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O objeto em psicanálise: da análise profana à construção do objeto a, 1926-1963
O objeto em psicanálise: da análise profana à construção do objeto a, 1926-1963
O objeto em psicanálise: da análise profana à construção do objeto a, 1926-1963
E-book600 páginas11 horas

O objeto em psicanálise: da análise profana à construção do objeto a, 1926-1963

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Sobre este e-book

Em 1926, Freud publica o livro A questão da análise profana, que inaugura seu combate para separar a psicanálise da medicina. Freud travou esse combate no interior da instituição que ele havia fundado: uma nova categoria de psicanalistas, não-médicos denominados profanos, havia aparecido no final da Primeira Guerra Mundial e a maioria dos membros da instituição internacional fundada por Freud se opunha ao acesso dos profanos à prática da psicanálise e à qualidade de membros das instituições psicanalíticas.

Em 1952, um conflito se inicia no interior da Société psychanalytique de Paris (SPP), então a única instituição psicanalítica existente na França. O que está em jogo nesse conflito se situa na sequência do combate travado por Freud na última parte de sua vida: a separação da psicanálise e da medicina. Os defensores da psicanálise profana, dentre os quais se encontrava Jacques Lacan, saem da SPP em 1953 para fundar a Société française de psychanalyse (SFP). Então, um novo combate se inicia dentro da SFP para obter a separação da psicanálise e da psicologia, processo de separação que durou dez anos, até 1963.

O livro conta a história desse duplo combate, o primeiro travado por Freud, o segundo por Jacques Lacan. Uma vez a dupla separação efetuada, a psicanálise se desvela como sendo o que ela foi desde o início: uma retomada da questão colocada por Descartes em seu livro Meditações metafísicas. O que produz a junção entre o corpo e a mente? Freud respondeu a essa questão descobrindo o mecanismo da histeria e construindo o conceito de pulsão. Lacan respondeu por sua vez construindo o objeto a como um amboceptor assegurando o laço entre o corpo e a linguagem.

Capa: Guido Viaro, Adão e Eva no Paraíso, 1960 (detalhe). Museu Guido Viaro, Curitiba.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de set. de 2018
ISBN9788547315856
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    Pré-visualização do livro

    O objeto em psicanálise - Maria de Souza

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 do autor

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES

    Para minha mãe, Maria José de Nóbrega.

    Você tem razão, disse Ulrich a Ágata, o que importam no final das contas os acontecimentos enquanto tais! O que conta, é o sistema de representação através do qual nós os observamos, e o sistema pessoal no qual os inserimos.

    Robert Musil, O homem sem qualidades, vol. 2, capítulo 1.

    APRESENTAÇÃO

    O meu livro se inicia em 1926, quando Freud publica A questão da análise profana para defender a prática do psicanalista Theodor Reik. Para além desse motivo circunstancial, Freud inicia com esse livro a última grande batalha de sua vida: a separação da psicanálise e da medicina. Essa batalha guardou o nome que lhe foi dado por Freud: a Laienanalyse, ou seja, a defesa da psicanálise profana, praticada por não-médicos. Freud perdeu essa batalha dentro da instituição que ele havia fundado, mas ele ganhou em um teatro mais vasto, assegurando a perenidade e a independência de sua descoberta e impedindo que a psicanálise se sedimentasse em um tratado de psiquiatria, no capítulo terapêutico, «ao lado de procedimentos tais como a sugestão hipnótica, a autossugestão, a persuasão».

    Em 1952, esse conflito se reproduziu na Société psychanalytique de Paris (SPP), quando Sacha Nacht iniciou os preparativos em vista da criação de um instituto de formação de psicanalistas: ele queria reservar aos médicos a inscrição nesse instituto e obter um reconhecimento do diploma pela Faculdade de medicina. Alguns membros da SPP se opuseram a esse desígnio e se denominaram, em função dessa oposição, liberais. Jacques Lacan, que fazia parte do grupo dos liberais, citou em epígrafe de seu projeto alternativo de estatutos do futuro instituto uma passagem do livro de Freud A questão da análise profana.

    Depois que os liberais saíram da SPP e fundaram uma nova instituição, a Société française de psychanalyse (SFP), Lacan continuou o debate com sua antiga instituição, debate esse relatado nos capítulos 3 e 4 do meu livro. Mas a partida dos liberais e a fundação da nova instituição foram efetuadas em torno de um mal-entendido. Daniel Lagache, que era um psicólogo renomado, pensava defender a Laienanalyse de Freud separando a psicanálise da medicina para integrá-la na psicologia. Assim, a SFP se torna rapidamente um novo campo de batalha visando, dessa vez, à separação da psicanálise e da psicologia. Os dois momentos importantes dessa batalha são relatados nos capítulos 5 e 6 do meu livro.

    Na ocasião do congresso da SFP de 1958, Daniel Lagache propôs a fundação de uma nova ciência que era uma renovação da psicologia incluindo a psicanálise. Lacan, por seu lado, respondeu a esse desígnio por meio de seu texto «Observação sobre o relatório de Daniel Lagache». O segundo «momento de combate» foi o colóquio de Bonneval de 1960. Ninguém nunca ousou tocar no nome de Unbewusst, que Freud escolheu para designar sua descoberta, mas o que está em jogo no colóquio de Bonneval consiste em dar ao inconsciente freudiano uma definição positiva, que não seja o avesso da consciência. Essa tentativa de positivação – necessária para efetivar a separação com a psicologia – está consignada no texto de Lacan intitulado «Posição do inconsciente».

    Os dois debates visando à delimitação da psicanálise como um campo próprio do saber fizeram avançar a teoria psicanalítica em um curto período de trinta e sete anos (1926-1963). Quando Freud escreveu A questão da análise profana em 1926, a profissão de psicólogo ainda não existia. Os certificados de psicopatologia foram criados por Daniel Lagache em 1937, quando ele era professor assistente na Faculdade de psicologia da Universidade de Strasbourg. Portanto, os «psicanalistas profanos», assim denominados por Freud em seu livro de 1926, são os hoje denominados «psicanalistas nem... nem...», nem médicos, nem psicólogos.

    Os dois últimos capítulos do meu livro tratam de questões que se colocam depois da separação teórica da psicanálise com a medicina e com a psicologia. Uma vez a separação efetivada, se desvela o que a psicanálise sempre foi desde o início, desde 1893, quando Freud publicou em francês seu estudo comparativo das paralisias orgânicas e histéricas. A paralisia histérica, declara Freud nesse texto, é uma paralisia de representação, uma representação especial cuja característica precisa ainda ser descoberta. Assim, a psicanálise se revela como uma retomada da questão isolada em 1641 por René Descartes em suas Meditações metafísicas: o que poderia assegurar a junção entre a substância extensão e a substância pensamento, ou entre o corpo e a mente? Em seu texto intitulado L’homme, Descartes buscava essa junção na glândula pineal, que desempenharia o papel de amboceptor fazendo mover todos os membros do corpo.

    Em 1915, Freud retoma a questão definindo a pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático, como o representante psíquico das excitações provindas do interior do corpo e chegando ao psiquismo como uma medida da exigência de trabalho que é imposta ao psíquico em consequência de sua ligação com o corpo.

    Em 1963, Lacan retoma a questão da junção entre a substância extensão e a substância pensamento concebendo-a como uma parte de nossa carne que é tomada na máquina formal e dá seu valor aos sistemas de pensamento. A esse pedaço carnal arrancado a nós mesmos e que desempenha o papel de amboceptor entre o corpo e a linguagem para formar um sistema de pensamento, Lacan dá o nome de objeto a.

    Sumário

    1

    A ANÁLISE PROFANA (1926-1938)

    Descoberta e desmantelamento do fantasma

    O que é um psicanalista?

    A resposta burocrática

    2

    O NASCIMENTO DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO

    NA FRANÇA (1926-1953)

    A mensagem freudiana na França

    A primeira cisão, 1952-1953

    Situação da psicanálise em 1956

    3

    O PRIMEIRO DEBATE ENTRE AS INSTITUIÇÕES:

    «VARIANTES DA CURA-PADRÃO» (1955)

    O que é a psicanálise?

    A via do psicanalista

    A resistência

    A defesa

    A análise de caráter

    Primeira definição do desejo

    O analista deve saber ignorar aquilo que ele sabe

    4

    O SEGUNDO DEBATE ENTRE AS INSTITUIÇÕES:

    «A DIREÇÃO DA CURA E OS PRINCÍPIOS DE SEU PODER» (1958)

    A direção da cura

    Pensar de forma estratégica

    Tática, estratégia, política

    Tática da interpretação

    Estratégias da transferência

    A política do analista: preservar o lugar do desejo

    Por que o sujeito histérico precisa de um desejo insatisfeito?

    Por que o sujeito obsessivo precisa de um desejo anulado?

    5

    O PRIMEIRO DEBATE INSTITUCIONAL: «OBSERVAÇÃO SOBRE

    O RELATÓRIO DE DANIEL LAGACHE» (1958-1960)

    O relatório de Daniel Lagache e a observação de Jacques Lacan

    O isso freudiano: estrutura ou lugar?

    O mecanismo de desprendimento do eu segundo Daniel Lagache

    A Bejahung como criação do mundo

    Imagem real, imagem virtual

    A função de desconhecimento do eu segundo Jacques Lacan

    A identificação simbólica do Ideal do eu

    O sujeito neurótico manobra o Outro

    A nova heteronomia do ser

    6

    O SEGUNDO DEBATE INSTITUCIONAL: O COLÓQUIO DE

    BONNEVAL SOBRE O INCONSCIENTE (1960)

    Da natureza do inconsciente freudiano

    Dupla inscrição ou energia de investimento

    Necessidade, pulsão, desejo

    A metáfora paterna

    Linguagem banal e linguagem primária

    Efeito de sentido e raciocínio proporcional

    Sair da psicologia

    A causação do sujeito

    A metáfora, a reunião, a alienação

    A metonímia, a interseção, a separação

    Da natureza do conceito freudiano de libido

    7

    AS TRÊS IDENTIFICAÇÕES (1960-1962)

    As três identificações

    A primeira identificação

    A morte de Deus e o amor ao próximo

    A segunda identificação

    A marca do nome próprio

    A primeira tópica freudiana

    Signo, significante, significado

    Tornar não acontecido

    A terceira identificação

    A conjunção do desejo e da lei

    8

    O ROCHEDO DA CASTRAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO OBJETO a (1962-1963)

    O rochedo da castração

    O objeto oral

    O objeto anal

    O objeto fálico

    O objeto olhar

    O objeto voz

    A constituição circular do objeto

    NOTAS

    BIBLIOGRAFIA

    ÍNDICE DOS CONCEITOS PRINCIPAIS

    ÍNDICE DOS NOMES PRÓPRIOS

    1

    A ANÁLISE PROFANA (1926-1938)

    Em um texto apresentado em 3 de setembro de 1927 no décimo congresso de Psicanálise em Innsbruck, Sándor Ferenczi aborda o «problema do final da análise» pelo viés da mentira, que ele considera como equivalente ao fantasma: aquilo que «do ponto de vista moral» nós chamamos mentira, «em termos de patologia nós denominamos fantasma»¹.

    Descoberta e desmantelamento do fantasma

    Nesse texto, Ferenczi fala do fantasma em termos de «descoberta» decisiva para o desenlace da cura, nenhuma análise podendo ser considerada como terminada se a mentira do mundo fantasmático não tiver sido desnudada: «Eu adquiri a convicção que nenhum caso de histeria pode ser considerado como resolvido enquanto uma reconstrução, repousando sobre uma estrita separação da realidade e do fantasma, não tiver sido realizada». Se na histeria a simulação aparece no primeiro plano, a estrutura do fantasma como mentira vale para todas as neuroses: «Nós poderíamos generalizar e dizer que o neurótico não pode ser considerado como curado se ele não renunciou a extrair prazer de sua atividade fantasmática inconsciente, ou seja, de suas mentiras inconscientes». Ferenczi denomina «análise de caráter» esse trabalho analítico que, situado mais além da decifração do sintoma, visa ao desmantelamento do fantasma, na medida em que o caráter é aquilo que resulta do processo de domesticação das pulsões: «aquilo que decoramos com os nomes de ideal, ideal do eu e supereu deve sua origem à repressão deliberada de moções pulsionais». Nesse processo, uma conexão se estabelece entre a mentira e a moral: «as duas fases, aquela da amoralidade e aquela da moralidade posteriormente adquirida, são separadas por um período mais ou menos longo de transição, no curso do qual qualquer renúncia de ordem pulsional e qualquer aceitação de desprazer são claramente associadas a um sentimento de não verdade, ou seja, de hipocrisia»².

    Assim, o caráter do paciente é o produto desse «automatismo protetor que é o recalque das pulsões» e Ferenczi concebe o desenrolar da análise como indo contra a corrente: o processo de formação do caráter deve ser percorrido até seus fundamentos pulsionais e «nenhuma análise de sintomas pode ser considerada como terminada se ela não for além do mais uma análise completa de caráter». Ferenczi situa entre sintoma e caráter a fronteira entre psicanálise aplicada à terapêutica e psicanálise pura: «muitos sintomas podem ser curados pela análise sem que se produzam tais mudanças radicais», ou seja, a construção de uma «nova personalidade mais adaptada», que adveio depois do «caos temporário» que se seguiu à dissolução da estrutura cristalina do antigo caráter. Graças a essa dissolução, a corrente pulsional se torna novamente fluída, permitindo uma recristalização de uma estrutura nova mais apropriada. Ferenczi caracteriza em quatro pontos aqueles sujeitos cujo processo analítico teria sido conduzido até esse termo: uma disjunção mais clara entre o mundo do fantasma e o mundo da realidade, uma liberdade interior quase sem limites, uma segurança na ação e na decisão, um controle mais econômico e mais eficaz.

    Na sequência de seu texto, Ferenczi descreve esse processo analítico escandindo-o em três tempos para cada uma das duas neuroses, sobre o fundamento do texto de Freud de 1914, «Rememoração, repetição e perlaboração». Durante os dois primeiros tempos da análise, «todo o material psíquico inconsciente deve ser revivido sob a forma de lembranças e repetições». Quando Ferenczi escreve seu texto, em 1927, a importância do terceiro tempo isolado por Freud «não foi ainda corretamente apreciada». Assim, diz ele, é preciso articular a perlaboração com a relação de forças existindo entre o recalcado e a resistência, ou seja, com um fator puramente quantitativo. Os dois primeiros tempos isolados por Freud – rememoração e repetição – correspondem a uma análise qualitativa: a descoberta dos motivos patogênicos e das condições que determinam o aparecimento do sintoma pode ser realizada quase completamente sem produzir a mudança terapêutica esperada. Mas às vezes a perlaboração opera: a repetição vivida analiticamente dos mesmos mecanismos de transferência e de resistência, que talvez já se produziu inúmeras vezes, conduz a um progresso importante. Aqui se produz quase invariavelmente, nas análises realmente terminadas e antes que elas se terminem, uma transformação dos sintomas.

    O sintoma é o resultado de um processo complexo que Ferenczi, seguindo Freud, escande em três tempos: as emoções do paciente obsessivo se transformam pouco a pouco em comportamento obsessivo e, em seguida, em pensamento obsessivo. As emoções se encontram também no ponto de partida para o sujeito histérico, que luta durante muito tempo com ideias dolorosas, antes de conseguir transformar seus conflitos em sintomas físicos. Nós podemos representar a concepção de Ferenczi em dois quadros representando, respectivamente, os três tempos do sintoma e os três tempos da análise.

    Os três tempos do sintoma

    Indo contra a corrente desse processo da formação dos sintomas, o trabalho analítico desenlaça e mina esse edifício: o sujeito obsessivo começa a produzir os sintomas da histeria e o sujeito histérico, que sofria de conversões, começa a produzir ideias e lembranças no lugar dos movimentos físicos por meio dos quais ele se exprimia anteriormente. «Assim, é um sinal favorável se o neurótico obsessivo começa a manifestar emoções histéricas no lugar de ideias sem afeto e se o histérico produz temporariamente ideias obsessivas».

    Os três tempos da análise

    A análise é um processo que pode ser conduzido a uma conclusão natural e o número de casos inteiramente analisados aumentará «quando nós tivermos suficientemente aprendido com nossas errâncias e nossos erros». Segundo Ferenczi, o final de uma análise acontece quando ela morre, por assim dizer, de esgotamento. Um paciente realmente curado se libera da análise lentamente, mas seguramente. Enquanto ele desejar continuar sua análise, deveria poder fazê-lo, até se convencer «que ele só continua sua análise porque encontra nela uma fonte nova de gratificação, mas sempre de natureza fantasmática»: quando superou o sentimento de luto que se segue a essa descoberta, ele procura «outras fontes de gratificação mais reais». Não é necessário, acrescenta Ferenczi, conduzir as análises iniciadas por razões terapêuticas até o grau de profundidade que ele descreveu aqui. Mas o analista, «do qual depende o destino de tantas pessoas, deve saber e poder controlar as fraquezas as mais escondidas de seu próprio caráter, o que é impossível sem uma análise inteiramente terminada»³.

    O texto de Ferenczi foi apresentado em um contexto de crise da instituição psicanalítica internacional. Desde que Freud havia saído de seu «esplêndido isolamento» e que alunos tinham se reunido em volta dele, aquilo que foi denominado o «movimento analítico» havia conhecido duas crises. A crise Jung, em 1912, se referia à natureza da descoberta de Freud, ou seja, a realidade sexual do inconsciente. Jung havia «cedido à necessidade de liberar a sociedade do jugo da sexualidade», segundo a expressão de Freud: ele declarou que «o sexual não significa de forma alguma a sexualidade, mas outra coisa, algo abstrato, místico». A crise Rank, em 1923, se referia ao dispositivo – que se chamava na época «a técnica» – inventado por Freud para acolher o inconsciente. A terceira crise, que se encontra em seu apogeu durante o congresso de 1927 quando Ferenczi apresenta seu texto sobre o final da análise, concerne ao recrutamento de analistas, a causa do conflito tendo sido o aparecimento de uma categoria de psicanalistas denominados «profanos», ou seja, não-médicos.

    Dois analistas não-médicos praticaram a psicanálise antes da Primeira Guerra Mundial, segundo Ernest Jones: Hermine von Hug-Hellmuth, doutora em Filologia que praticava em Viena e o pastor Oscar Pfister, em Zurique. No final da guerra, os profanos se multiplicaram na Sociedade de Budapest criada por Ferenczi: Melanie Klein, Vilma Kovács, Alice Balint, Géza Róheim. Em Viena, no final da guerra, outros psicanalistas profanos vieram se acrescentar a Alfred von Winterstein, que havia começado a praticar a psicanálise em 1914: Otto Rank, Siegfried Bernfeld, August Aichhorn, Ernst Kris, Theodor Reik, Anna Freud. Em Londres, também, profanos começam a praticar a psicanálise no final da Primeira Guerra Mundial: Barbara Low, Joan Rivière, Ella Sharpe, James e Alix Strachey. Em 1919, Siegfried Bernfeld propõe a criação de uma «Sociedade laica de psicanálise», que seria afiliada à Sociedade psicanalítica de Viena. Freud apoiou esse projeto – que não se realizou – com uma doação do fundo von Freund destinado ao Verlag. No início dos anos 1920, não-médicos que se encontravam dentre os Americanos que vieram se analisar com Freud em Viena se instalaram como psicanalistas quando retornaram à América. Assim se inicia um conflito opondo Americanos (a Sociedade psicanalítica de Nova Iorque principalmente) a Europeus (principalmente Freud e Ferenczi) concernindo à «análise profana», ou seja, ao acesso de não-médicos à prática da psicanálise e à qualidade de membros de instituições psicanalíticas⁴.

    O que é um psicanalista?

    Em um artigo publicado em um jornal de Nova Iorque em 1925, Abraham Brill tomava posição contra a psicanálise praticada por não-médicos e anunciava à Sociedade psicanalítica de Nova Iorque sua intenção de romper com Freud se os Vienenses não mudassem suas posições tolerantes com relação aos profanos. A Ferenczi, que lhe comunica essa notícia em novembro de 1925, Freud responde: «A ameaça de Brill não me conduzirá a mudar minha posição concernindo à psicanálise profana». Durante o congresso de Hamburgo, que aconteceu de 2 a 5 de setembro de 1925, Max Eitingon apresenta uma moção visando homogeneizar a formação dos analistas. Trata-se, primeiramente, de extrair a formação às iniciativas individuais, pois institutos de formação já existem em Berlin e em Viena, um terceiro está se constituindo em Budapest. É preciso diferenciar a análise didática da análise terapêutica, acrescenta ele, ao mesmo tempo em que propõe a criação de comissões locais encarregadas de avaliar «as possibilidades dos candidatos», de designar «os analistas instrutores (didáticos)» e os «analistas supervisores (controladores)». Eitingon sublinha uma diferença na prática, recentemente introduzida, da supervisão: em Berlim «o instrutor» não é a mesma pessoa que o «supervisor», enquanto que em Viena pensa-se que o instrutor do candidato é mais apto, conhecendo-o melhor, a se tornar seu supervisor. Eitingon toma partido pelo grupo berlinense, pois o sistema forneceria ao futuro praticante uma dupla referência e uma caução maior. Na «escola húngara», inventada por Ferenczi e por Vilma Kovács, é o analista formador que supervisiona o primeiro caso clínico do candidato. Eitingon demanda, enfim, a Sándor Radó de propor a criação de uma comissão «encarregada de estandardizar nas diversas sociedades e na medida do possível, os métodos e o nível do ensino da psicanálise».

    Em dezembro de 1925, na sequência da morte prematura de Abraham, Eitingon se tornou presidente da Associação psicanalítica internacional, cargo que ele acumula com a presidência da comissão internacional de ensino e da Sociedade psicanalítica alemã, com a direção do Verlag e da policlínica de Berlim. Por fidelidade a Freud, Eitingon propõe que a comissão tenha o direito de impor em todos os lugares os mesmos regulamentos de admissão, o que suscita a oposição de Ernest Jones e dos Americanos. No debate que divide a comunidade psicanalítica, Eitingon pendia pela exigência da formação médica, mas por fidelidade ele age «em conformidade com os desejos de Freud»⁵.

    Na primavera de 1926, um paciente de Theodor Reik, membro da Sociedade psicanalítica de Viena, entrou com um processo contra ele por exercício ilegal da medicina. A ação judiciária – que foi arquivada depois do inquérito – forneceu a Freud a ocasião de redigir, na pressa, em junho-julho de 1926, seu livro intitulado Die Frage der Laienanalyse, A questão da análise profana. Nesse texto, construído sob a forma de um diálogo, Freud inventa um interlocutor, um funcionário de alto escalão, «um homem com disposições amáveis e de uma integridade pouco comum», a quem ele expõe brilhantemente o que é a psicanálise, quem são as pessoas que ela «trata» e o que ela produz. O processo Reik é só um pretexto: Freud aproveita a ocasião para dizer ao mundo e a uma parte de seus alunos – aqueles que se opunham ao aparecimento dos profanos – que a legitimidade da psicanálise não pode depender de outro campo do saber. Aquele que se submeteu ao ensino da psicanálise, escreve Freud, «que foi ele mesmo analisado, que apreendeu da psicologia do inconsciente o que pode atualmente ser ensinado, que está a par da ciência da vida sexual e que adquiriu a técnica delicada da psicanálise, arte da interpretação, luta contra as resistências e manejo da transferência, esse não é mais um profano no campo da psicanálise».

    Freud faz a seu interlocutor imparcial a seguinte pergunta: a prática da psicanálise seria ela um objeto que devesse ser submetido à intervenção dos poderes públicos, ou seria mais indicado abandoná-la ao seu desenvolvimento natural? Em sua resposta ele prega o laissez-faire: «A psicanálise é algo tão novo no mundo, o grande público sabe tão pouco sobre ela, a posição da ciência oficial com relação a ela é ainda tão hesitante, que me parece prematuro intervir já agora em seu desenvolvimento por meio de prescrições legais. Deixemos os doentes descobrir eles mesmos que lhes é nocivo procurar uma ajuda psicológica junto a pessoas que não aprenderam como dispensá-la. Esclarecemo-los e advertimo-los e nós teremos assim economizado as proibições».

    O texto de Freud em defesa da Laienanalyse, da análise profana, comporta uma estratégia que é um desafio epistemológico – a delimitação da teoria psicanalítica como um campo próprio do saber – e uma tática que é um desafio localizado, ou seja, a declaração de independência da psicanálise com relação à medicina. Freud trava essa batalha em nome dos interesses da ciência, pois ele estima que «não é de forma alguma desejável que a psicanálise seja abordada pela medicina e encontre sua sedimentação em um tratado de psiquiatria, no capítulo terapêutico, ao lado de procedimentos tais como a sugestão hipnótica, a autossugestão, a persuasão». Freud pensa que a psicanálise merece um destino melhor e que ela pode se tornar – enquanto teoria do inconsciente – indispensável a todas as ciências que se ocupam «da gênese da civilização humana e de suas grandes instituições, tais como a arte, a religião e a ordem social». Freud pensa que a utilização da psicanálise no tratamento das neuroses é uma aplicação da psicanálise: «seria insensato sacrificar todas as outras aplicações a uma delas, unicamente porque esse domínio de aplicação recorta o campo dos interesses médicos». Assim, para levar em conta os interesses científicos da psicanálise, Freud cria o conceito de analistas didáticos, os Lebranalytiker, que deverão «receber uma formação particularmente cuidadosa». Os Lebranalytiker são os representantes das diversas ciências do espírito que devem «aprender a psicanálise para aplicar seus métodos e seus pontos de vista ao seu material». No projeto para o futuro que Freud desenha aqui, os representantes das diversas ciências do espírito farão uma análise que ampliará «sua capacidade de realização» e se tornarão, em seguida, analistas didáticos⁶.

    O livro de Freud chega às livrarias em setembro de 1926, Max Eitingon e Ernest Jones lançam um apelo a contribuições sobre a questão da análise profana, para preparar o debate do próximo congresso, que acontecerá em Innsbruck em setembro de 1927: vinte e oito textos foram publicados no International Journal e na revista Zeitschrift, dentre os quais um posfácio escrito por Freud e um texto escrito por Eitingon, o presidente da International Psychoanalytical Association (IPA), para concluir o debate. Freud enviou o posfácio a Eitingon, que o mostrou a Jones na ocasião do encontro deles em Haia no verão de 1927 e «nós decidimos», testemunha Jones, «que seria mais sábio, na ocasião da impressão, deixar três frases de lado, o que nós fizemos». A supressão de parte do texto de Freud visava evitar que os Americanos pudessem «se servir dessa desculpa» – a defesa da análise profana por Freud – «para fazer secessão». Freud escreveu o posfácio depois de ter lido as vinte e seis contribuições publicadas nos órgãos oficiais da IPA e ele se pergunta se sua defesa da Laienanalyse, da análise profana, serviu para alguma coisa:

    «Aquele que, nessa revista, confrontará a declaração da Sociedade húngara com aquela do grupo de Nova Iorque suporá talvez que meu livro não serviu para nada, que cada um mantém o ponto de vista que ele já defendia anteriormente. Mas nisso eu também não acredito. Eu penso que muitos colegas terão moderado seu ponto de vista extremo, que a maioria terá adotado minha concepção segundo a qual o problema da análise profana não pode ser resolvido segundo os costumes tradicionais, mas resulta de uma situação inédita e exige, portanto, um julgamento novo». E ele lembra sua tese defendida no livro A questão da análise profana: «não se trata de saber se o analista possui um diploma de médico, mas se ele adquiriu a formação particular da qual ele necessita para a prática da análise». Freud se mantinha isolado das vicissitudes do mundo exterior, ele tinha um longo hábito da solidão e a coragem epistemológica que o conduz a traçar o programa de ensino para o analista, incluindo como matérias «tanto as ciências do espírito, a psicologia, a história da civilização, a sociologia, quanto a anatomia, a biologia e a história da evolução». Os membros da IPA que se opunham à Laienanalyse e aos analistas profanos responderam a Freud que tais escolas superiores de psicanálise não existiam e que ele colocava assim uma exigência ideal: «Sim, responde ele, um ideal, mas um ideal que podemos realizar e que é preciso realizar. Nossos institutos de ensino já são, apesar de sua insuficiência juvenil, o início de tal realização»⁷.

    Ferenczi havia embarcado para os Estados-Unidos em setembro de 1926, para uma estadia de um ano: ele dá conferências, mantém uma prática analítica, forma psicanalistas não-médicos e os incita a se organizarem. Em uma carta a Freud datada de 10 de outubro de 1926, ele anuncia uma prática analítica de oito horas por dia: «Paralelamente, eu tenho todas as terças-feiras à noite uma conferência, todas as quartas-feiras um seminário com o grupo dos analistas profanos». Já em sua primeira conferência na Universidade, Ferenczi se declara «abertamente a favor da análise profana» e anuncia sua posição a Freud: «Eu falei muito detalhadamente de vosso último livro». Esse apoio muito insistente ao ponto de vista de Freud provoca tensões com os representantes oficiais da psicanálise americana, que produzem um vácuo em torno de Ferenczi. Em suas cartas a Freud, Ferenczi cita os nomes dos chefes ausentes em seus seminários. «Eu acho odioso o comportamento do grupo com relação a você», lhe responde Freud em 2 de janeiro de 1927. Ferenczi está de volta à Europa em junho de 1927, quando todos os espíritos estão tomados pela questão da análise profana, que será discutida no congresso de Innsbruck em setembro.

    A resposta burocrática

    Em sua carta de 30 de junho de 1927, Ferenczi faz um relato a Freud de sua discussão com Jones, que aconteceu «em sua casa de campo em Elstead»: «Concernindo à análise profana (o objeto principal de nossa discussão), ele afirma já ter encontrado a via régia do meio termo entre os extremos (o Senhor e Brill); eu também não consegui obter dele concessões, além de suas proposições já publicadas no Journal. Parece-me que é por intermédio de Eitingon que isso poderia ser obtido. Nessa questão eu me identifico demais (como diz Jones) com o Senhor, Professor». Em sua resposta, Freud incita Ferenczi a falar com Eitingon antes do congresso, «concernindo Jones e a América», bem como a se apresentar à eleição para a presidência da IPA, pois «Eitingon não quer ser presidente e eu não quero absolutamente que Jones o seja». Ferenczi foi a Berlim com essa finalidade, pois «a proposição recebida de Eitingon concernindo à análise profana me colocou fora de mim». Eitingon havia, com efeito, adotado a posição inglesa: reservar a formação analítica aos médicos, salvo algumas exceções. Em seu encontro com Eitingon – do qual participaram também Franz Alexander, Sándor Radó, Ernst Simmel e Karen Horney – Ferenczi tenta atenuar sua proposição, mas acaba por aceitar, «com o coração pesado», que «os analistas sejam obrigados a comunicar os nomes dos candidatos estrangeiros a um grupo de formação do país em questão». Esse princípio, introduzido em 1927, obriga aquele que quer se tornar analista a obter uma autorização para iniciar uma análise.

    Ferenczi tentou introduzir uma atenuação no princípio da autorização preliminar (em caso de desacordo entre o analista e o «estrangeiro», o país estrangeiro não deve julgar ele mesmo, mas remeter o caso a um comitê de formação internacional) ao mesmo tempo em que ele renunciava à presidência da IPA, decisão que ele anuncia a Freud em 13 de julho de 1927: «Eu vi uma diferença tão monstruosa entre vossa opinião (vossa e minha) por um lado e as proposições de Eitingon por outro lado, que eu me senti incapaz de aceitar, inclusive de lutar pela presidência que implica a aprovação de tal programa (e, além do mais, um conselho absolutamente hostil à análise profana sobre os braços)». Freud dirige seu interesse para outras coisas, ele nem mais lê cuidadosamente as resoluções da IPA: «Eu me engajei plenamente, obtive pouco e não posso fazer mais nada». Mas ele lamenta que Ferenczi faça da vitória na questão da análise profana uma condição para aceitar a presidência, pois «na prática as coisas serão diferentes do que nas prescrições e em um posto de direção você poderia exercer uma grande influência para o nosso lado». Ferenczi foi o único a apoiar a posição de Freud nesse grande debate sobre a Laienanalyse que mobilizou seu interesse e suas emoções na segunda parte de sua vida⁸.

    O problema colocado por Freud comporta um desafio político, ele quer extrair a psicanálise da influência do poder e, nesse sentido, ele obteve um sucesso com A questão da análise profana: ele manteve, durante oito décadas, o Estado distante de qualquer tentativa de legislar sobre o inconsciente. O debate comporta um segundo desafio, que é epistêmico: a psicanálise não pode aceitar uma legitimidade delegada por outra disciplina, ela deve constituir seu próprio corpo de referência. Nesse sentido, Freud confere ao debate com a medicina um alcance somente conjuntural, como ele explica em sua carta a Oscar Pfister: «Eu não sei se você apreendeu o laço secreto que existe entre a Análise profana e a Ilusão (O futuro de uma ilusão, 1927). Em um [livro], eu quero proteger a análise contra os médicos, no outro contra os padres». O terceiro desafio do debate é clínico: a formação do psicanalista deve ser fundada em um método próprio de transmissão, ou seja, na própria análise.

    No debate do final dos anos 1920, os Berlinenses foram os únicos capazes de situar esse desafio clínico, talvez porque eles dispusessem, com seu Instituto de formação, de um rudimento da Faculdade ideal de psicanálise esboçada por Freud. Assim, Franz Alexander declara que «a tarefa principal do movimento analítico consiste em construir um cursus bem concebido e sistemático»: «Nossa questão mais urgente não é exigir uma formação médica preliminar, mas conceber uma formação propriamente analítica eficaz». Para Carl Muller-Braunschweig, «a questão da análise pelos não-médicos deve ser considerada como parte de uma interrogação mais vasta: qual é a preparação da formação a mais desejada para os futuros analistas?» Karen Horney coloca também o acento sobre o desafio clínico: «O que constituiria os melhores estudos preliminares para a formação, não do analista em geral, mas do analista praticante?» Essa abordagem clínica feita pelos Berlinenses permanece uma exceção, a conclusão do debate dos anos vinte foi uma resposta à questão política colocada pela análise profana: as instituições psicanalíticas teriam os meios de influenciar as decisões do poder político do Estado? O reforço das instituições analíticas foi o caminho adotado para responder afirmativamente a essa pergunta⁹.

    A regulamentação da formação do analista, iniciada por Eitingon, foi continuada por Jones, que visa assegurar, no interior da IPA, o monopólio do exercício da psicanálise e da seleção dos candidatos: «O mendigo não escolhe», declara ele se referindo injustamente ao primeiro círculo de Freud, quando, se juntar ao solitário de Viena, era em si mesmo um ato de coragem. No congresso de Innsbruck, em setembro de 1927, a moção Eitingon, insistindo sobre a aquisição de uma formação médica pelos candidatos, foi aceita. Mas a moção sugerindo que o país de origem fosse notificado quando um candidato decidisse receber sua formação no exterior foi adiada: esta sendo a causa das fricções entre Viena e Nova Iorque, Jones propôs que, nesses casos, as comissões de ensino dos dois países entrassem em um acordo sobre as aptidões de cada candidato, proposição essa que foi seguida de uma discussão «movimentada». Finalmente, quando uma proposição apresentada por Radó – dando à comissão internacional de ensino a prerrogativa de estabelecer uma regulamentação obrigatória – foi adotada, «uma tempestade de protesto» se elevou da parte dos Americanos, dos Ingleses e dos Holandeses. A ruptura foi evitada pela criação de outra comissão encarregada de elaborar um projeto susceptível de obter a adesão de todas as sociedades.

    Depois do congresso de Innsbruck a posição de Freud se torna cada vez mais isolada: «O desenvolvimento interno da psicanálise, escreve ele a Ferenczi em 22 de abril de 1928, caminha em todos os lugares de encontro às minhas intenções, se distanciando da análise profana rumo a uma especialidade puramente médica, o que eu considero como nefasto para o futuro da análise. Na verdade, eu só confio em você, ou seja, que você partilha sem reserva o meu ponto de vista». Em março de 1929 Freud propõe, em uma carta a Eitingon, que o tema da formação seja excluído da agenda do congresso de Oxford «para que nós possamos organizar, enquanto esperamos o seguinte, uma separação amigável com os Americanos». Freud autoriza Eitingon e Ferenczi a proporem a separação na ocasião da reunião do comitê em Paris em abril de 1929, mas no curso da reunião – da qual participava também Anna Freud – Jones e Van Ophuijsen se opuseram à separação. Eles se opuseram também à outra proposição «da qual se tinham feito advogados os outros três membros do comitê»: que os regulamentos concernindo à admissão dos candidatos fossem obrigatoriamente os mesmos para todos os países.

    No congresso de Oxford em julho de 1929, a ruptura foi evitada pela criação de uma nova comissão, «composta de onze membros escolhidos no mundo inteiro» e colocada sob a presidência de Jones. Essa comissão apresentou seu relatório em 1932, no congresso de Wiesbaden, acolhido com «aplausos e aceito por unanimidade»: os critérios da seleção dos candidatos, inclusive dos não-médicos, deveria permanecer o privilégio de cada sociedade individualmente. Jones havia outorgado a si mesmo a missão de «salvar a integridade da Associação internacional», o que ele obteve com sua fórmula de compromisso: «Os membros da comissão exprimem unanimemente a opinião que seria necessário, antes de aceitar um candidato estrangeiro que deseje continuar sua formação, obter a aprovação da comissão de ensino de seu país. O acordo só pode reinar se houver conformidade com essa regra formal». O compromisso de Jones significou a vitória dos Americanos e ele testemunha que «essa conclusão foi naturalmente uma grande decepção para Freud»¹⁰.

    Com o advento do nazismo em 1933, Eitingon parte de Berlim para a Palestina, seguido de numerosos outros «pássaros migradores», segundo a expressão de Jacques Lacan: depois de uma parada na França, os pioneiros da psicanálise chegam massivamente aos Estados Unidos. No congresso de Lucerna, em 1934, Eitingon obtém a admissão da sociedade palestina na IPA e a aprovação de uma moção visando proteger os analistas expulsos de sua pátria por motivos políticos: segundo a moção Eitingon, o executivo central da IPA poderia conceder a eles a filiação direta e individual. Na época, esse era o caso somente dos membros da Sociedade alemã e sua filiação direta foi considerada pela APA (Associação psicanalítica americana), recentemente criada, «como uma ingerência estrangeira». Em 1938, no congresso de Paris, a APA, da qual as sociedades americanas faziam parte, colocou três condições para consentir em se filiar à Associação internacional: – que a comissão internacional de ensino, patrocinada pela IPA e «que intervinha nos negócios internos americanos», fosse dissolvida «como uma instituição supérflua», – que o título de «membro sem vínculos» fosse retirado aos analistas se instalando na América, – que a Associação internacional só se reunisse com objetivos científicos e fosse privada de qualquer função administrativa. Esse ultimatum não foi colocado em execução, pois a guerra tornou-o supérfluo: as Associações psicanalíticas de Viena, de Budapest e de Berlim desaparecem e no pós-guerra os Americanos se tornaram majoritários, preenchendo sozinhos «algumas treze páginas in-quarto sobre duas colunas» do anuário, segundo a expressão de Jacques Lacan.

    Freud havia obtido, com sua defesa da Laienanalyse, que o Estado se mantivesse distante de qualquer tentativa de legislar sobre o inconsciente e a prerrogativa de dizer quem é psicanalista se tornou uma questão de política interna das sociedades analíticas. Elas criaram organismos de ensino, de formação e de controle, introduzindo procedimentos rigorosos de seleção. Elas instituíram também uma hierarquia: o primeiro degrau da escala é ocupado pelo analista iniciante submetido a controle e no alto – no «céu das Beatitudes» – se encontram os analistas didáticos¹¹.

    2

    O NASCIMENTO DO MOVIMENTO PSICANALÍTICO

    NA FRANÇA (1926-1953)

    «Durante mais de um decênio depois de minha separação com Breuer, escreve Freud em 1925, eu não tive partidários. Eu estava totalmente isolado. Em Viena me evitavam, no exterior não se interessavam por mim. A interpretação dos sonhos, publicada em 1900, quase não foi mencionada nas revistas especializadas». No final do século XX, pesquisadores tentaram provar que o ostracismo do qual Freud se queixa não tinha fundamento, um estudo recenseou onze revistas que publicaram resenhas sobre A interpretação dos sonhos nos dois anos que se seguiram sua publicação: «por volta do final de 1901, os meios médicos, psiquiátricos, psicológicos, bem como o público cultivado do mundo inteiro estava a par da publicação do livro», escreve um historiador francês. Mas os ecos desse conhecimento não chegavam até Freud e ele não pôde renunciar à ideia que, em um primeiro tempo, o livro só foi recebido pelo silêncio. Em 1901, Freud publicou O sonho e sua interpretação, um resumo da obra, que contribuiu para propagar sua descoberta junto a um público mais vasto¹.

    A mensagem freudiana na França

    A publicação da Traumdeutung foi anunciada na França já em 1900 pela revista Année psychologique e Henri Bergson foi a primeiro a citar Freud concernindo aos sonhos, em uma conferência feita no Institut général psychologique em 26 de março de 1901. Théodore Flournoy publicou, em 1903, a primeira resenha da Interpretação dos sonhos em francês, na revista Archives de psychologie da Suíça romana, via pela qual a descoberta freudiana faz sua entrada no meio culto francês. O leitor francês não tinha acesso ao texto da Traumdeutung e a doutrina freudiana penetra na França pela via dos comentários escritos pelos Suíços (Théodore Flournoy, Alphonse Maeder, Carl Gustav Jung). Adolf Schmiergeld, médico de origem polonesa que fez seus estudos na França, foi o primeiro a escrever sobre a psicanálise a partir de uma conferência que ele pronunciou com P. Provotelle em 4 de julho de 1907 na Société de neurologie. Germanistas, os dois autores têm um avanço de vinte anos sobre os primeiros psicanalistas franceses.

    Durante o primeiro decênio que se seguiu à publicação da Traumdeutung, Bergson estudou a obra de Freud e comentou-a em uma lição no Collège de France em 1910-1911. O segundo decênio de existência da Traumdeutung se abre na França com a publicação, em 1911, do livro le Sommeil et le rêve de Nicolas Vaschide, que torna acessível ao leitor francês uma parte de obra de Freud. Em 1913, o Dr. Angelo Hesnard pronuncia duas conferências diante do corpo médico de Bordeaux, sob o título: «A teoria sexual das psiconeuroses de Freud». No mês de agosto desse ano, se produz o confronto público entre Freud e Janet durante o XVIIº congresso internacional de medicina em Londres, o descobridor do inconsciente sendo representado por Jones e Jung².

    A exposição mais completa da teoria psicanalítica antes da Primeira Guerra Mundial foi feita na França pelos professores Ernest Régis e Angelo Hesnard. Em 1912, este último se desculpou junto a Freud pelo desdenho no qual a psicanálise havia sido mantida até então na França e, em 1914, os dois psiquiatras publicaram la Psychanalyse des névroses et des psychoses, ses applications médicales et extra-médicales, considerada como a primeira obra publicada na França sobre a psicanálise. O livro – escrito por dois psiquiatras que não praticam a psicanálise – não é desprovido de ambiguidade: «apesar de suas exagerações, de seus excessos, de suas maneiras místicas e mesmo de suas estranhezas, essa doutrina está longe de ser sem grandeza», escrevem eles na introdução de sua obra. A crítica a uma teoria é um sinal de seu vigor, sublinhava Freud em 1909 em uma carta a Ferenczi, que lhe havia falado da tendência, «ainda mais propagada na América, país de negócios, a redescobrir vossas teorias e a modificá-las». As «modificações», responde Freud, «não têm importância, elas são tentativas de se apropriar as coisas no duplo sentido que nossa língua exprime com tanta perspicácia; a prioridade não tem nenhuma importância, as coisas se desenvolveram tão bem à luz do dia que as camuflagens não conseguem manter-se durante muito tempo».

    O trabalho de Régis e Hesnard – a primeira obra a expor a doutrina psicanalítica – não deixa de ter mérito: a tarefa era imensa, pois nenhuma obra de Freud está ainda traduzida em francês. Nesse sentido, 1920 marca a entrada na idade histórica da psicanálise com a publicação do primeiro texto de Freud em francês – Cinq leçons sur la psychanalyse – traduzido sob a instigação do Suíço Édouard Claparède e publicado em três números sucessivos da Revue de Genève (1920-1921). Em 1921 as Cinco lições são publicadas pelo editor Payot, edição ainda disponível hoje. Sete outras obras de Freud são traduzidas em francês entre 1922 e 1926, traduções essas que suscitam, nos anos seguintes, numerosas publicações de artigos em diferentes revistas: pouco originais, os artigos comentam ou criticam os trabalhos de Freud, que se tornaram acessíveis em francês³.

    A prática analítica começa na França em 1921, com a chegada em Paris da Polonesa Eugénie Sokolnicka. Depois do fracasso de sua tentativa de fundar uma sociedade analítica em Varsóvia, Eugénie, que estava em análise com Ferenczi em Budapeste depois de ter feito uma primeira análise com Freud, decide se instalar em Paris. Em uma carta a Freud datada de 6 de janeiro de 1921, Ferenczi elogia a inteligência de Eugénie Sokolnicka, bem como seu trabalho na Associação psicanalítica húngara e anuncia sua mudança, «no final desse mês, para Paris». Ferenczi demanda à direção do Verlag de recomendá-la oficialmente junto ao tradutor da Interpretação dos sonhos e ao editor Payot e de publicar eventualmente no próximo número da Zeitschrift uma nota sobre sua mudança. Ferenczi propõe também que o Verlag escreva a Flournoy para «demandar que ele utilize em favor dela suas relações na França»⁴.

    Instalada em Paris, Eugénie Sokolnicka transmite a psicanálise a René Laforgue e Édouard Pichon e fracassa em sua tentativa de introduzi-la nos meios médicos oficiais. Em 1923, Laforgue escreve uma primeira carta a Freud anunciando sua própria prática analítica: de origem alsaciana e bilíngue, ele tem um acesso direto às obras de Freud, ele fez seus estudos de medicina em Berlim, Paris e Strasbourg e desempenha um papel importante no grupo analítico francês que está se constituindo. René Laforgue publica, em 1924, com seu antigo analisante e colega René Allendy, um livro sob o título la Psychanalyse et les névroses, fundado sobre sua experiência de médicos e psicanalistas: pela primeira vez é publicada na França uma obra de psicanálise que não é uma exposição teórica. Em 1924, o jovem Raymond de Saussure pronuncia uma conferência no hospital psiquiátrico Sainte-Anne em Paris sobre la Méthode psychanalytique, título de sua tese de doutorado publicada dois anos antes com um prefácio de Freud, que foi seu analista. Para introduzir a diferença entre a psiquiatria e a psicanálise, Raymond de Saussure recorre metaforicamente ao curso de seu pai, o linguista Ferdinand de Saussure: «O psiquiatra procura os sintomas de um doente como o gramático procura os substantivos ou os verbos de uma frase. O objetivo da psicanálise é aquele da sintaxe. Ela busca qual é o valor recíproco das tendências e das lembranças»⁵.

    Esse grupo – Allendy, Hesnard, Saussure, Laforgue e Pichon – decide publicar uma obra coletiva em 1926, sob o título le Rêve et la psychanalyse, no momento em que vai sair a tradução da Traumdeutung. A parte clínica da obra é escrita por Laforgue que introduz, com a colaboração de Édouard Pichon, a distinção entre repressão e recalque, bem como os termos de «escotomização» e «schizonoïa» para sustentar uma teoria da esquizofrenia. Em uma carta a Laforgue, datada de 18 de fevereiro de 1926, Freud critica essas inovações terminológicas

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