O penúltimo trem: A história do pai
De Tania Zagury
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O penúltimo trem - Tania Zagury
Sumário
O começo
Depois
A decisão
O amor triunfa
A fome
A situação se agrava
A decisão
A coleta
A decisão
Preparativos
Embarque
Viagem
Zilá
Superação
A primeira carta
A encomenda
A bondade surge
A moeda da sorte
O cigano
Chegada
Desembarque
Primeiros meses
Os que ficaram
Cidade grande, coração pequeno
A decisão
Êxodo
O início
A dura espera
Mudança
Enquanto isso
Varsóvia
Navegando
A longa espera
O mundo nem sempre é bonito
Juntos
Recomeço
O inesperado acontece
Adultos
Sobre a autora
Texto de orelha
Esta é uma obra de ficção baseada em fatos reais, em que memórias, lembranças e narrativas de família se misturam à imaginação da autora para a criação de personagens e acontecimentos romanceados.
Para Alfredo, com amor, admiração e saudade.
Para Roberto Luis, que chegou tarde para conhecer meu primeiro amor: seu avô – mas que muito quis saber e me inspirou.
agradecimentos
A meu pai, que embalou meu coração com seus relatos vívidos e emocionantes desde a minha infância; pelo humor sempre presente e pelo carinho inesquecível que me legou.
Ao meu marido, pela paciente, incansável e dedicada leitura dos originais; pelas observações pertinentes, tanto quanto pelas sugestões enriquecedoras.
À minha mãe, que com disposição e energia me revelou aspectos desconhecidos de sua infância e juventude.
A meu tio Izaac, que, com emoção contagiante, me relatou fatos e pormenores essenciais da vida no interior da Polônia, antes da Segunda Guerra.
capítulo 1
O começo
Perla acordou gelada aquele dia. Estranhamente, no entanto, olhando pela pequena janela do quarto que dividia com os irmãos, não sentiu o quanto estava frio. Não sentiu nada, aliás; apenas a mesma sensação que a perseguira e deixara toda a noite insone, revirando-se na cama e pressentindo que esse seria um dia diferente de todos.
Levantou-se; ainda estava escuro. Lá fora a neve, de alguns bons centímetros, a tudo encobria. A visão do solo intocado, com as árvores vestidas de puro branco, sempre a enternecia, talvez porque lhe lembrasse um quadro recém-pintado, perfeito e que, suspirou, logo estaria destruído: toda aquela beleza, trabalho sem dúvida de um talento maior, daria lugar à imagem turva e feia em que se transformava, quando a neve se derretia sob as passadas dos trabalhadores, a caminho da lida diária. Em poucos minutos, o cenário que amava estaria desfeito, bem como o prazer que a preenchia, ao olhar a rua após cada noite de nevasca.
A contragosto afastou-se da linda vista, voltando à realidade, não tão romântica, de suas obrigações. Com um suspiro, acendeu o fogo, e, a seguir, preparou a mesa para o café da manhã. Canecas, colheres e pratos fundos de latão – isso era tudo.
Bom me apressar, pensou. Àquela hora pai e mãe já haviam ido para o trabalho há muito. Saíam quando lá fora tudo ainda era breu.
Os irmãos acordavam com fome – sempre. Mexendo o velho caldeirão de ferro, fitou o mingau ralo, parco café da manhã. Era o que havia. Com certeza não daria para saciá-los, mas, bem aquecido, poderia enganar a fome por umas horas. Esquentou o pão dormido, umedecendo-o com um pouco de água, truque que aprendera e os fazia parecer fresquinhos. E esperou.
Os meninos chegaram à mesa em meio à costumeira agitação – brigas, brincadeiras, risadas, choros, queixas, tudo numa rápida, conhecida e extenuante sucessão. Mais tarde, já sossegados e entregues às brincadeiras infantis, ela pôde afinal liberar-se para ir ao centro, às rotineiras compras que se resumiam em buscar pechinchas e barganhar por menores preços no pequeno mercado do bairro.
Perla era encantadora, nos seus dezesseis anos. Cabelos castanhos espessos e brilhantes, com mechas alouradas esparsas, que iam quase até a cintura, e ela trançava em torno e ao alto da cabeça, formando uma espécie de coroa natural que lhe dava um ar aristocrático. Nariz fino e bem feito, lábios vermelhos cheios e definidos, olhos... Ah, os olhos! Verdes, penetrantes e, de certa forma, até atrevidos. O nariz arrebitado corroborava esse ar, levemente desafiador. O andar era inocente, mas desprendia feminilidade. Tinha, na verdade, um ritmo encantador que seduzia. Muitos rapazes já se haviam rendido a seus encantos – ainda que ela não tivesse a menor consciência do quanto era bela. Menos ainda, das emoções que despertava. Perla dava de ombros às investidas. Ninguém nem sequer lhe tocara, de leve, o coração.
Até aquele dia.
Era uma das tardes em que os jovens se reuniam nas pequenas salas anexas à sinagoga, nas quais se desenvolviam atividades culturais variadas. Acabava sendo uma espécie de clube, ponto de encontro de um grupo de jovens que valorizava a leitura e as artes. Havia um pequeno coral, que se apresentava nas festividades; outro, de dança folclórica, sempre presente nas reuniões da comunidade; havia também o grupo dos que se dedicavam ao estudo do livro sagrado. E, por fim, havia o de teatro, que encenava peças de autores clássicos judeus. Era o local ideal para interagir e conhecer outros jovens. Perla ficara exultante quando os pais deixaram que ela escolhesse uma das atividades: definira-se por representar – o teatro a fascinava. E não tomava muito tempo às tarefas da casa e o cuidado com os irmãos. Reuniam-se duas vezes por semana, ao anoitecer.
Naquele dia em especial, ela estava muito feliz: conseguira se desvencilhar cedo de suas obrigações domésticas e, assim, conseguiria chegar antes de o ensaio começar. Poderia, portanto, papear com as amigas, ouvir as últimas fofocas, trocar ideias, conversar, rir e brincar – coisas que os jovens fazem em qualquer parte do mundo, através dos séculos. Fazia semanas, ela não vinha podendo participar, mas a nova peça que pretendiam ensaiar a deixara curiosa. Queria muito conhecer a nova trama.
Aproveitou o raro fato de que tinha tempo disponível para aproveitar a caminhada e admirar um pouco mais a cidade que amava.
Era 1918. E Opole, a pitoresca cidade situada entre a Silésia e a Baixa Silésia, guardava hábitos quase medievais, como se ainda vivesse sob o poder dos príncipes poloneses. O Oder, rio de águas límpidas e tranquilas, atravessava o povoado e chegava à praça principal, a única, aliás, que se poderia chamar de praça. Daí, seguia costeando preguiçosamente as poucas ruas, até alcançar a catedral e o prédio da prefeitura.
A Catedral de Opole, na rua 2, belíssima construção gótica, ficava no coração da cidade. Construída no século XI, durante o reinado de Boleslau I, primeiro rei da Polônia, recebera, em 1024, a relíquia da Santa Cruz de Santo Emeryk – restos mortais de um príncipe húngaro. Seu nome completo, Catedral Basílica da Santa Cruz, há muito fora simplificado pelos moradores e agora era simplesmente a Catedral. Pertencia à Igreja Católica, e servia como igreja paroquial. Fora reconstruída várias vezes, sempre no mesmo local. Suas torres chegavam a incríveis 73 metros de altura, e eram a estrutura mais alta da cidade. Uma pintura da Virgem de Opole fora transportada para lá em 1702. Perla sempre achava incrível aquela construção majestosa.
A Catedral, juntamente com a igreja de São Adalberto de Praga e o imponente castelo medieval, eram as edificações que propiciavam orgulho a seus humildes moradores. As únicas dignas de nota, a bem da verdade.
A Torre de Piast – como ficara conhecida – era o primeiro ponto a ser avistado quando viajantes e mercadores chegavam à cidade. Do seu terraço panorâmico se podia ter uma maravilhosa vista da cidade e das margens do rio Oder. Poucos, porém, se atreviam a galgar suas imensas escadarias até o topo, dado que seus larguíssimos degraus, de tijolo vermelho aparente, eram de altura inusual – um grande desafio, tanto para jovens, quanto para os de idade mais avançada. Tudo, ou quase tudo mais na cidadezinha eram ruelas, com algumas poucas residências imponentes habitadas pelos melhor aquinhoados economicamente. No mais, somente casas singelas, algumas pouco mais que barracões.
Perla caminhava feliz, quase saltitante – adorava passear sem a pressa dos compromissos diários. Ia cantarolando a suave melodia que sempre lhe vinha à mente quando estava contente. Despreocupadamente, passava pelas ruelas, antecipando a alegria de rever seus jovens amigos. Sorria, antevendo a saudável balbúrdia que iria encontrar.
Perla não se enganara. O bate-papo estava no auge quando ela finalmente chegou; as pessoas conversavam animadamente; rapazes atiravam olhares e jogavam charme e piadinhas em direção às meninas; era assim que flertes e namoros se iniciavam na pequena cidade. Os mais afoitos atreviam-se a lançar gracejos corteses, ao que se seguiam risadinhas, entre tímidas e incentivadoras, por parte das moças. O ensaio era bom, mas o melhor mesmo eram esses momentos que o antecediam e quando tinham oportunidade de flertar, interagir e conhecer aqueles por quem o coração batia mais forte.
Aquela tarde a sala estava repleta – o que nem sempre ocorria. O grupo que ensaiava não era grande; alguns vinham com frequência, porque tinham mais horas livres; outros se alternavam, sumindo por semanas, já que boa parte deles trabalhava. Neste dia, porém, por alguma insuspeitada razão, todos haviam comparecido.
Assim, Perla entrou e buscou visualizar uma cadeira ainda vazia; mantinha-se concentrada, buscando um lugar, enquanto cantarolava baixinho, inocente e alheia, como sempre, à impressão que causava. Era uma das mais lindas da comunidade, embora essa sua característica nunca lhe parecera relevante. Sussurrava a letra e cantarolava a melodia baixinho, lábios e cabeça movendo-se suavemente, acionados pelo andar atraente, enquanto se dirigia à cadeira que visualizara. Seus cachos castanhos brilhavam à luz daquele fim de tarde, em que a luminosidade do sol ainda penetrava a sala, reverberando nos fios, que, impactados pelo movimento, faziam luzir a longa cabeleira, como dezenas de minúsculos candelabros dotados, cada um deles, de fascinante luz própria. Perla sentia-se feliz e despreocupada naquele momento, o que tornava seus olhos mais verdes, quase transparentes, lindos, em contraste com o sombreado dos espessos cílios castanho-escuros. Não era alta, mas tinha um caminhar soberbo. Não passava despercebida fosse onde fosse.
E foi exatamente naquele instante de inocente e despretensioso contentamento que Perla se sentiu observada. Era como se algo a chamasse, o que a despertou de seu devaneio, fazendo com que levantasse, curiosa, os olhos. Alguém a olhava insistentemente. Buscou verificar quem, incomodada. Quando encontrou seu olhar, Max a encarou. Tão demoradamente que constrangeria a qualquer um. Não Perla. Ela o fitou com curiosidade primeiro, e com surpresa, depois. Não conseguiu, porém, ou não quis, baixar os seus – como lhe ensinara a mãe. Não ficava bem uma moça solteira encarar um homem – ensinava a mãe. Perla, no entanto, jamais fora de seguir cegamente regras; mais ainda aquelas com as quais não concordava. Mas aquele momento – ah! – aquele momento foi diferente de tudo. Não pensou em ditames sociais, nem em se rebelar contra nada... Apenas não conseguiu desviar o olhar. Ela já o havia visto; apenas de longe, no entanto e não lhe chamara a atenção. Todos o conheciam ao menos de vista, afinal, ele era o ponto
nos ensaios de teatro, porque lia muito bem e costumava ser quem ditava o texto para os que esqueciam suas falas quando das apresentações.
Permaneceram, portanto, assim enfeitiçados, por um longo e inesquecível momento. Por alguns momentos nada mais viram a seu redor. Como que encantados, foram se aproximando, atraídos por força invencível, que nenhum dos dois queria derrotar. Nos lábios de ambos, um sorriso tímido se foi formando simultaneamente. Seca a garganta, trêmulos ao se aproximarem tão instintivamente. Seus dedos se roçaram levemente, num movimento automático. Foi um mínimo de tempo, alguns segundos apenas – suficientes, porém, para que uma sensação indizível se comunicasse a cada uma de suas células. Algo definitivo e inevitável. Intuíram que estavam destinados um ao outro. Aproximaram-se com o cuidado e a solenidade que tal certeza exigia, alongando, como se previamente o tivessem combinado, o momento em que concretizariam seu destino. Pronunciaram, cada um, seus nomes à guisa de apresentação – baixinho, bem baixinho. Só eles ouviram. E jamais esqueceram.
As torres da igreja gótica, com suas formas barrocas, e a Torre de Piast, do antigo castelo onde vivera a dinastia que lhe dava nome, foram as únicas testemunhas do encontro que se tornou a razão da vida dos dois.
Quando o olhar de ambos se encontrou, quando, pela primeira vez, se encararam naquele dia memorável, tornou-se impossível considerar quaisquer convenções que lhes haviam ensinado, aturdidos pelos insólitos sentimentos que os tomaram. Perla ainda não sabia que aquele encontro mudaria sua vida para sempre. Menos ainda que aquele rapaz bonito era de uma das famílias mais ricas da cidade.
Em uma época em que as pessoas só se dirigiam a outras após apresentação formal, aquela fora uma situação imprevista, inescapável – e emocionante. Pessoas sérias, com reputação a zelar, jamais se tocariam numa sala qualquer do pequeno povoado. E, muito embora tivesse sido, como fora, tão somente um sutil toque de mãos, quase imperceptível aos demais, ainda assim, aquele momento os definiu. Uma força os atraiu: era como se precisassem verificar se eram, de fato, reais.
Souberam ali, naquele exato momento, que estariam juntos, em todos os momentos que se seguiriam. A partir de então, cada segundo, cada mínimo momento, cada pensamento ou gesto era de um para o outro, num chamado irresistível. Ambos sabiam agora que rumo queriam dar às suas vidas.
Assim começou a história de um grande amor.
capítulo 2
Depois
Quis a vida, porém, que só se vissem de novo semanas depois. Os ensaios da peça haviam sido temporariamente suspensos, de modo que não tornaram a se encontrar de imediato.
Não que Perla não tivesse buscado vê-lo a cada momento. A cada saída, fosse para compras, para buscar os irmãos que brincavam com a molecada pelas ruas no entorno da pequena casa onde moravam, fosse qual fosse a ocasião, todos os momentos, sem distinção, transformaram-se a partir daquele momento mágico em angustiante busca, em eletrizante espera. Sim, Perla confiava que, também ele, aquele homem de olhar apaixonante, de quem somente o nome sabia, era o seu príncipe encantado e buscaria encontrá-la.
A cada esquina, uma esperança. E a cada desilusão, angústia. Os dias passavam e a ansiedade tomava conta de seus pensamentos... Nem ao menos sabia quem era, onde morava... Perla se maldizia. Por que não se falaram? Por que não se apresentaram? Como se afastaram sem se darem a chance de novo encontro? – perguntava-se a cada instante.
A seu turno, Max também se atormentava. Volta e meia aqueles olhos verdes, inesquecíveis, voltavam-lhe à mente e um frêmito irreprimível percorria seu corpo e acendia seu coração. Cada vez que recordava o fugaz instante em que, tão de leve, se tocaram, sentia e reafirmava a convicção de que tinham um destino comum. Sim, ele a encontraria. Custasse o que custasse.
Foi somente no ensaio seguinte que se reencontraram. E foi lá que souberam, semanas depois, quem eram, onde moravam e a que família pertenciam. Também souberam, nesse mesmo momento, que nada seria fácil.
Max era filho de uma das pessoas mais proeminentes da cidade, que, na verdade, nem bem cidade era. Pequena, pacata, minúscula, Opole tinha cerca de treze mil habitantes naquele início do século XX. Em sua maior parte, os moradores eram pequenos agricultores. Plantavam e cuidavam de suas roças, além de alguns criarem patos, gansos e outros animais. Havia também os que possuíam uns poucos bois e uma ou duas vacas. As casas eram toscas, simples; a maioria composta de um andar e um sobrado. As maiores abrigavam duas ou três famílias. Era frequente haver uma cozinha comum. O banheiro, de uso comum, quase sempre ficava na parte mais remota do quintal.
A casa do pai de Max, judeu praticante e homem erudito, era confortável e sobressaia às demais. Casado em segundas núpcias, tinha do primeiro casamento cinco filhos – quatro homens e uma mulher. Era um abastado fabricante de couros. Moravam a cerca de dez quilômetros do centro, local mais adequado à atividade que desenvolvia. As construções locais, simplíssimas, em sua maioria, eram de madeira. Comparada a elas, a de Saul era um portento: toda em alvenaria, com paredes espessas que barravam o frio intenso, tinha cômodos amplos e claros; a cozinha equipada com fogão à lenha de seis bocas, sinalizando a confortável situação de que desfrutavam seus moradores. Destacava-se na ampla sala, imponente móvel de oito portas e grandes travas douradas, no qual eram armazenados alimentos. Ali se estocavam grãos, compotas, doces e outros alimentos, além de louça e demais utensílios.
O curtume empregava boa parte das pessoas da cidade. A família de Max era importante também por esse aspecto. Além de gerar empregos, era, juntamente com poucas outras, a quem se podia vender o que ali se produzia. Pequenos criadores de gado lhe vendiam suas vacas e bois, quando não se prestavam mais aos serviços que a lavoura requeria. O pai de Max os comprava para abate e utilização do couro.
Saul era, portanto, pessoa das mais influentes no povoado. Além de prover empregos para várias famílias – o que significava a diferença entre ter ou não ter o que comer –, era também o líder religioso da comunidade, uma espécie de conselheiro, a quem se dirigiam quando estavam com problemas e queriam uma solução coerente com a lei mosaica. Também o ouviam aqueles que precisavam de orientação para dilemas e dramas pessoais. A pequena comunidade judaica do povoado não tinha condições de pagar um rabino, então, ele, das poucas pessoas que dominavam com competência a complexa leitura da Torá, conduzia as rezas e orientava os que necessitavam ouvir alguém com algum nível de cultura e saber. Era respeitado e conhecido por suas posições tradicionais. Apesar disso, e em contraposição, Max tinha uma visão progressista, até avançada, em relação à sociedade e à religião. Não acreditava em nada, na verdade, mas evitava declará-lo com clareza, para não entrar em conflito com o pai. Guardava para si suas ideias, de modo que tudo seguia em paz.
Assim a comunidade seguia a vida e preservava seus costumes e fé. Por isso, quando finalmente os dois se reencontraram e Perla lhe revelou seu temor de não ser aceita pela família do amado, ele apenas lhe disse, olhando-a com seus olhos escuros e profundos:
– Nosso encontro é para sempre.
Perla confiou; e assim foi: não sem luta, não sem briga, não sem perdas. Mas assim foi.
De fato, Saul traçara planos perfeitos para o filho. Usual à época definir profissão, esposa, carreira na vida dos filhos, fazia-se ainda mais natural quando se tratava, como no caso, de uma família de posses e bem estabelecida. Os primogênitos geralmente eram designados a dar continuidade aos negócios da família. E era o que Saul sonhava para o filho. Max se casaria com Sheila, a filha de seu melhor amigo. Sheila tinha estudo, o que não era tão comum à época: sabia ler e escrever, era prendada, recatada e religiosa; seria excelente mãe para seus netos – decidira Saul. Além disso, esperava que Max o sucedesse no curtume, quando poderia, enfim, aposentar-se e desfrutar em paz seu final de vida.
Por tudo isso, quando Max lhe surgiu com a indesejada história de um certo amor à primeira vista, ele não teve dúvidas em bradar um sonoro, decidido e irretorquível não. Que deixasse de romantismo tolo, e seguisse o caminho que desenhara para ele. Pensava tratar-se de entusiasmo juvenil que rapidamente passaria com um severo sermão. Acreditava que uma chamada dura traria o filho de volta à realidade.
Foi, portanto, com espanto e decepção que constatou a determinação categórica do filho. Com desgosto compreendeu que nada, nem ninguém, iria demovê-lo da ideia de buscar Perla, a companheira que escolhera ouvindo o coração. Também percebeu, perplexo, que argumentos, racionalidade ou ameaças – nada o faria desistir. Max fora claro e definitivo: não queria conhecer, nem admitiu ver a moça prendada e encantadora que o pai lhe queria compromissar.
Saul usou todos os recursos de que pode se valer: ordenou, explicou, ameaçou, voltou a insistir. Para seu espanto e incredulidade, viu-se frente a um Max adulto, maduro e inflexível. Um homem que encontrara e escolhera o amor. Não era um capricho tolo – como pensara Saul. Furioso, ameaçou deserdá-lo.
Era um tempo em que filhos se oporem a desígnios paternos era totalmente incomum. Quando lhe disse que o deixaria sem tostão, sem trabalho e sem apoio, percebeu no filho um átimo de hesitação. Supôs ter vencido a batalha. O que tinha visto, no entanto, e não compreendera, fora um Max pálido de raiva