O Corpo no Discurso Psicanalítico
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Sobre este e-book
Sustento tal diagnóstico partindo do fato de que o tema que atravessa todo o livro – o corpo – é um daqueles que mais atraem o interesse em nossa época e cultura.
Entre seus estimados valores, este volume agrega a enriquecedora participação de um número muito importante de psicanalistas cujo prestígio foi obtido em função de suas produções, transmissão e prática da psicanálise em distintas áreas, participando do diálogo com práticas afins, como a clínica hospitalar e o ensino universitário.
O livro também é valoroso porque conta com a participação de diversas correntes do pensamento psicanalítico, como winnicottiana, freudiana e lacaniana.
Destaco, finalmente, o que eu considero que deve ser especialmente elogiado: este texto expressa plenamente a vitalidade, a força e a produtividade que a psicanálise ganhou no Brasil e em língua portuguesa. A psicanálise caracterizou-se por seu início em alemão e depois por seu desenvolvimento em inglês, espanhol e francês. Atualmente, sem dúvida, para o caso de saber o que pensa, o que diz e como existe a psicanálise, é preciso também perguntar sobre sua existência em português e, especialmente, no Brasil. Esse novo desenvolvimento fornece um alcance magnífico e novo para o que Lacan designou "lacanoamericanos".
Alfredo Eidelsztein
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O Corpo no Discurso Psicanalítico - Daniela Chatelard
Eidelsztein
Sumário
EXTIMIDADE DO CORPO
A voz, inquietante EXTIMIDADE DO CORPO
Jean-Michel Vivès
Considerações sobre o corpo em sua relação com a estrutura e os discursos
Sidi Askofaré
Corpo e escrita de litorais
Ana Costa
Os mistérios do corpo falante
e a adolescente anoréxica
Sonia Alberti
Aline Martins
FAZER CORPO NA PSICANÁLISE
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Escarificações na adolescência: tentativas de reinscrição do sujeito por meio dos cortes
Vládia Jucá
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Escarificações na adolescência: uma abordagem psicanalítica
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Autista, qual teu corpo? Enlaçamentos possíveis entre corpo e linguagem
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Maria Izabel Tafuri
O corpo em psicanálise: elaborações a partir de Winnicott e McDougall
Antônio Pereira Rabelo
Dione de Medeiros Lula Zavaroni
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A crônica do crônico no discurso psicanalítico
Márcia Cristina Maesso
Fenômeno psicossomático e inconsciente
Angélica Bastos
O corpo da dor
Vera Lopes Besset
Marina Vieira Espinoza
Desesperança e dor de existir – um caso de psoríase e depressão na clínica psicanalítica
Heloísa Ramirez
Corpo em psicanálise e na patologia-limite
Eliana Rigotto Lazzarini
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Laís Macêdo Vilas Boas
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Sandra Francesca Conte de Almeida
CORPO E CRIAÇÃO
O homem é o artesão de seus suportes
Claudia Escórcio Gurgel do Amaral Pitanga
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Alvorecer de um poema: corpo e palavra na outra-idade
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CORPO, TRABALHO E CULTURA
O Trabalho do gozo e o gozo no trabalho
Christian Ingo Lenz Dunker
Um resgate epistemológico da noção de corpo para a psicanálise
Lívia Campos e Silva
Guilherme Henderson
Corpo e trabalho
Ana Magnólia Mendes
Luciane Kozicz Reis Araujo
Julia Mendes Pinheiro
Dos signos de percepção ao real do percebido
Juliano Moreira Lagoas
Daniela Scheinkman Chatelard
OS AUTORES
EXTIMIDADE DO CORPO
A voz, inquietante extimidade do corpo²
Jean-Michel Vivès
RESUMO: O autor propõe, à ocasião deste artigo, refletir a princípio sobre o sentimento da inquietante estranheza que é apreendida por aquele que ouve sua voz gravada vinda do exterior. Ele sustenta a hipótese de que é a percepção da dimensão contínua do grito que foi velado pela aparição da fala que pode ser então adivinhada e que faz com que essa situação seja muito frequentemente evitada. Em um segundo tempo, o autor consagra-se a diferenciar as dinâmicas do ouvir-se encontradas na aula de canto, na qual o que se é visado é a voz, e na sessão de análise, em que é uma nova relação com a fala que é esperada.
ABSTRACT: The author, in this article, reflects firstly on the uncanny sentiment one feels when hearing one’s recorded voice, coming back from the outside. He formulates the hypothesis that what is grasped at this moment is a perception of the continuous dimension of the cry which ordinarily is veiled by the emergence of speech. It is why one frequently avoids this kind of situation. Secondly, the author endeavours to differentiate the dynamics of hearing oneself in a singing class, where the aim is precisely the voice, from hearing oneself in analysis, where a new relation to speech is searched. Ontem à noite, gravação no rádio, tomei conhecimento da minha voz, de uma afetação a esbofetear, tinha vergonha face aos outros, mas eles me disseram que se reconhecia bem a minha voz
. (Pinget, 1971, p. 163).
É uma estranha experiência que podemos fazer de maneira reiterada sem que entretanto ela perca sua carga de estranheza. Trata-se de ouvir nossa própria voz gravada. Ouvir sua voz ressoar do exterior provoca naquele que não está habituado a tal exercício um espanto, e, muitas vezes, para além, um real mal-estar. Aparece nesse caso: Que voz é esta então que me é desconhecida e que eu devo entretanto reconhecer como minha?
. Não é raro, aliás, que essa situação seja ativamente evitada. A pessoa justifica então esse evitamento pelo insuportável do que é ouvido: uma voz horrível e ridiculamente aguda
, é afirmado na maioria das vez(i)es. Robert Pinget (1971) dirá: de uma afetação a esbofetar
. A partir daí, seria possível perguntar: O que ouvimos quando ouvimos nossa voz vinda do exterior?
. Ou, de modo mais radical: O que preferiríamos não ouvir quando nos ouvimos?
. É o que me empenharei a elucidar em um primeiro momento. Em um segundo tempo, diferenciarei duas situações nas quais a questão do ouvir-se
é central: a do cantor e a do analisante. Ambos, se eles precisam chegar a se ouvir, não podem fazê-lo senão se por intermédio de um outro. O cantor buscará ouvir-se a partir de um lugar Outro para fazer sair
sua voz. O analisante ouvir-se-á igualmente de um lugar Outro que, como proponho mostrar, não tem a mesma estrutura que a do cantor. O que será visado no caso da análise será menos a voz que a fala, ou, para ser mais preciso, um novo tipo de relação com a fala.
A inquietante estranheza do ouvir-se
Freud teria, sem dúvida, podido acrescentar às situações unheimlichkeit aquelas que produzem um sentimento de inquietante estranheza, como o caso em que o sujeito é confrontado com sua própria voz vindo-lhe do exterior. Em seu texto de 1919 (Freud, 1919/1996), ele privilegiará mais uma vez a dimensão do ver nos exemplos desenvolvidos. Um dos mais célebres é o não reconhecimento por Freud de seu próprio reflexo no vidro de uma cabine de vagão de trem. Ele conta ter visto um homem, no exterior da sua cabine, de silhueta antipática, desagradável, mesmo inquietante. Isso até o momento em que ele se reconhece nesse homem: era apenas seu reflexo no vidro da porta da cabine (Freud, 1919/1996). Se a situação insiste sobre o reflexo, é enquanto não reconhecido em um primeiro momento. O sentimento de inquietante estranheza ligado ao visual repousa sob uma revelação surpreendente, mesmo brutal, de algo conhecido mas não reconhecido. A isto opõe-se o mesmo princípio da análise, que, desde 1900, é descrito por Freud, a partir do modelo de Édipo Rei, como um lento desvelamento.
Assim, a ação da peça não consiste em nada além do processo desse desvelamento, progredindo passo a passo e sabiamente diferido – comparável ao trabalho de uma análise –, em que no fim o próprio Édipo é o assassino de Laio e também o filho da vítima do assassinato e de Jocasta, com quem sem saber havia se casado (Freud, 1900/2003, p. 302, grifo nosso).
Freud propõe a seguinte definição do inquietante, do estranho, que embora ela não insista sobre essa dimensão temporal, ela a implica: O estranho é precisamente este modo do pavoroso que remonta ao antigamente conhecido, ao desde muito tempo familiar
(Freud, 1919/1996, p. 152).
O estranho é o retorno no presente de alguma coisa do passado não reconhecida enquanto tal. As elaborações feitas por Freud a partir do campo visual concernindo o sentimento de inquietante estranheza não podem ser aplicadas tais quais ao campo sonoro. Com efeito, como lembra Lacan:
Nós nos vemos ser vistos, é por isso que nos esquivamos aí. Mas não nos ouvimos ser ouvidos. Ou seja, não nos ouvimos lá onde se ouve, isto é, na própria cabeça, ou mais exatamente, há, com efeito, quem se ouça ser ouvido, e são os loucos, os alucinados. É a estrutura da alucinação. Eles não saberiam se ouvir ser ouvidos senão no lugar do Outro, lá onde se ouve o outro reenviar sua própria mensagem de forma invertida. (Lacan, 1960-1961/2001a, pp. 364-365).
A diferença que apresentam o ver-se
e o ouvir-se
implica distinguir a trajetória da pulsão escópica da pulsão invocante. Posto que enquanto que o se fazer ver é indicado por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir vai em direção ao outro
(Lacan, 1964/1973, p. 178).
O ouvir-se
implica o Outro e, por consequência, o circuito da pulsão invocante se fecha de Outro modo
(Porge, 2012, p. 67)³ que o da pulsão escópica.
Se o texto freudiano, uma vez mais, é sobretudo econômico de análises concernentes ao campo sonoro, uma observação incidente articulando a permanência da imagem do duplo em todas as culturas à existência de uma imagem intrapsíquica que não se chama ainda superego pode deixar entrever uma possível introdução da voz no campo do estranho, que servirá de ponto de partida à minha reflexão.
No eu constitui-se lentamente uma instância particular, que pode opor-se ao resto do eu, que serve à auto‐observação e à autocrítica, que cumpre o trabalho da censura psíquica e se faz conhecer à nossa consciência como consciência moral
. No caso patológico do delírio de ser observado, ela é isolada, separada do eu pela clivagem, perceptível para o médico (Freud, 1919/1996, p. 168-169).
Como discorre em seu texto de 1914, Para introduzir o narcisismo
, Freud (1914/2005) associa aqui a instância intrapsíquica visando a auto-observação ao delírio de observação. Freud, em 1914, já ressaltava que o delírio paranoide tinha um ponto comum com certas injunções das quais o neurótico pode sofrer. Trata-se de uma instância que:
[...] observa sem parar o eu atual e o compara ao ideal [...]. Os doentes se queixam então que todos os seus pensamentos são conhecidos, que suas ações são observadas e vigiadas; eles são advertidos do funcionamento soberano desta instância por vozes que lhes falam, de modo característico, na terceira pessoa. (Agora ele pensa ainda naquilo; agora ele vai embora
). (Freud, 1914/2005, p. 238).
Nesses momentos, o que o sujeito percebe é um discurso que se dirige a ele, que comenta suas ações, seus pensamentos, e o qual, ainda que ele possa reconhecer-se como produtor, não é por ele menos invadido. Ele é confrontado a um estranho fenômeno de produção de eco, de ecoificação (Porge, 2012) de sua fala, que a torna estranhamente inquietante. A dimensão de unheimlichkeit da voz estaria ligada à sua dimensão de separação e de retorno a um lugar percebido como exterior. Se o neurótico reconhece essa voz interior como lhe pertencendo, o psicótico é incapaz disso.
Extimidade da voz
Essa inquietante estranheza da voz do supereu está ligada a um estatuto topológico particular que Theodor Reik soube desde muito cedo demarcar. Único psicanalista entre os primeiros companheiros de Freud a se interessar pela questão da voz, Reik (1958/1997) dá uma ilustração clínica muito clara do lugar singular que ocupa a voz na dinâmica do supereu à ocasião de seu texto Sobre a origem da Consciência moral
. Ele narra uma conversa com Arthur, seu filho de 8 anos, em que o papel e o lugar da voz na dinâmica do supereu se veem descritos em termos concretos e explícitos.
Um dia quando passeávamos juntos encontramos uma pessoa conhecida que se juntou a nós e que, no curso da conversa, me disse que uma voz interior
a tinha impedido de fazer algo. Depois que esse senhor nos deixou, Arthur me perguntou o que era essa voz interior
e eu lhe disse distraidamente:
– Uma impressão.
No dia seguinte, Arthur começou comigo uma conversa [...]
– Papai, agora eu sei o que é a voz interior.
– Ah sim!, disse eu.
– Eu já encontrei. A voz interior é o pensamento que se tem.
– Que pensamento?
– Bem, você sabe, por exemplo, às vezes eu me sento à mesa sem lavar as mãos: então, há uma impressão como se alguém me dissesse: Lave as mãos
. E, por vezes, à noite quando vou dormir, eu brinco com meu gambi⁴ [...]. E então a voz interior me diz novamente: Pare de brincar!
[...] Mas agora eu sei o que é a voz interior! É uma impressão em si com as palavras de um outro alguém. (Reik, 1958/1997, pp. 272-273).
É possível ser mais claro que isso? Essa situação relatada por Theodor Reik é particularmente interessante, pois ela introduz a questão do estatuto topológico particular da voz superegoica: ela é ao mesmo tempo um fenômeno interior e algo de exterior. Nos termos do menino, é um sentimento no interior de si, mas igualmente a voz de um outro. A voz é ao mesmo tempo interior e exterior (Leader, 2006). Extimidade, se queremos dar à voz esse qualificativo inventado por Lacan (1960/1986) para designar o que é íntimo e, entretanto, simultaneamente exterior. Tal intuição recorta de fato a explicação fisiológica que busca dar conta desse efeito de estranheza que sobrevém a quem se ouve.
Quando ouvimos nossa própria voz gravada, nós a percebemos tal qual ela é ouvida ao nosso redor. A gravação nos faz ouvir o que se chama a voz aérea: o som captado pela orelha externa é conduzido até o cérebro. Ao contrário, na situação mais corrente em que ouvimos nossa voz no momento em que a produzimos, quando produzimos um som com as cordas vocais, o som que ouvimos nos chega por duas vias diferentes. A primeira é aérea; a segunda, a ossosa. Essa segunda via privilegia os harmônicos graves que fazem com que tenhamos uma autopercepção da extensão de nossa voz mais grave do que ela é na realidade: as ondas se propagam por intermédio dos ossos do maxilar e do crâneo, favorecendo a propagação das frequências baixas. A voz que percebemos é, portanto, uma mistura da voz ossosa e da voz aérea. O que percebemos à ocasião da escuta da gravação de nossa voz é a nossa voz sem a voz ossosa, o que modifica consideravelmente o timbre e a torna estranhamente inquietante para nós.
Essa explicação por si só basta, no entanto, para dar conta do mal-estar persistente que se apodera daquele que é confrontado com sua voz percebida exteriormente? Não creio e levanto a hipótese de que esse mal-estar tem igualmente uma vertente inconsciente que a fórmula do que seria o estranho proposto por Freud deveria nos permitir, em parte, elucidar: O estranho na experiência de vida se produz quando os complexos infantis recalcados são trazidos à vida por uma impressão
(Freud, 1914/2005, p. 184).
Qual seria então o complexo infantil recalcado trazido à vida pela escuta da própria voz percebida desde o exterior? E em que o fato de ouvir-se
poderia constituir uma impressão suscetível de ressuscitar um complexo infantil?
O grito na dimensão estranhamente inquietante do sonoro
A hipótese que proponho é de que o aparecimento do sentimento de inquietante estranheza quando ouvimos nossa voz vinda do exterior estaria ligado a essa dimensão que participa da constituição do mundo e do eu, dimensão que foi em seguida velada pela fala (Vivès, 2012): trata-se do grito. O estranho sonoro encontraria sua fonte em um momento no qual o sujeito em vias de surgimento é tomado em uma dinâmica em que o princípio do prazer e seu mais-além constituem um mundo. A constituição desse mundo implica que se coloque de lado, que se recalque, sensações e objetos que, em um primeiro tempo, integraram o sujeito. Um dos objetos rejeitados é o grito que o infans, em um estado de tensão, expulsa em um primeiro momento, não para chamar, mas para expulsar uma sensação insustentável de sofrimento. O retorno da voz provocaria o sentimento do estranho, comemorando o momento em que o sujeito, para existir, lançou no vazio do mundo essa primeira manifestação sonora.
Para fazer avançar tal hipótese, convém lembrar como o sujeito se constitui e constrói o objeto nessa ejaculação sonora particular.
Em 1895, Freud (1887-1904/2015) descreve o nascimento do sujeito da seguinte forma: na origem, o infans é amputado de uma parte de si mesmo em decorrência da expulsão do estado de sofrimento que acarreta a ruptura do estado de equilíbrio homeostático. Essa expressão ganha a forma de um grito, que não é ainda um chamado, mas apenas a tentativa de colocar à distância o evento doloroso: a expressão sonora opera como evacuação motora de tensões. Mas o grito não é desprovido de toda utilidade, já que chama a atenção da pessoa cuidadora que executa a ação específica visando a neutralizar o estado de sofrimento. O grito do recém-nascido não pode ser considerado, num primeiro momento, como um apelo. Ele é antes de tudo apenas a tentativa de exprimir o estado de sofrimento que invade o pequeno homem. Michel Poizat (1989) propõe qualificá-lo de grito puro
, o que acentua o fato de que ele não é ainda tomado em uma dinâmica de demanda.
Esse conascimento do mundo e do sujeito num grito é descrito por Freud em 1895, em seu Projeto para uma psicologia científica.
O preenchimento dos neurônios nucleares em Ψ terá por consequência uma propensão à condução, um impulso urgente que se descarrega em direção de uma via motora. De acordo com a experiência, é então a via que leva à modificação interna (expressão de emoções, gritos, inervação vascular) que é tomada de empréstimo em primeiro. (Freud, 1887-1904/2015, p. 625, grifo nosso).
Nesse estágio, o sujeito ainda não existe. Nós o situamos no nível do que Lacan aponta, por ocasião de seu Seminário, Livro X, A angústia, sob a paradoxal fórmula do sujeito do gozo
(Lacan, 1962-1963, 2004, p. 203)⁵. Se devemos aí localizar uma primeira forma do ouvir-se
, poderíamos fazê-lo na observação que Freud faz, uma vez mais, no Projeto para uma psicologia científica, ao afirmar:
Outras percepções do objeto (o ser-humano-próximo, o Nebenmensh), ainda, por exemplo, quando ele grita, revelarão a lembrança de seus próprios gritos, e de suas próprias experiências vividas de dor. É assim que o complexo de percepção do ser-humano-próximo se divide em dois constituintes, dos quais um se impõe por um agenciamento constante e forma um conjunto como coisa, enquanto que o outro é compreendido por um trabalho de rememoração, ou seja, ele pode ser remetido a uma informação vinda do próprio corpo. (Freud, 1887-1904/2015, pp. 639-640, grifo nosso).
Observa-se a aproximação no texto freudiano do grito e da constituição da coisa enquanto elemento opaco. Se seguimos a proposição de Freud, podemos afirmar que nesse primeiro
tempo, o infans ouvia-se em seus próprios gritos e também naqueles do ser-humano-próximo. A pura continuidade produzida pela voz da mãe, a qual o infans foi primeiramente confrontado, seu timbre, que é a dimensão real da voz (Vivès & Raufast, 2005) sempre agindo no coração mesmo da fala, tende a abolir a descontinuidade que serve para transmitir a inteligibilidade do sentido. A relação vocal do infans com o Outro é aqui centrada em torno do grito. Grito que será, em um segundo momento, necessariamente velado, transformando-se em grito para
(Poizat, 1989, p. 35). Manifestação vocal que não é mais, portanto, expressão da dor, mas já apelo.
À ocasião do Seminário VII, Lacan irá propor uma leitura do Projeto freudiano que o retira do campo da neurologia e nos permite avançar sobre o lugar do grito no aparecimento do sujeito e da constituição do mundo.
Sem o grito que ele faz brotar, não teríamos do objeto desagradável senão a noção mais confusa, que, na verdade, nunca o destacaria do contexto o qual ele faria simplesmente o ponto maldito [...]. O objeto enquanto hostil, nos diz Freud, somente se sinaliza ao nível da consciência na medida em que a dor faz surgir um grito para o sujeito. A existência do feindliche Objekt como tal, é o grito do sujeito. Este é articulado desde o Entwurf. O grito preenche aí uma função de descarga e representa o papel de uma ponte ao nível da qual algo do que se passa pode ser pego e identificado na consciência do sujeito. Este algo permaneceria obscuro e inconsciente se o grito não viesse lhe dar, para o que é da consciência, o signo que lhe dá seu peso, sua presença, sua estrutura – com, do mesmo golpe, o desenvolvimento que lhe dá o fato de que os principais objetos de que se trata para o sujeito humano são objetos falantes, que lhes permitirá ver se revelar no discurso dos outros os processos que habitam efetivamente seu inconsciente. (Lacan, 1959-1960/1986, p. 42).
O grito delimita o caráter hostil do objeto e, em contrapartida, identifica-o e o constitui como ponto de referência. Se seguimos Freud e Lacan em todo rigor de seus pensamentos, somos levados a concluir que é o grito que faz existir o objeto. A essa pura ejaculação sonora, o sujeito em devir deverá renunciá-la. O grito será velado pela fala, inscrevendo o sujeito na dinâmica da demanda. A voz em sua dimensão contínua será sacrificada no altar da fala. O que causa então retorno na situação em que somos levados a nos ouvir? Não é o grito enquanto tal. Com efeito, desde que ele aparece, provoca sobretudo o pavor e não o estranho. O exemplo do grito final na ópera de Alban Berg, Lulu, mostra-o suficientemente (Poizat, 1986). Desse modo, se não é o grito enquanto tal que retorna, o que é então? Poderíamos dizer que é a dimensão contínua da voz que evoca o grito sem, entretanto, o convocar. Essa dimensão contínua é aquela que habita toda fala ameaçando ultrapassá-la. Em que o fato de ouvir nossa própria voz gravada convocaria essa dimensão do contínuo? As explicações fisiológicas fornecidas anteriormente nos permitirão compreendê-lo. Quando ouvimos nossa voz gravada, a percebemos aguda, até mesmo gritante. É a ausência dos baixos próprios à condução ossosa que modifica a percepção de nosso timbre e faz com que nossa voz nos pareça gritante, aproximando-se assim perigosamente do grito.
Lacan retomou a questão do grito cinco anos após seu seminário sobre A ética da psicanálise e introduziu, nesse momento, uma interessante diferença entre laringe e siringe.
Esta imagem em que a voz se distingue de toda voz modulante, pois, no grito, o que a faz diferente, mesmo de todas as formas as mais reduzidas da linguagem, é a simplicidade, a redução do aparelho colocado em causa, aqui a laringe não é mais que siringe. A implosão, a explosão, o corte, faltam [...] Em algum lugar, em Freud, há a percepção do caráter primordial desse buraco, desse buraco do grito. Quando o próprio Freud, em uma carta a Fliess, o articula, é no nível do grito que aparece o Nebenmensch, este próximo que mostrei que deve ser efetivamente assim nomeado, o mais próximo, porque é justamente esse vazio, esse vazio insuperável marcado no interior de nós mesmos, e do qual não podemos senão de longe nos aproximar⁶. (Lacan, 1964-1965, p. 354).
A laringe tem um papel importante na fonação humana. Ela contém cordas vocais e músculos que modificam sua abertura permitindo a modulação dos sons produzidos. A laringe é o órgão que, associado aos lábios que permitem a implosão e a explosão e, portanto, o corte, autoriza a fala e a escansão que lhe é associada.
Lacan opõe a laringe à siringe, que é ao mesmo tempo o órgão de vocalização dos pássaros e igualmente um instrumento de música (chamado também de flauta de Pan) associado às sereias.
Em sua primeira acepção, a siringe é um órgão situado no peito dos pássaros, na saída dos pulmões, composta de uma caixa de ressonância e de membranas tensionadas por músculos. Quando o ar é expulso, a membrana coloca-se a vibrar, produzindo o canto
do pássaro. Colocamos canto
entre aspas, pois as modulações e a melodia da enunciação sonora dos pássaros são parte integrante de seus enunciados significantes, quer sejam sinais de apelo, de alerta ou de marcação de território. Não poderíamos de forma alguma indicar aí distorções visando a efeitos de lirismo, abrindo a porta para um gozo como o faz o canto nos seres humanos (Poizat, 1986/1998). A enunciação dos pássaros não obedece a outras funções senão aquelas que a natureza lhes atribuiu. Os cantos dos pássaros têm uma estrutura mais ou menos imutável e são, em larga medida, rigidamente ligados ao sistema de sua espécie. A siringe enquanto órgão não é o lugar onde se cristalizam os trâmites de gozo, contrariamente à laringe humana, como mostra a afonia de Dora⁷ (Freud, 1905/2006).
É em sua segunda acepção que podemos localizar as questões de gozo próprias à siringe. Trata-se então de um instrumento de música que Pan fabricou a partir do corpo metamorfoseado em caniços da Náiade Syrinx, que queria assim escapar das atenções do deus.
Mais de uma vez, ela havia driblado a perseguição de sátiros e de toda sorte de deuses. Como ela voltava das alturas do Liceu, Pan a viu [...]. A ninfa, desdenhosa das preces de Pan, (foi) até o ponto em que ela chega ao Ládon [...] Ali, as ondas parando sua corrida, ela havia rezado às ninfas das águas, suas irmãs, de metamorfoseá-la [...] Pan, que se já se acreditava mestre de Syrinx, que ele acabava de apreender, no lugar do corpo da ninfa (não apanhava mais) do que caniços palustres [...] Enquanto ele exalava seus remorsos, os caniços [...] haviam emitido um suspiro ténue, de todo semelhante a uma queixa. O deus encantado pela novidade desta arte e pela doçura de seus acentos: É assim que meu encontro com você se perpetuará
. E é assim que, graças aos caniços desiguais, reunidos entre eles e retidos pela cera, ele conservou o nome da jovem. (Ovide, 1966a, p. 61).
Esse instrumento surgido de um chamado e depois de uma perda de gozo é em seguida associado às personagens das sereias, das quais Ovídio conta-nos igualmente a metamorfose. De fato, elas não possuíram sempre asas de pássaro (Ovide, 1966b). Num primeiro momento, elas haviam sido donzelas, acompanhantes de Perséfone. Quando esta foi levada por Hades, o deus dos Infernos, elas pediram aos deuses que lhes provessem de asas a fim de poderem procurá-la em todo lugar. O nascimento das sereias encontraria então sua origem em uma perda que vai acarretar um apelo. Antes de cantar, as sereias chamam, mesmo gritam, o seu desespero. Essa dimensão do grito permanece, aliás, impressa bem no coração de seu canto, já que, repetidas vezes, Homero (1998) o qualificará de phthoggos, que em grego antigo designa o canto e também o grito, até mesmo o som gutural inarticulado do Ciclope. A aproximação entre o canto das sereias e o grunhido do Ciclope não deixa de surpreender… Como podemos compreender isso? Uma das acepções do termo phthoggos⁸ orienta-se em direção ao som puro, não a doces harmonias nesse caso, mas a uma emissão contínua que o descontínuo da fala não viria ocultar. A voz da sereia colocaria em primeiro plano a dimensão sonora e não significante do enunciado por meio de uma perturbação da articulação. As sereias dizem a Ulisses: Venha aqui! Venha a nós! Ulisses tão aclamado! A honra do Achaía!… Pare teu navio: venha ouvir nossas vozes! [...] Nós passamos e, logo, não ouvimos mais os gritos nem os cantos das Sereias
(Homero, 1998, p. 716-717, grifo nosso).
É interessante notar que o texto homérico associa aos cantos das sereias seus gritos. Reencontramos aqui a intuição lacaniana: no grito, a laringe se faz siringe, a escansão não mais se encontra nele.
Do grito ao apelo
É a interpretação que o ambiente maternante fará do grito que introduzirá a criança na linguagem e que permitirá passar da siringe produzindo o grito na laringe e autorizando o acesso à fala. Notaremos que algumas crianças parecem ativamente recusar essa passagem. Isso poderá ser o caso, por exemplo, de certas crianças autistas (Maleval, 2009).
Freud vê assim a construção do circuito da linguagem a partir do grito e de sua tomada em consideração pelo Outro:
A enervação verbal, na origem, éuma via de expulsão (éconduction) para ψ, agindo à maneira de um sopapo [...] uma parte desta via levando à modificação interna, que constitui a única expulsão antes que a ação específica seja encontrada. Esta via adquire uma função secundária, tornando atenta ao estado de desejo e de tensão da criança a pessoa que traz a ajuda (habitualmente o próprio objeto desejado), e ela serve desde então a se fazer compreender, ela é portanto incluída na ação específica. No início da operação do julgamento, quando as percepções suscitam interesse por causa de sua relação possível com o objeto desejado e que seus complexos (já descritos) se decompõem em uma parte inassimilável (a coisa) e uma parte que o eu conhece por sua própria experiência [...] Encontramos primeiramente objetos – percepções – que fazem gritar porque excitam a dor; torna-se de uma enorme importância que esta associação de um tom [...] e de uma percepção [...] faça ressaltar este objeto como hostil e sirva para orientar a atenção sobre (a) Pc. [...] a informação de seu próprio grito serve para caracterizar o objeto. (Freud, 1887-1904/2015, p. 670-671).
Um segundo tempo, do ouvir-se
, aparece com a colocação do Outro da pulsão, que responde ao grito. O infans é então confrontado com a resposta do Outro. A interpretação significante do grito oculta a dimensão real da voz para a qual o sujeito se tornará surdo para aceder ao estatuto de sujeito falante. Poderíamos dizer que, a partir desse momento, o sujeito em devir não se ouvirá mais: ele não mais o fará a não ser em certas situações particulares (voz gravada; voz alucinada, que é a modalidade psicopatológica do ouvir-se
) ou deverá para tanto passar pelo Outro para se ouvir.
Lacan, na ocasião do Seminário sobre A angústia, faz referência a essa inquietante estranheza ligada ao fato de ouvir-se e supõe mesmo uma diferença entre o ouvir-se
ligado ao canto e o ligado à fala. A propósito deste desconhecimento bem conhecido da voz gravada, seria interessante ver a distância que pode existir entre a experiência do cantor e a do orador
(Lacan, 1962-1963/2004, p. 319).
A intuição de Lacan de uma possível distância entre a experiência do cantor e a do orador quanto ao desconhecimento ligado à escuta de sua voz implica que o ouvir-se
próprio ao cantor e o que concerniria o parlêtre não seriam idênticos.
Ouvir-se vocalizar versus ouvir-se dizer
O ouvir-se do cantor visará diretamente à voz. Na prática do cantor, a fala será secundária, até mesmo perturbadora, já que ela vem ferir o ideal de continuidade vocal. É a siringe que é aqui solicitada e ativamente buscada. Por outro lado, o ouvir-se do parlêtre, e mais particularmente o do analisante, dirá respeito ao discurso, a voz sendo aqui relegada ao segundo plano, velada pela fala. A laringe com o papel de escansão que lhe é próprio ocupará então todo o lugar.
O ouvir-se é um dos problemas essenciais do cantor. Ele não se ouve do mesmo lugar de onde os outros o ouvem, e isso não se dá sem dificuldades: lhe é difícil verificar o som que é escutado pelo ouvinte. Contrariamente ao instrumentista, que ouve diretamente o som que produz, o cantor deve confiar em um outro ou em pequenos recursos⁹ para se ter uma ideia do que sai de sua boca. Ele não pode se ouvir senão que por meio de um outro. Esse outro poderia ser apenas tecnológico, e o aluno cantor ou o cantor formado não se privaria disso, mas essa escolha nunca é efetuada sozinha. Ao lado da gravação, que tem sempre uma certa dimensão anal¹⁰, existe sempre um Outro para o qual é destinada a produção vocal. Para dizer mais abruptamente: não cantamos a não ser por transferência. De fato, esse Outro não é apenas uma superfície de gravação, ele está ainda mais essencialmente posicionado como destinatário da voz, como suposto saber. Suposto saber-fazer-aí com esse objeto que é a voz. Suposto poder ouvi-la enquanto ela ainda não saiu
,¹¹ suposto permitir ao cantor ouvir-se por meio de sua escuta.
Aquele que permitirá ao cantor o acesso a essa possibilidade de se ouvir será por ele amado. É surpreendente ver os vínculos, que podem ir até a paixão, que ligam o aluno cantor – e por vezes o cantor profissional (Castarède, 1987)¹² – a seu mestre. Pessoalmente, eu conheci alunos cantores que se impunham sacrifícios importantes para consultar
um professor, às vezes distante várias centenas de quilômetros de seus domicílios, persuadidos de que só ele os poderia ouvir e conduzir a se fazer ouvir em grandes cenas. A noção de mestre cantor, com todos os sentidos que podem ser a ele ligados, é aqui bem-vinda. Com efeito, essa relação demasiadamente forte, até mesmo apaixonada, que pode ligar o aluno a seu professor de canto não é, por vezes, desprovida de uma dimensão de alienação: trata-se justamente de fazer cantar
o outro.
Se Marie‐France Castarède escolhe perceber na aula de canto essencialmente "uma tentativa (de) ressuscitar (esta primordial e inefável comunhão), posto que ela é uma situação substitutiva da relação pré‐linguageira do infans e da mãe" (Castarède, ¹⁹⁸⁷, p. ¹⁰³), eu não penso que a relação proposta pela situação de aprendizagem do canto possa se resolver apenas nessa visão um tanto idílica e pacificada de um delicioso eco do balbucio primordial.
Essa paixão frequentemente observada quando a voz é colocada em jogo é bem mais rara quando se trata de um instrumento. O fato de que a voz seja um objeto de gozo não é, sem dúvida, estranho a esse desencadeamento passional. O mestre cantor é então o sujeito suposto saber-fazer-aí com a voz. Ora, Lacan (1968-1969/2006) não deixou de apontar que a voz é objeto central no masoquismo e no sadismo. O masoquista viria completar o Outro com sua voz, no gemido ou no grito que lhe arranca seu parceiro. O sádico igualmente, mas de modo inverso, tentaria completar o Outro lhe impondo sua voz no insulto ou na ordem. Longe de querer obscurecer o quadro da relação pedagógica ligada ao canto, parece-nos importante assinalar o avesso inconsciente da aula de canto: o ouvir-se, ativamente buscado pelo cantor, não é sem risco, e a relação sadomasoquista nunca está muito afastada (Barbier, 2005)¹³.
Para terminar, proponho refletir sobre o que essa dinâmica do ouvir-se recobre quando ela se efetua no quadro da análise. Se o ouvir-se é um dos interesses do tratamento, ao que ele visa e quais são as condições que o tornam possível?
Lá onde a aula de canto visava à voz, a sessão visará, pelo relato, a uma reelaboração temporal que Lacan pôde observar a partir da ilustração do futuro anterior, permitindo reordenar no decorrer do tratamento as contingências passadas para lhes dar o sentido de necessidades futuras (Lacan, 1970/2001b). A tomada da fala na análise não visa a uma tomada na fala, mais sim a uma abertura temporal a partir dela.
Essa possibilidade de abertura em direção a um tempo a fazer – e não a um tempo já feito¹⁴ – ofertada ao analisante lhe permite ouvir-se de outra forma que reduzido a isso. Essa oferta nos parece possível a partir de um posicionamento ético adotado pelo analista: o sujeito escutado de certa maneira, suposto – e não sabido –, o conduziria a se descobrir, na surpresa, como podendo adquirir um saber inédito sobre a falta que o constitui a partir do que se ouve dele mesmo no que se diz.
Duas modalidades de relação do sujeito anulam para o analisante a possibilidade de se ouvir:
• De uma parte, a imposição de um saber ao sujeito, o que equivaleria a ocupar a posição do mestre¹⁵; e
• de outra, a suspeita de um saber que seria dissimulado pelo sujeito e que conviria lhe arrancar, o que corresponderia à postura do inquisidor (Lacan, 1953-1954/1975, p. 40)¹⁶.
A suposição do sujeito nos compromete então a navegar por uma via estreita na qual se deve evitar duas armadilhas: o Charybde da posição do mestre e o Scylla do inquisidor. Essas duas posições, mestre e inquisidor, se possuem como ponto em comum tornar impossível a possibilidade de se ouvir para o analisante, elas o fazem segundo duas modalidades muito diferentes.
O mestre sabe antecipadamente a verdade sobre o ser do sujeito e comunica esse saber o impondo, se preciso, por violência. Freud denunciou, em vários momentos de sua obra, esse erro. Assim, em seu relato sobre a análise do pequeno Hans, ele assinalou como o tratamento do menino desandou a partir do momento em que o pai de Hans obstina-se a não querer ouvir seu filho e se recusa a reencontrar nos dizeres do menino o que Freud já tinha teorizado. O pai faz perguntas demais e trabalha suas buscas em função de seus próprios desenhos em vez de deixar o pequeno se expressar. Por isso, a análise torna-se opaca e incerta. Hans segue seu próprio caminho e nada produz quando queremos atirá-lo longe deste
(Freud, 1909/1998, p. 56-57).
Se o mestre está justamente na suposição, não se trata daquela de um sujeito potencial que poderia, na situação do encontro analítico, ouvir-se; nem mesmo de um saber suposto, mas da suposição de um saber preexistente que convirá reencontrar no paciente com a finalidade de lhe impor. Aqui, não é questão de ouvir-se, mas apenas de ouvir a voz de seu mestre.
A outra posição, a do inquisidor, supõe não um saber que conviria fazer adquirir ao sujeito como supõe o mestre, mas um saber não sabido ou dissimulado que conviria arrancar do sujeito para que ele aceda enfim à verdade. O inquisidor, para o bem do sujeito, é preciso lembrar, suspeita que esse seja um dissimulador, ainda que seja seu corpo que ele defenda… Aqui, mais uma vez, o ouvir-se não é buscado, pois trata-se para o inquisidor de fazer ouvir o que lhe convém.
Ao colocar o acento sobre o ouvir-se e não sobre o saber, sobre o produtor e não sobre o produto, o psicanalista arranca-se das dimensões essencialmente imaginárias que caracterizam as posições do mestre e do inquisidor.
Essa suposição, de passar do saber ao sujeito, permite evitar as derivas possíveis observadas na aula de canto (alienação a um objeto de gozo) ou no tratamento (alienação a um saber).
A suposição permite um espanto sempre renascente, posto que ele oferece ao sujeito a confrontação a um enigma: o do desejo e sua causa. Essa reedição de um encontro não falho é uma das consequências da suposição. De fato, a suposição possibilita esse encontro, já que ela se situa menos do lado da esperança do que do inesperado. Inesperado que podemos definir como a existência de uma coisa significante que se revela como aquilo que se pode permanecer, irresistivelmente, quando não resta nada mais do que poderia ter sido esperado, como aquilo que é vetorizado por essa voz significante fora da fala que convida o sujeito a advir lá onde o silêncio da espera conduz o eu a dever responder de sua possibilidade de existência (Didier-Weill, 2010).
A essa possibilidade de se ouvir com e pelo Outro, possibilidade reiterada e contudo não monótona, Alain Didier-Weill (1976) nomeou de nota azul
. Nota azul que conjuga a produção de um efeito de revelação para o inconsciente sempre idêntica e que, no entanto, não imporia nenhuma das características da compulsão à repetição. Lá onde a compulsão à repetição impõe o seu retorno, vivido pesadamente, a possiblidade oferecida, no quadro da análise, de se ouvir permite ao sujeito fazer a experiência renovada de um encontro surpreendente no qual ele se descobre parlêtre e, igualmente, ouvindo-se, se reconhece ouvido, sem, entretanto, ficar preso à palavra.
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Considerações sobre o corpo em sua relação com a estrutura e os discursos¹⁷, ¹⁸, ¹⁹
Sidi Askofaré
RESUMO: A orientação lacaniana impõe pensar o corpo no centro da psicanálise como prática e discurso. O presente artigo aborda a contribuição de Lacan à questão do corpo sob três temáticas. A primeira evidencia as relações entre corpo e linguagem, até a noção de determinação linguageira do corpo. A segunda é relativa ao gozo, mais particularmente à pulsão como eco no corpo pelo fato de haver um dizer, culminando na ideia de sintoma como acontecimento do corpo
. A terceira relaciona-se à promoção do corpo como consistência imaginária
no nó borromeano. Aborda-se, por fim, o corpo a partir da perspectiva lacaniana mais afinada com a história e as variações culturais: a categoria de discurso, no laço social.
ABSTRACT: Considerations about the body in its relation with the structure and the discourses. The lacanian orientation places the body in the center of psychoanalysis both as practice and discourse. This article examines Lacan’s contribution to the body issue from three perspectives. The first one demonstrates the relations between body and language, leading to the notion of language determination of the body. The second is related to enjoyment (jouissance), particularly to the drive as an echo in the body considering the fact that there is a saying, which culminates in the idea of the symptom as body event
. The third refers to the body as imaginary consistency
in the Borromean knot. At last, it analyses the body from the lacanian perspective that is closely linked with history and cultural variations: the category of discourse, in social bond.
Quanto ao corpo na clínica e na teoria psicanalítica, direi que é possível sustentar ao menos duas proposições radicalmente opostas. A primeira consistiria em dizer que a psicanálise, enquanto prática e teoria do deciframento sob transferência dos sintomas neuróticos, não tem nada a dizer do corpo. Com efeito, é completamente concebível pensar, com Freud, que o corpo como tal se situa na fronteira ou até mesmo fora do campo da psicanálise. Assim, no prefácio à reedição de suas Pesquisas Psicanalíticas sobre o corpo, Christophe Dejours escreve:
Freud foi reticente frente a todas as tentativas de pensar o corpo em psicanálise, quer se tratasse da tentativa de Ferenczi, de Groddeck ou de Reich. Na metapsicologia da pulsão, ele afirma que o estudo da fonte pulsional não interessa à psicanálise, não é necessária à psicanálise e não pertence à psicanálise. Ela pertence, segundo Freud, à biologia. (Dejours, 2009, p. ¹⁵)²⁰.
A essa proposição, na qual vemos claramente até que ponto é fundada sobre a confusão entre corpo e organismo, podemos opor esta outra: quer a consideremos a partir do sintoma ou da angústia, do significante ou do objeto, do sexual ou do discurso, do sentido ou do gozo, a clínica psicanalítica é fundamentalmente uma clínica do corpo, uma clínica que dele parte para a ele retornar, uma prática cujos operadores específicos não saberiam se dar sem o corpo. É evidente que é a partir dessa segunda proposição que orientarei este trabalho – necessariamente incompleto e lacunar, tendo em vista a amplidão do tema.
Creio que os senhores concordarão prontamente comigo que falar do corpo da clínica e da teoria psicanalíticas supõe necessariamente retornar a Freud. Devo dizer que essa não foi minha primeira ideia e que, estando resoluto quanto a isso, não me parece ser nem uma concessão à ligação dos senhores à obra de Freud, nem um rito ao qual me senti obrigado a prestar sacrifício. Com efeito, convocar Freud a propósito dessa questão pareceu-me não apenas necessário como indispensável. Por quê?
Porque, diria em uma primeira abordagem, as condições da descoberta freudiana e da invenção da psicanálise, ou seja, a clínica da histeria, foram desde o início colocadas na linha de frente do corpo, o corpo enquanto lugar do sintoma para simplificar. Com, por assim dizer, ao menos duas consequências maiores:
• o ensino das paralisias histéricas: essas testemunham a existência de uma outra anatomia
, diferente da ensinada pela biologia e pela qual a medicina se orienta. Podemos dizer que temos já aí o princípio e o fundamento da oposição organismo × corpo;
• a hipótese da conversão, ou seja, da transformação do afeto em enervação corporal como mecanismo de formação dos sintomas histéricos.
Se acrescentarmos aí o conceito de pulsão que Freud forja em 1905, o de narcisismo que ele introduz em 1914 e o lugar que ele reservará à hipocondria na clínica nas psicoses, não é exagero dizer que Freud foi conduzido a colocar no coração da clínica e da teoria analítica o corpo e a relação com o corpo.
Simplesmente, desde que o interroguemos, nos damos conta de que se trata justamente de um corpo que coloca em questão nossa concepção ingênua do corpo e que inaugura assim a ideia e o conceito de um corpo irredutível ao organismo.
É provavelmente e paradoxalmente com a introdução do conceito de pulsão, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria sexual, que a questão do corpo embaralha-se em Freud. E há aí, de fato, um paradoxo, porque, à primeira vista, teríamos a tendência a pensar que o conceito de pulsão é o operador teórico que enraíza a psicanálise no corpo e, por aí também, estaria a origem do que alguns denominaram o desvio biologizante
(Laplanche, 1993)²¹ de Freud.
Ora, o que se passa?
A introdução do conceito de pulsão trouxe, no mínimo, duas consequências:
• a primeira foi a validação do que deve ser chamado de o dualismo
freudiano, a posição e a oposição do somático e do psíquico. Recordamo-nos de ser dessa oposição – quase ontológica – que a pulsão ela mesma se define como conceito-limite;
• a segunda consequência refere-se ao que evoquei em minha introdução – citando Christophe Dejours –, a saber que Freud excluiu do campo da investigação psicanalítica o que, da pulsão, destaca do corpo tal como ele o compreendia, a saber, sua fonte... orgânica.
Percebemos então, parece-me, a dificuldade que pode representar para Freud o fato de dever pensar o corpo na psicanálise.
Todo mundo se recorda, suponho, da tese enunciada por Freud em sua Traumdeutung, tese pela qual, de um único e mesmo movimento, ele rompeu com a filosofia: O inconsciente é o psíquico propriamente dito e sua realidade essencial
(Freud, 1900/1967, p. ⁵²⁰).²²
Ora, nós sabemos que, para Freud, o inconsciente é feito de pensamentos (Gedanken) – aliás, uma das razões pelas quais Lacan se referirá ao Penso...
de Descartes – e de pulsões, por consequência, o inconsciente só conhece as representações, ou mais exatamente, os representantes da representação (Vorstellungsrepräsentanzen).
Compreendemos assim por que Freud foi conduzido a estabelecer por todos os meios uma ponte entre as duas ordens que havia previamente separado. Não será, no entanto, essa via fundadora que explorarei neste trabalho. Pularei para articular a contribuição lacaniana à problemática do corpo em sua relação com a estrutura (da linguagem) e com a do discurso.
Partamos disso: a orientação lacaniana em psicanálise impõe não apenas pensar o corpo, mas colocá-lo no coração, no centro mesmo da psicanálise como prática e discurso.
Essa posição só pode se sustentar, contudo, com a condição de considerar que a psicanálise promoveu uma concepção não trivial do corpo, que lhe é tão essencial quanto a teoria do significante.
Decomporei, de bom grado, essa contribuição específica trazida pela psicanálise, pelo ensino de Lacan, à questão do corpo em três temáticas ao mesmo tempo distintas e articuladas, amarradas realmente.
A primeira refere-se à colocação em evidência das relações do corpo e da linguagem, até mesmo da determinação linguageira do corpo. Isso que, nas elaborações de Lacan, conduz, por um lado, à distinção do organismo e do corpo e; por outro, ao estatuto do corpo como lugar e até como leito do Outro
.
A segunda é relativa ao gozo e, mais particularmente, à pulsão como eco no corpo pelo fato de haver um dizer
, mesmo até ao sintoma como acontecimento de corpo
.
A terceira, enfim, relaciona-se à promoção do corpo como consistência imaginária
no nó borromeano. Isso que Lacan enfatiza, desde então, não é simplesmente que o corpo seja imaginário – é o estatuto que se deduz do estádio do espelho –, é que o imaginário é o corpo
.
Três pontos de vista, portanto três perspectivas que desvelam e insistem alternativamente sobre os estatutos simbólico, real e imaginário do corpo. Para hoje, acrescentaria simplesmente isso: todas essas elaborações são relativas, por assim dizer, ao corpo na medida em que ele participa da estrutura e, muito precisamente, da estrutura do falasser,²³ considerando que ele não se reduz ao sujeito do significante.
Sem dúvida que o aporte e o ganho tanto clínico quanto epistêmico dessas elaborações estão longe de serem pequenas ou negligenciáveis. No entanto nenhuma delas diz alguma coisa de decisivo sobre o corpo na modernidade ou na pós-modernidade, do corpo histerizado²⁴, quer dizer, preso entre estrutura e história.
Daí me veio a ideia, muito tempo depois o título, de interrogar o corpo a partir da perspectiva lacaniana mais afinada com a história e as variações culturais
: a categoria de discurso.
Tratei acima de uma concepção não trivial do corpo em Lacan. Ao evocá-la, não pensava nem no corpo do