de Teologia durante anos na PUC-Rio.⁶ Apenas alguém compulsa obra tão vasta.

    A metodologia usada nessa Teologia desenvolvera certo rigor formal que, mesmo com o esvaziamento do conteúdo, deixou traços positivos. Aguçou-me a mente na distinção de conceitos, na seriedade dos argumentos, na lógica do raciocínio. A acribia da Teologia Fundamental ensinou-me a criticar e a conservar lucidez no meio da cultura Pós-Moderna, sem contornos, pastosa. Desenvolveu-me olhar perspicaz e fino para atravessar os jogos ideológicos e desmascará-los.

    Mais: essa Teologia clássica primava pela sistematicidade. Usando comparação popular, familiar a C. Mesters: ela estendia, no início, um varal no qual se dependuravam as peças que se sucediam. Ou de modo teórico: ela estabelecia no começo eixo temático em torno do qual se estruturavam as partes. Essa capacidade sistemática contrasta com a cultura fragmentada atual. Nisso mostra superioridade e dela aprendi a clareza e organização do pensamento.

    2. Na perspectiva da evolução do dogma

    Esse universo teórico desmoronou fragorosamente. A entrada da Nouvelle Théologie inverte o processo da Teologia Fundamental.⁷ Não se vai da razão à fé, como num contínuo, mas parte-se da fé para buscar-lhe intelecção. E a fé fundamenta-se na Escritura. O primeiro contato se faz, então, com o dado bíblico. Tornou-se clássica a obra de René Latourelle: La Théologie de la Révélation.⁸ Esse teólogo canadense substituiu no ensino da Teologia Fundamental da Gregoriana ao Padre Tromp, cuja obra citamos acima. Essa mudança de professor significou mudança de conteúdo e metodologia.

    Nessa época, como orientador de estudos dos alunos do Pontifício Colégio Pio Brasileiro de Roma, entrei em contato pessoal e intelectual com esse teólogo e sua obra. Tive de explicá-la em casa para os alunos do colégio. A mudança tocou três pontos básicos em relação à Teologia Fundamental tradicional.

    Na primeira etapa, a Teologia Fundamental punha-se a serviço da Teologia Sistemática, e esta, por sua vez, secundava os ensinamentos do Magistério da Igreja. Uma Teologia de natureza fortemente institucional, instrumental. O novo método rompe com tal dependência e estatui a Palavra de Deus como a fonte primeira. Como começar, então, o tratado sobre a revelação? Compulsar o que a Escritura nos mostra a respeito do processo da revelação de Deus até chegar à plenitude em Jesus. Tal atitude básica fora assumida pelo próprio Concílio Vaticano II na constituição dogmática Dei Verbum.

    Como estava em Roma durante o Concílio, tive, portanto, a oportunidade de entrar em contato com essa nova linha da Teologia pela via da obra de Latourelle e pelas peripécias por que passou o texto da Dei Verbum. Essa constituição dogmática começou no espírito tradicional, com a afirmação das duas fontes da revelação, para terminar no belíssimo texto de que dispomos.

    O deslocamento da concepção de revelação em relação ao Concílio Vaticano I (1870) permitiu a mudança na concepção de verdade da revelação. Em vez de calcar sobre a distinção racional de três níveis de verdade – verdades naturais que a razão alcança; verdades naturais reveladas que, apesar de a razão poder conhecê-las, Deus no-las revela; e verdades reveladas sobrenaturais que somente se conhecem pela revelação de Deus –, a constituição Dei Verbum a contempla no processo da manifestação de Deus na história.

    A fé não se restringe ao plano de crer como verdades as coisas reveladas em virtude da autoridade de Deus, mas desloca-se para a dimensão de adesão à pessoa de Jesus e daí para todo o projeto salvador de Deus. Então o aspecto de revelação intelectualista se move para o existencial e histórico, como se encontra na Escritura.

    Essa virada trouxe três dimensões novas para a Teologia Fundamental: existencialidade, historicidade e caráter bíblico em vez de pura objetividade, abstração e racionalidade do momento anterior.

    O caráter existencial adveio de personalizar a revelação como manifestação de Deus Pai por meio do Filho Jesus Cristo. Nele ela atingiu o ponto alto. E por fim em atribuir à ação do Espírito no coração dos fiéis a última fonte de sua aceitação. O texto conciliar usa a bela metáfora da amizade ao dizer que Deus fala aos homens como a amigos, entretém-se com eles para convidá-los e recebê-los em sua comunhão.

    Valorizou-se, assim, a importância de quem crê, não por algum voluntarismo extrinsecista nem por racionalismo lógico, mas pela via da adesão pessoal a Jesus no Espírito Santo. A Trindade ocupa lugar fundamental na nova concepção de revelação. E isso afeta a totalidade da compreensão da Teologia.

    O Concílio Vaticano II, além disto, acentua a relação entre evento e palavras em vez de simplesmente falar de verdade. Esta adquiriu maior densidade de compreensão. E no jogo entre gestos e palavras faz o acontecimento preceder à palavra, para marcar melhor o caráter histórico da revelação e superar o caráter intelectualista.

    Esta economia da revelação se concretiza através de acontecimentos e palavras intrinsecamente conexos, de sorte que as obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e corroboram os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras, que, por sua vez, proclamam as obras e elucidam o mistério nelas contido.

    Que aprendi desse momento da Teologia Fundamental? Antes de tudo, a importância da fonte bíblica. Reinava então o clima do primado da Palavra de Deus sobre as especulações da razão. Não se usavam os textos bíblicos como dicta probantia, como se fazia na neoescolástica, que usava e punha a Escritura a serviço das provas dogmáticas. Agora aprendemos a inverter o processo. Primeiro a Escritura na qualidade de fonte inicial. A partir dela, a razão prossegue o trabalho. Assim fez Latourelle no seu livro sobre a revelação. Depois da longa exposição do conceito de revelação, haurido na teologia positiva, levantou na segunda parte do livro as questões especulativas típicas da razão.

    Não se colhiam as passagens da Bíblia com a pá do interesse prévio dogmático, mas procurava-se entendê-las com a ajuda das pesquisas crítico-históricas. Já nos meus anos de Teologia em Frankfurt tinha entrado em contato com as pesquisas bíblicas em relação à história da tradição (Traditionsgeschichte), à história da formas (Formgeschichte) e à história da redação (Redaktionsgeschichte), valorizando o Sitz im Leben – o contexto vital – dos textos bíblicos.¹⁰

    O Concílio Vaticano II corrobora o primado da Palavra de Deus para toda a Teologia em dois momentos. Na Dei Verbum afirma, ao tratar da Palavra de Deus na vida da Igreja: [...] o estudo das Sagradas Páginas seja como que a alma da Sagrada Teologia.¹¹ E no decreto Optatam Totius, sobre a formação sacerdotal, ao abordar os estudos teológicos, volta a ideia da relevância da Escritura para a Teologia:

    Os alunos sejam formados com particular empenho no estudo da Sagrada Escritura, que deve ser como que a alma de toda a teologia. Depois da conveniente introdução, iniciem-se cuidadosamente no método da exegese, estudem os temas de maior importância da Revelação divina e encontrem na leitura e meditação dos Livros sagrados estímulo e alimento.

    A teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se proponham em primeiro lugar.¹²

    Esse tipo de Teologia serviu para valorizar a historicidade da verdade. Algo extremamente importante. A neoescolástica fixara-nos no caráter absoluto da verdade, dificultando-nos perceber o grau de relatividade das afirmações. A significação dos termos varia no decorrer do tempo. Com a consciência histórica entrou a importância da semântica, isto é, do conhecimento da evolução dos significados. Já desde a Teologia Fundamental o estudante entra na ótica da suspeita dos fundamentalismos, ortodoxismos, literalismos por falta de história e hermenêutica e busca fazer a clássica articulação dos contextos culturais.

    Diante de qualquer afirmação da revelação ou dogmática, essa Teologia Fundamental ensinava-nos a lançar ponte e a armar a seguinte equação: que significa para o contexto de hoje aquilo que essa afirmação significava naquele em que foi escrito? Essa descoberta heurística tem enorme importância. Superam-se os arcaísmos. Ela estabelece firme distinção entre o caráter relativo de toda verdade e o relativismo. Este não estabelece a equação porque do primeiro sentido não sobrou nada. O caráter relativo da verdade, porém, reconhece que há uma significação objetiva que carece ser reinterpretada, mas não negada, em novo contexto.

    Qual o elemento dessa revelação que me pareceu dever ser superado? Experimentei-o logo que cheguei ao Brasil depois dos dez anos de estudo e tirocínio teológico na Europa. No primeiro ano que lecionei Teologia Fundamental, apoiei-me fundamentalmente no livro Ouvinte da Palavra, de K. Rahner, e na Teologia da Revelação de Latourelle. Percebi que tal impostação interessou a geração jovem brasileira, mas somente em parte. Parecia-lhe ainda demasiado intelectualista. Faltava o chão latino-americano. Eu vinha da Modernidade europeia e aqui já se vivia uma dupla Modernidade.

    3. Na dupla Modernidade

    O aprendizado europeu trouxe enorme riqueza. Aqui no Brasil ainda reinava, em muitos lugares, a Teologia tradicional, alheia à renovação do Concílio Vaticano II. A Teologia Fundamental no estilo existencial, histórico e bíblico significava novidade e avanço para esse mundo.

    Contudo, já explodiam, no final da década de 1960, novos desejos e questionamentos. Série de eventos produzia clima de libertação junto a grupos que intentavam inculturar o Concílio Vaticano II no contexto de América Latina. Tomava-se, então, consciência da situação da secular opressão das classes dominantes, articuladas com os países centrais. E eles foram os protagonistas do Concílio Vaticano II, que não conseguiu perceber com clareza o contexto de colonialismo e dominação. A questão dos pobres permaneceu marginal, embora João XXIII e o Cardeal Lercaro, em memorável intervenção, tivessem sonhado com uma Igreja dos pobres.¹³

    Então aconteceu a Conferência Geral do Episcopado Latino-americano em Medellín (1968), que deu cobertura eclesial à efervescência que aqui existia na linha da libertação: comunidades eclesiais de base, ação política dos jovens da JEC e da JUC, grupo de bispos, do clero, de religiosos(as) e de leigos(as) progressistas que discutiam problemas da presença política da Igreja em contexto de opressão. E no Brasil a situação se agravara por causa da atuação repressiva do regime militar implantado em 1964 e agravado em 1968 (AI-5). Gustavo Gutiérrez publicou o livro programático da Teologia da Libertação¹⁴ e firmou-se crescente presença de novos teólogos na linha da libertação, com a qual me envolvi.

    Comecei a reformular a Teologia Fundamental na perspectiva da dupla ilustração. Considerava a primeira ilustração, que gerara a Teologia moderna,

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