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Excesso e trauma em freud: algumas figuras
Excesso e trauma em freud: algumas figuras
Excesso e trauma em freud: algumas figuras
E-book339 páginas8 horas

Excesso e trauma em freud: algumas figuras

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Sobre este e-book

O traumático pode ser tratado teoricamente como transgressão pulsional, expressão de que se faz uso com base na "transgressão marinha", que designa o atravessamento, a invasão incontrolável das águas do mar nas fronteiras de um território. Em certas circunstâncias, em certos estados clínicos, pressupõe-se, quanto às esferas da dinâmica, da economia e da topologia psíquicas, que a força da pulsão vem justamente "passar além" dos limites do ego, transgredindo-os violentamente.

Esta coletânea reúne estudos em que as questões do excesso e do trauma são trabalhadas a partir de minuciosa análise de proposições freudianas sobre essa temática, constituindo uma espécie de eixo central. Os autores aqui presentes os elaboraram sob diferentes ângulos, a partir de enquadres diversos, tendo como plano de análise algumas de suas significativas figuras: as neuroses atuais, a hipocondria, a neurose obsessiva, a violência do superego e as experiências subjetivas da dor, do domínio e da crueldade.

Em cada capítulo é destacada uma parte dos percursos teórico-clínicos dos autores, na qual são acompanhadas, num passo a passo problematizado, as formulações de Freud sobre o que está mais fortemente em jogo em suas respectivas pesquisas. Procurou-se, desse modo, incrementar a compreensão de situações clínicas particulares ancoradas numa base traumática e de algumas problemáticas teóricas que se entrecruzam com as noções de trauma e de excesso em Psicanálise.

Este livro resulta de um trabalho de pesquisa realizado em equipe, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Seus artigos constituem material relevante na área da Psicanálise, com grande destaque no cenário atual do debate nessa área de estudos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2016
ISBN9788547303310
Excesso e trauma em freud: algumas figuras

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    Excesso e trauma em freud - Marta Rezende Cardoso

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição – Copyright© 2016 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI

    A Mená (in memoriam), minha tia querida,

    pelo amor e pela generosidade.

    A meus orientandos e estagiários,

    com quem muito tenho aprendido, por sua rica colaboração,

    pela troca e pela abertura à transmissão.

    [...] o trauma é uma ferida por invasão; sobrevém algo que excede as capacidades de elaboração, de integração psíquicas pelo ego. As fronteiras deste são ultrapassadas, pisoteadas, às vezes destruídas. Ele se defende com os meios de que dispõe, do recalque (neurose) ao despedaçamento (psicose), de acordo com a violência do impacto e sua aptidão a amortecer o choque. O trauma sinaliza uma subversão da economia psíquica.

    (Jacques André,Les 100 mots de la Psychanalyse, 2009)

    Apresentação

    O processo de pesquisa em Psicanálise tem como referência e ponto de partida essencial a obra de Freud, em que, de maneira indissociável, articula-se a teoria à clínica, condição mesma da originalidade e riqueza de seu método científico. Foi seguindo essa perspectiva que me propus a apresentar seis estudos sistemáticos realizados a partir de proposições freudianas acerca de determinados temas, conjunto de trabalhos em cuja confluência reside, subjacente e, ao mesmo tempo, explícita, a questão do excesso e do trauma, demandando elaboração. Essa questão constitui uma espécie de eixo central nos artigos desta coletânea e foi, portanto, trabalhada, sob diferentes ângulos, a partir de enquadre diverso, tendo como plano de análise algumas de suas significativas figuras.

    O material que ofereço ao leitor, abrindo-o ao debate, é parte do resultado de dissertações de mestrado e teses de doutorado, algumas daquelas que tive a oportunidade e o prazer de orientar no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em torno da pesquisa geral sob minha coordenação: Trauma, narcisismo e ato: além do mal-estar?. Embora nos referidos trabalhos tenha sido explorado um escopo de questões com abrangência mais ampla e contornos delimitados, em todos o foco desta coletânea foi vigorosamente contemplado, deixando, no entanto, aparecer sua diversidade, seus múltiplos modos de expressão.

    Nos capítulos que compõem este livro, foi destacada uma parte dos percursos teórico-clínicos dos autores, que acompanham, num passo a passo problematizado, as formulações de Freud sobre o que está mais fortemente em jogo em suas respectivas pesquisas. Sua trajetória foi motivada pelo desejo de incrementar a compreensão de situações clínicas particulares ancoradas numa base traumática e de algumas problemáticas teóricas que se entrecruzam com as noções de trauma, violência psíquica, sua genealogia e seus destinos na vida psíquica.

    É assim que, por meio desses artigos, o leitor poderá embrenhar-se no estudo dessas noções em Freud, no contexto psicopatológico das neuroses atuais, da hipocondria, da neurose obsessiva e, igualmente, pela via do conceito de superego, das experiências subjetivas da dor, do domínio e da crueldade. Foram essas as figuras clínicas e teóricas que elegi como motor desta reflexão conjunta focada no excesso e no trauma em Freud, espécie de elo na diversidade do material proposto.

    Com esta investigação, que, de certa maneira, transcende a especificidade de cada proposta singular, e com a rica colaboração dos autores que compartilharam a realização deste projeto, penso ter conseguido avançar com certa precisão e – ouso acrescentar – de forma inovadora a teorização sobre a questão central que norteia este livro, tendo como linha mestra a riqueza da obra de Freud. Tenho a expectativa de que a divulgação deste material provoque a enunciação de novas interrogações sobre as tortuosas trilhas da violência psíquica.

    O traumático pode ser tratado teoricamente como transgressão pulsional, expressão de que faço uso inspirando-me na transgressão marinha, que designa o atravessamento, a invasão incontrolável das águas do mar nas fronteiras de um território. Em certas circunstâncias, em certos estados clínicos, pressupõe-se, quanto às esferas da dinâmica, economia e topologia psíquicas, que a força pulsional vem justamente passar além dos limites do ego, transgredindo-os violentamente. Nessa transgressão vemos figurar-se uma ação traumática própria à dinâmica psíquica dessas configurações subjetivas, fronteiriças, excesso necessariamente correlativo a um estado de fragilidade narcísica.

    A singularidade da proposta de releitura de Freud que apresento, dirigida a temáticas específicas, pode ser vislumbrada em cada um dos artigos nos quais os autores fazem uma análise madura e crítica do texto freudiano. Isso, no sentido de fazê-las trabalhar, efetivamente, colocando em evidência os pontos de continuidade e de ruptura no decorrer dos diferentes tempos de sua construção. Esta se opera sob a regência de lógicas diversas, no interior de distintos modelos, num processo de permanente ressignificação, método que somos compelidos a seguir, na busca de reproduzir, mas também de reinventar, esse complexo movimento.

    Convido, então, à leitura dos artigos aqui reunidos, resultado de um trabalho conjunto e de grande dedicação à pesquisa por parte de todos aqueles que aceitaram participar deste projeto, a quem manifesto meu profundo agradecimento. O percurso que juntos realizamos ao longo de vários anos (com apoio do CNPq e da CAPES) vê-se agora renovado e mais uma vez vivificado nesta coletânea, percurso cujas contribuições, sempre provisórias e abertas ao aprofundamento e à discussão, passam a ser endereçadas a novos interlocutores.

    Agradeço também a Pedro Henrique Rondon, sempre presente com sua leitura atenta e primorosa revisão de texto.

    Marta Rezende Cardoso

    SUMÁRIO

    NEUROSES ATUAIS E EXCESSO PULSIONAL 

    Paulo Ritter

    A neurastenia como empobrecimento psíquico 

    A neurose de angústia como ausência de elaboração 

    A neurose de angústia destacada da neurastenia 

    A hipocondria como manifestação sintomática inespecífica 

    A hipocondria como terceira neurose atual 

    O fundo hipocondríaco de toda neurose 

    Há mais coisas nas neuroses atuais... 

    A etiologia e o psiquismo: duas linhas paralelas 

    Algo que falta como precariedade narcísica 

    Neurose traumática e excesso pulsional 

    A compulsão à repetição 

    A elaboração psíquica 

    Concluindo: as neuroses atuais, revisitadas 

    Referências 

    DA DOR PSÍQUICA À DOR FÍSICA: DESTINO DO EXCESSO PULSIONAL 

    Patrícia Paraboni

    A questão da dor nos primeiros escritos de Freud (1895-1900) 

    Período de incubação da questão da dor 

    O retorno da questão da dor (física e psíquica) na teoria freudiana (1914-1919) 

    O problema econômico da dor (1920) 

    O duplo aspecto econômico na dor física (1920) 

    Trauma, dor e compulsão à repetição 

    O apelo à dor física como domínio da excitação traumática 

    Descarga energética e apelo à dor física 

    Referências 

    A HIPOCONDRIA EM FREUD: EXCESSO, TRAUMA E ESPAÇO CORPORAL 

    Patrícia Paraboni

    1. As primeiras elaborações freudianas sobre a hipocondria (1890-1898) 

    Teoria da sedução: a primeira teoria do trauma (1892-1897) 

    Neuroses atuais e psiconeuroses 

    Hipocondria e histeria de conversão 

    Hipocondria na neurose obsessiva 

    2. Hipocondria: a terceira neurose atual 

    Hipocondria e paranoia 

    A presença da hipocondria na parafrenia 

    3. Segunda teoria do trauma: um novo olhar sobre a hipocondria 

    4. A segunda teoria da angústia: passividade e desamparo 

    Referências 

    O SUPEREGO NAS FRONTEIRAS DO EXCESSO PULSIONAL 

    Marta Rezende Cardoso

    A temática do ideal 

    A psicose como pano de fundo 

    A intrusão do demoníaco 

    Identificação e superinvestimento do objeto 

    O poder do outro 

    O duplo como inquietante estranheza 

    A pulsão de morte 

    Compulsão à repetição – Sonhos traumáticos 

    Masoquismo, necessidade de punição e sentimento de culpa 

    A segunda tópica 

    A hipermoralidade do superego 

    Compulsão a obedecer? 

    Perigo de castração ou perigo de perda do amor? 

    Violência das pulsões e força das interdições 

    Superego e transmissão: mensagens intraduzíveis

    Referências 

    VIOLÊNCIA E NEUROSE OBSESSIVA: SEU IMPACTO NA TEORIA DAS PULSÕES 

    Camila Peixoto Farias

    O surgimento da neurose obsessiva: a base traumática nos primeiros escritos 

    Os primeiros rastros da compulsão 

    Os cerimoniais compulsivos: avatares da culpa e do castigo 

    Regressão à organização sádico-anal 

    Defesas arcaicas e império da dúvida 

    A dívida impossível de saldar 

    A proibição do toque 

    Regressão do ato ao pensamento: um crime cometido 

    O núcleo violento: uma cena de espancamento 

    Pulsão de morte e superego cruel na neurose obsessiva 

    Referências 

    DOMÍNIO E CRUELDADE A PARTIR DE FREUD: MARCAS DO EXCESSO 

    Pedro Henrique de Oliveira Efken

    O domínio na obra de Freud 

    Um aparelho de dominação (Bemächtigungsapparat) 

    Pulsões parciais e organizações da libido 

    Do domínio puramente narcísico à dominação do objeto externo 

    Narcisismo: ego-prazer e indiferença 

    O domínio e a crueldade no segundo dualismo pulsional 

    Concluindo 

    Referências 

    SOBRE OS AUTORES 

    Neuroses atuais e excesso pulsional

    ¹

    Paulo Ritter

    O termo neurose atual (Aktualneurose) aparece pela primeira vez na obra freudiana em A sexualidade na etiologia das neuroses (FREUD, 1898/1986). Trata-se de um trabalho que pouco avança em relação ao que foi desenvolvido dois anos antes em A etiologia da histeria (FREUD, 1896b/1986), artigo em que Freud se detém, com detalhes, sobre o que supunha ser a causa da histeria – as experiências sexuais infantis. Foi entre a publicação desses dois textos que ele veio a endereçar a Fliess sua célebre Carta 69 (FREUD, 1897{1950 [1887-1902]/1986}), na qual afirma não acreditar mais na sua teoria das neuroses, na sua neurotica.

    O texto A sexualidade na etiologia das neuroses mostra duas preocupações centrais de Freud nesse momento, a partir da desilusão com a sua neurotica: o papel central da sexualidade no desencadeamento de todas as neuroses e a importância do diagnóstico diferencial entre as neuroses atuais e as psiconeuroses. É justamente em relação a esse último aspecto que ele faz a primeira referência às neuroses atuais:

    O valor da elaboração de um diagnóstico correto, separando as psiconeuroses da neurastenia, é também demonstrado pelo fato de que as psiconeuroses requerem uma avaliação prática diferente e medidas terapêuticas especiais. Elas [as psiconeuroses] aparecem em consequência de dois tipos de determinantes, seja independentemente, seja no rastro das ‘neuroses atuais’ (neurastenia e neurose de angústia). (FREUD, 1898/1986, p. 248-49).

    A importância de um diagnóstico correto se deve às medidas terapêuticas especiais que deveriam ser tomadas no caso das psiconeuroses. Para estas, a terapêutica indicada será o próprio tratamento psicanalítico, baseado na investigação da vida sexual infantil do paciente. Este modelo, conforme sustentado nesse momento, não seria indicado para as neuroses atuais, pois estas surgiriam sob a influência etiológica de uma perturbação sexual ‘atual’ [...], do momento presente (FREUD, 1898/1986, p. 249), sem correlação, portanto, com experiências ou fatos da vida passada.

    Essa primeira distinção nosográfica entre neuroses atuais (neurastenia e neurose de angústia) e psiconeuroses (histeria e obsessões) será de certa forma mantida até o final da obra, apesar de Freud vir a propor certa relativização do contraste entre os dois modelos, como veremos adiante. Para ele, havia a certeza incontestável de que em todo caso de neurose há uma etiologia sexual; mas na neurastenia [nas neuroses atuais] é uma etiologia de tipo contemporâneo, enquanto nas psiconeuroses os fatores são de natureza infantil (FREUD, 1898/1986, p. 240).

    A separação entre neuroses atuais e psiconeuroses de defesa é o primeiro grande contraste que toma forma quando Freud começa a delinear os quadros clínicos que darão origem à nosografia psicanalítica. De um lado, as neuroses atuais, cujos fatores etiológicos encontram-se nas práticas sexuais dos pacientes e são de seu conhecimento; de outro lado, as psiconeuroses cuja etiologia pertence a uma época da vida há muito passada, que é, por assim dizer, pré-histórica – a época da primeira infância (FREUD, 1898/1986, p. 240), sobre a qual os pacientes nada sabem.

    Outra contribuição freudiana dessa época é a subdivisão estabelecida das neuroses atuais em dois quadros distintos – neurastenia e neurose de angústia –, cada um deles com sintomatologia e etiologia específicas, apesar de, em geral, os dois aparecerem juntos. Os sintomas neurastênicos estariam, normalmente, relacionados à dimensão corporal – pressão intracraniana, propensão à fadiga, dispepsia, constipação, irritação espinhal etc. (FREUD, 1898/1986, p. 240) –, enquanto na neurose de angústia todos os sintomas apresentariam relação com o sintoma principal, a angústia – ansiedade, inquietação, expectativa angustiada, ataques de angústia, agorafobia, insônia etc.

    Do ponto de vista etiológico, Freud afirmava ainda nesse período que a neurastenia poderia ser causada pela masturbação excessiva ou por emissões frequentes, enquanto a neurose de angústia teria como causa a continência e a insatisfação sexual, decorrentes de práticas como coito interrompido, excitação sexual não consumada etc.

    Ainda que expressando constante preocupação em delimitar as neuroses, do ponto de vista tanto etiológico como sintomatológico, Freud salienta em várias passagens de A sexualidade na etiologia das neuroses (1898/1986) que elas podem aparecer sob formas mistas. Não só a neurastenia e a neurose de angústia tendem, muitas vezes, a aparecer juntas, como é muito frequente a ocorrência de quadros em que várias neuroses aparecem combinadas. Trata-se, por exemplo, de quadros em que uma neurose de angústia predomina, mas em que também há traços de neurastenia, histeria e neurose obsessiva.

    Vemos, portanto, o esforço de Freud para delimitar teoricamente as configurações clínicas com as quais se depara. No entanto, ele constata que estas se manifestam, na prática, de forma conjunta, revelando uma mistura, tanto de suas expressões sintomatológicas como de seus desencadeantes etiológicos. Foi nesse contexto que a expressão neurose do momento atual (aktuelle Neurose) veio a ser – antes mesmo do surgimento do termo neurose atual –, no seu intuito de pontuar, nesse momento, que a histeria [...] pode facilmente assumir a aparência de uma das neuroses do momento atual (FREUD, 1898/1986, p. 242).

    A neurastenia como empobrecimento psíquico

    Se o termo neurose atual surge na obra freudiana somente em 1898, quase no fim do século – quando Freud já se preparava para a grande empreitada subsequente com a publicação de A interpretação dos sonhos (1900), o quadro clínico da neurastenia já estava presente havia alguns anos, proveniente dos estudos do médico norte-americano George Miller Beard (1839-1883).

    De acordo com Cancina (2004), o termo neurastenia foi introduzido por Beard (1881) em seu livro La nerviosidad americana e tinha essencialmente o significado de falta de força nervosa, característica das pessoas com nervos muito vulneráveis:

    Beard estabelece que a neurastenia é uma doença nervosa funcional crônica, que se baseia em um empobrecimento da força nervosa, em uma ausência de reserva de força nervosa, o que conduz a uma debilitação rápida e, por conseguinte, a frequentes chamados para pôr novamente em jogo a força nervosa. Dali resultam uma ausência do poder inibidor físico e moral, uma debilitação e uma instabilidade da ação nervosa, uma sensibilidade e uma irritabilidade excessivas e a aparição de uma série de sintomas diretos e reflexos (Cancina, 2004, p. 27, grifos no original).

    Ao tentar explicar a etiologia da neurastenia, Beard se mostrava bastante especulativo. O corpo humano seria uma espécie de reservatório de forças constantemente em jogo e renováveis pelo sol, concepção segundo a qual o indivíduo neurastênico teria uma quantidade muito pequena de força nervosa em reserva, o que o tornaria facilmente debilitado pelas diferentes circunstâncias da vida moderna.

    Esse autor procedeu ainda a uma classificação clínica da neurastenia, subdividindo-a em neurastenia cerebral, espinhal, digestiva, traumática, histérica e hemineurastenia, todas causadas por debilitação. Havia ainda a neurastenia sexual, mas, ao contrário da concepção que Freud irá desenvolver, o que importava, segundo o autor, era o estado dos órgãos genitais, mais do que a qualidade da sexualidade (BERARD, 1881 apud Cancina, 2004, p. 33). Apesar de essa visão ser tão aderida ao registro biológico, é digno de nota que Beard tenha salientado antes de Freud que práticas sexuais nocivas, sobretudo a masturbação excessiva, estariam na origem da debilidade cerebral causadora da neurastenia. Para ele, esta seria a manifestação orgânica do esgotamento da energia sexual em função de uma atividade sexual anormal (Pereira, 1997, p. 61).

    Cancina aponta que o livro de Beard sobre a neurastenia sexual foi publicado em 1884, enquanto Freud começava a ligar a neurastenia a transtornos da vida sexual nos anos de 1892-1893 (Cancina, 2004, p. 31). De fato, os rascunhos iniciais de Freud e as cartas enviadas a Fliess que asseguram a causa sexual das neuroses atuais são todas dos anos 1890, posteriores, portanto, ao livro de Beard.

    A esse respeito, lembra Laplanche, a relação entre neurastenia e sexualidade foi bem observada pelos psiquiatras ou médicos que a estudaram antes de Freud (1980/1998, p. 18):

    As perversões sexuais [...], as diversas espécies de masturbações psíquicas podem ter uma ação etiológica. Mesmo no casamento, e quando existem relações normais, o coito interrompido é capaz de provocar o surgimento de fenômenos neurastênicos... (Preyer apud Laplanche, 1980/1998, p. 18).

    Podemos, assim, afirmar que Freud se utiliza da ideia, disseminada nos meios médicos de sua época, de que a neurastenia era a expressão de um esgotamento da energia sexual devido a práticas sexuais anormais. Esse ponto de vista interessou-lhe vivamente, pois indicava de maneira evidente a presença do fator sexual no desencadeamento das neuroses (LAPLANCHE, 1980/1998).

    No Rascunho G, escrito provavelmente em 1895 e que versa sobre a melancolia, Freud escreve que esta e a neurastenia apresentam empobrecimento muito semelhante, como se a excitação escapasse através de um buraco (FREUD, 1895b{1950 [1887-1902]/1986}, p. 290). Mas o que escapa, no caso da neurastenia, é a excitação sexual somática, enquanto na melancolia é algo da esfera psíquica. No entanto, adverte Freud, mais adiante nessa passagem, também o empobrecimento neurastênico pode estender-se à esfera psíquica.

    Chama nossa atenção, nos primeiros rascunhos e cartas da correspondência com Fliess dos anos 1892-93, a preocupação de Freud em evidenciar a relação direta entre sexualidade e neurose. Apesar de, nessa época, sua concepção de sexualidade ainda estar muito atrelada ao exercício, em si, da prática sexual, no texto publicado pouco depois, As neuropsicoses de defesa (1894a), já começa a despontar uma noção mais ampla do registro do sexual.

    Independentemente disso, nos rascunhos e cartas citados, as neuroses sobre as quais Freud mais se debruça são a neurastenia e a neurose de angústia; e é difícil compreender, a partir da leitura desses primeiros escritos, quais seriam exatamente as diferenças entre as duas neuroses, tanto do ponto de vista sintomático, como do ponto de vista etiológico. Mas podemos perceber desde esse momento inicial do percurso freudiano o início do traçado que conduzirá à constituição de uma nosografia psicanalítica.

    Assim, na primeira tese do Rascunho A, escrito provavelmente no final de 1892, Freud (1892 {1950 [1887-1902]/1986}) afirma que não existe nenhuma neurastenia ou neurose análoga sem distúrbio da função sexual, enquanto na sexta tese salienta que a neurose de angústia é, em parte, consequência da inibição da função sexual (p. 254), de distúrbio da função sexual e inibição da função sexual. Ainda que de forma sutil, já começa a ser estabelecida aqui uma primeira diferença entre as duas neuroses. A seguir, ele lista os fatores etiológicos próprios à neurose de angústia: esgotamento devido a formas anormais de satisfação; inibição da função sexual; afetos concomitantes a essas práticas; traumas sexuais anteriores ao início da idade da compreensão.

    Como é sabido, esse último fator – o trauma sexual – desempenhará papel determinante no modelo explicativo da etiologia das psiconeuroses, denominação que será criada logo depois desse momento. A inibição da função sexual, como ele próprio observou, teria como consequência a neurose de angústia, e podemos inferir, então, que o distúrbio que estaria na base da neurastenia é o esgotamento por satisfação anormal.

    Vale pontuar que Freud já começa a indicar aqui a dimensão do excesso como sendo o fundamento das neuroses atuais. Na neurastenia, como vimos acima, esta dimensão aparece articulada ao esgotamento por masturbação excessiva ou por emissões frequentes, aspecto que não permite que essas práticas sexuais sejam ligadas aos fatores psíquicos; na neurose de angústia, o excesso seria excesso de excitação sexual que, em função do coito interrompido ou da continência, também não chegaria a ser vinculado ao registro psíquico.

    Pensamos que a concepção que Freud nos apresenta nesse momento a respeito dessas duas neuroses traz uma ideia particularmente interessante a qual será retomada muito mais tarde, na obra freudiana, de forma distinta e ressignificada. Trata-se da noção de excesso, que nesse momento já aparece estreitamente articulada com a ideia de impossibilidade de tramitação psíquica. Além disso, o terceiro fator etiológico mencionado no Rascunho Aafetos concomitantes às práticas sexuais – parece ser um prenúncio de que as neuroses atuais teriam em sua base algo mais do que uma mera disfunção sexual, constatação que, como iremos mostrar adiante, Freud só aceitará anos mais tarde.

    No Rascunho B (1893), Freud continua afirmando que "toda neurastenia é sexual (1983 {1950 [1887-1902]/1986}, p. 256) e que apenas o esgotamento sexual pode provocá-la sem o auxílio de outros fatores desencadeantes. Isso significa supor que o fator sexual seria indispensável na eclosão desse quadro, enquanto os demais fatores, tais como doença física, afetos depressivos e excesso de trabalho seriam apenas elementos acessórios. Segundo Cancina, encontramos aqui um esboço do que mais adiante se configurará como ‘séries complementares’, já que ordena a etiologia do ponto de vista do dispensável e do indispensável, produzindo o que chama ‘fórmula etiológica’" (Cancina, 2004, p. 45).

    A neurose de angústia como ausência de elaboração

    Embora já tendo sido mencionada no Rascunho A, a denominação neurose de angústia é utilizada pela primeira vez no Rascunho B, no qual Freud a descreve com mais detalhes. A fórmula causal é a mesma que seria própria da neurastenia, mas é o coito interrompido que é pensado, neste texto, como fator principal que a desencadearia, e não a masturbação. O elemento que desejamos destacar nesse rascunho é a menção à presença de inúmeros sintomas corporais na neurose de angústia. Freud aponta que esta pode surgir como estado crônico e como ataque de angústia, e que isto é vivenciado, principalmente, por meio de alterações corporais. É nesse ponto que Freud cita a hipocondria, não ainda como terceira neurose atual, mas como angústia relacionada ao corpo. Acrescenta também nesse texto a existência de outras fobias que revelariam uma espécie de angústia em relação ao funcionamento corporal.

    Parece-nos que, nessa etapa inicial de seu percurso, a relação entre angústia e corpo ainda não é muito clara para Freud. Porém, seu esforço em delimitar os diversos sintomas corporais próprios aos quadros de neurose de angústia demonstra certa intuição quanto às estreitas relações entre angústia e corpo, relação que, como sabemos, assumirá essencial importância em momentos posteriores de sua obra.

    Dando

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