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Crianças precisam mesmo ler?: O papel da literatura na primeira infância
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Crianças precisam mesmo ler?: O papel da literatura na primeira infância
E-book322 páginas4 horas

Crianças precisam mesmo ler?: O papel da literatura na primeira infância

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Sobre este e-book

O livro discute a importância da formação literária das crianças, por meio do incentivo à literatura infantil desde bebês. A autora argumenta que a literatura é um direito de todo ser humano e, portanto, não deve ser apenas uma escolha dos pais ou da escola. Com sua experiência como mãe e professora, Gianne Pereira explora os diferentes tipos de livros infantis e compartilha estratégias e práticas para criar o hábito da leitura na infância. Em linguagem simples e dialogada, a obra é acessível aos pais e aos familiares, sem deixar de contribuir com professores e demais interessados no meio educacional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2021
ISBN9786599135460
Crianças precisam mesmo ler?: O papel da literatura na primeira infância

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    Crianças precisam mesmo ler? - Gianne Pereira

    CAPÍTULO 1

    Por que criar um pequeno leitor?

    A primeira infância é a etapa da vida em que se aprende a simbolizar, e simbolizar é a base da experiência de pensamento. Sem brincar, sem cantar, sem ler ou ouvir histórias ficcionais é difícil enriquecer a capacidade de pensar. Que lugar conferimos à palavra lúdica e poética, à leitura e à presença dos livros na vida das crianças é uma questão sobre a capacidade de pensamento de uma sociedade, por sua habilidade para inventar e reverter o estado das coisas (LÓPEZ, 2018, p. 78).

    Um pequeno leitor se cativa pelo prazer e se forma pelo hábito. E bem sabemos a dificuldade que é abandonar um hábito. Porém, antes de discutirmos como tornar esse gosto parte da rotina da criança, é preciso nos questionar por que isso interessa. Afinal, por que as crianças precisam ler? O que pode a leitura fazer por elas e pelo mundo? Que necessidades a leitura pode suprir?

    Não pretendemos esgotar o assunto, mas trazer reflexões que justifiquem a nossa incessante defesa da necessidade da literatura desde a primeira infância¹.

    Provavelmente, você já se deparou com listas de benefícios da leitura, e nelas constavam itens como o aumento do vocabulário e viajar sem sair do lugar. Essas motivações disseminadas no senso comum serão também discutidas, mas de maneira menos simplista e relacionadas a tópicos mais abrangentes: do ponto de vista da formação social, a literatura tem papel basilar no desenvolvimento da empatia e na consequente humanização, sendo, portanto, um compromisso social; do ponto de vista da formação cognitiva, favorece o desenvolvimento das mais diversas habilidades linguísticas; e, do ponto de vista da formação emocional, é relevante sua contribuição para o fortalecimento de vínculos afetivos. Dividiremos nosso estudo nesses três eixos: formação social, linguística e emocional, todos fundamentais para o desenvolvimento pleno de qualquer indivíduo.

    1. A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA PARA A FORMAÇÃO SOCIAL

    1.1 Empatia, humanização e compromisso social

    (…) antes de desenvolverem nos estudantes o prazer pela leitura, de fazer com que gostem de manipular livros e outros textos, que se alegrem ao ir à biblioteca da escola ou à sala de leitura, que sintam necessidade da leitura como uma experiência feliz – assim como é uma experiência feliz jogar bola ou brincar de boneca – será pura perda de tempo tentar avançar de fase. Se a escola conseguisse, ao menos, desenvolver isso, faria muito mais pela humanidade do que ensinando a tabela periódica dos elementos químicos, o movimento uniformemente variável, a oração subordinada completiva nominal reduzida de infinitivo (FERRAREZI e CARVALHO, 2017, p. 38, destaque nosso).

    Adicione filhos e família ao lado de estudantes e escola, respectivamente, e terá a tese defendida neste livro: a literatura contribui mais para a humanização do que muitos ensinamentos escolares e familiares. De nada adianta conhecimento científico e regras de etiqueta, por exemplo, se não houver senso do coletivo; podemos dizer que conhecimento sem humanização é, até mesmo, perigoso. E apesar de sermos humanos, comumente não nascemos humanizados; é, preciso, portanto, gastar certo tempo desenvolvendo essa condição, assim explicada por Antonio Candido, renomado teórico literário, em seu texto Direito à literatura:

    Entendo aqui por humanização (…) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputados essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante (CANDIDO, 2011, p. 182, destaque nosso).

    Neste contexto, ter a literatura como parte da vida não só é direito de toda criança, como é também uma necessidade social, já que, desde bebê, muitas vezes fora da escola ainda, é nos livros que ela aprenderá a deslocar seu ponto de vista e ver pelos olhos dos outros, desenvolvendo a empatia. É nesse contato que perceberá a dimensão indefinível do mundo, bem maior do que as paredes de seu lar, e a existência de tantos e tão diferentes outros.

    Esse conhecimento possibilitado pela literatura não se restringe à apresentação de uma diversidade de etnias ou grupos sociais. Não diminuímos a importância de aprender a respeitar todos, mas queremos propor um passo além: pensar no outro como um ser subjetivo, para além do ser negro, branco, indígena, homem, mulher. Os indivíduos não podem prescindir dessa história, mas sua história também não pode limitar-se a ela; fosse assim, o mundo não evoluiria. E, ainda que a passos muito mais lentos do que gostaríamos, temos saído do lugar. A literatura também nos dá acesso, então, ao que há de mais íntimo e subjetivo na voz do outro. Pela narração, adentramos uma dimensão interior e individual, capaz de revelar uma realidade inerente a cada indivíduo nem sempre conhecida; e, por isso, a empatia sempre deve ser maior do que o julgamento. Aprendemos a nos colocar no lugar do outro enquanto lemos – ou ouvimos – histórias: passamos a ver o outro, ver pelo outro e ver através do outro.

    Esse hábito extrapola o campo literário e traz para o real a prática da especulação e do levantamento de hipóteses: por que uma pessoa agiria assim? O que pode haver por trás desse comportamento? Qual será a história dela? Passamos a compreender que todos têm uma história, e toda história carrega seus motivos e suas consequências. Tornamo-nos mais flexíveis ao perceber que a realidade é mais complexa do que se mostra num primeiro instante. Nem tudo é preto e branco; há camadas e precisamos aprender a pensar cada uma delas em todas as áreas da nossa vida, para o nosso bem e o bem do outro. Para que, quando lermos determinadas manchetes de notícias, por exemplo, entendamos que houve ali um recorte do caso, um ponto de vista e uma escolha de palavras que não foi neutra, ao contrário, toda seleção vocabular escolhe seu modo de contar uma história, e esse modo sempre traz um posicionamento, ainda que a escolha aparente neutralidade. Afinal, escolher se abster é também uma forma de se posicionar.

    Nesse contexto, a obra A verdadeira história dos três porquinhos, de Jon Scieszka, pode contribuir para nossa discussão. Pelo título, já supomos que a narrativa trará uma nova versão do conto tradicional. O lobo era mesmo mau? Ou tudo não passou de um mal-entendido? De modo lúdico, a história desloca o ponto de vista, trazendo a visão do lobo e mostrando que toda situação tem pelo menos dois lados. Se há mais de um envolvido, portanto, cada um merece ser ouvido, para assim evitarmos conclusões precipitadas e por vezes injustas, já que nem sempre o contexto é suficiente para entendermos o que se passou. Cabe a nós, então, questionar a realidade e pensar em outras possibilidades além daquelas que parecem óbvias.

    No caso da narrativa exemplificada, o lobo não tinha a intenção de destruir a casa dos porquinhos, como no conto tradicional. O jornal, porém, focou a demolição das casas pelo lobo e omitiu o fato de que foi um acidente, deturpando a verdade para despertar maior interesse no público e atrair mais leitores. Ou seja, tendo a chance de se beneficiar, a mídia não hesitou em prejudicar alguém.

    Uma leitura mais atenta perceberá que a narrativa aborda outra camada mais profunda: às vezes, o mal-entendido é na verdade manipulação. Ao narrar um acontecimento, podemos recortar a parte que nos interessa e mostrar pelo ângulo que nos é conveniente. Prática infelizmente real, principalmente quando falamos de grandes mídias. Num mundo em que o acesso a diferentes tecnologias de informação e comunicação é cada vez mais intenso por crianças, é fundamental que as nossas tenham certa astúcia e saibam que há muitas verdades por trás do que é publicado. É necessário, portanto, que saibam questionar a informação que lhes chega, que não aceitem passivamente o que lhes é dito. Mas dá trabalho uma criança assim, não é?

    Crianças questionadoras tendem a ser julgadas como respondonas; talvez porque ofendam nossa própria falta de raciocínio. No entanto, não é vantajoso – nem mesmo seguro – uma criança que questiona? Uma criança que não aceita qualquer verdade que lhe é imposta? Por que ela deve acreditar que viemos da alface ou fomos entregues por uma cegonha, quando vê mulheres grávidas o tempo todo? Há alguma lógica nisso? Ou estamos subestimando sua capacidade de raciocínio?

    Ana Elisa Ribeiro, doutora em Linguística Aplicada, refletindo sobre a postura muito mais de consumidor do que de enunciador dos jovens atualmente, nos lembra de que é preciso ter sempre presente a ideia de que leitores analíticos e críticos favorecem muito a existência de um mundo mais horizontal e menos manipulado por poucos (2018, p. 39). No entanto, como esperar que nossas crianças se transformem nesses jovens, se não lhes oferecermos materiais adequados para seu desenvolvimento? A quantidade de suportes acessíveis para um público massivo nunca foi tão grande; são redes sociais e aplicativos novos lançados com mais rapidez do que podemos acompanhar. E muitas crianças, desde a mais tenra idade, já têm acesso a esse arsenal. Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, Doutora em Educação, no prefácio da obra Educar na curiosidade, de Catherine L’Ecuyer, alerta para o fato que:

    As TDIC, representadas por distintos dispositivos transformados em fetiches nas mãos das crianças e adolescentes, reforçam a aprendizagem por meio de estímulos externos, caminham em direção contrária ao desenvolvimento do pensamento crítico, da humanização da ética e da cidadania responsável (…) (L’ECUYER, 2016, p. 11-12).

    O que farão as crianças de hoje com todo esse acesso em sua juventude futura? Mergulharão em conteúdos profundos ou navegarão na superfície? Apenas assimilarão ou também criarão? Ao menos, lerão com criticidade? Pensarão na origem da informação, no autor e seu propósito? Ou serão parte da massa manipulável?

    Ler – e ler bem! – não só contribui para a imaginação, como também estimula o raciocínio e favorece a formação de uma criança crítica. Alguém que não lê só os livros, mas o mundo. Alguém que poderá se tornar impertinente ao questionar suas atitudes no dia a dia – por que não pode comer a carne com a mão, mas a batatinha frita pode? – mas, entendamos, alguém que se tornará um adulto também crítico. E como o mundo está carecendo disso! Carecendo de gente que não aceite qualquer verdade, de gente que questione, de gente que saiba se colocar no lugar do outro, de gente humana, afinal!

    1.2 Conhecimento de mundo: tabus

    (…) os contos clássicos contam às crianças o que elas inconscientemente sabem – que a natureza humana não é inatamente boa, que o conflito é real, que a vida é severa antes de ser feliz – e com isso as tranquilizam com relação a seus próprios medos e a seu próprio senso de individualidade (TATAR apud BRENMAN, 2012, p. 184).

    Lembremos aqui do outro tópico frequente nas listas de benefícios da literatura: ler aumenta seu conhecimento de mundo. E conhecer o mundo é conhecer as pessoas que vivem nele e o modo como ele funciona. Ambos serão vividos na realidade, mas não em sua plenitude, e nem sempre nos primeiros anos de vida. Como conversar sobre racismo com seu filho que desconhece a agressão constante sofrida por negros? Como conversar sobre o respeito ao deficiente com uma criança que nem sabe que todas as pessoas não são iguais? Como abordar a morte? E a violência? A mencionamos ou a omitimos? Novamente, nossa aliada se faz necessária. Pelo lúdico, assuntos como morte e preconceitos se apresentam. Ciclos da vida ficam evidentes: todo mundo desmama, ter irmãos é comum e sentir-se excluído também. A diversidade se mostra.

    Apesar de a noção de diversidade ser provavelmente uma das primeiras percepções no mundo infantil, em casa e mesmo na escola, ela é ainda muito limitada diante da amplitude do mundo. É por meio de personagens, portanto, que as crianças poderão descobrir que nem todos são como elas não só fisicamente, mas também social e emocionalmente. E aprendendo pelos livros, temos a chance de apresentar certas visões livres da contaminação do preconceito. Assim, a criança aprenderá a ver a realidade do outro sem julgamento ou hierarquia. A chance de se indignar com o preconceito quando o conhecer é maior; cresce a percepção de que não faz sentido a naturalidade com que certas atitudes preconceituosas são praticadas, trazendo junto o desejo de luta por igualdade ou o ao menos o tratamento sem discriminação.

    Do outro lado, é justo que crianças integrantes dos grupos de minorias se reconheçam em obras cujo enredo não se centra em sua diferença com a maioria. Certamente é necessário falar sobre racismo, pois não se combate um problema negando sua existência. Porém, é também direito das crianças negras, por exemplo, identificar-se com personagens em histórias para além das problemáticas com as quais precisam lidar no cotidiano. Representá-los fora desse estigma é, talvez, um dos primeiros passos para um tratamento justo.

    A bola vermelha (2015), de Vanina Starkoff, é um exemplo dessa representação. O livro é composto primordialmente por ilustrações que têm seus significados complementados por onomatopeias. Cenário e personagens são em preto e branco; a bola é vermelha. É ela quem nos guia por uma narrativa de curiosidades, hipóteses, quebra de expectativas, possibilidades, descobertas. A bola é o fio condutor da história cujas palavras serão escolhidas pelo leitor. E o que o livro tem a ver com este tópico? A personagem central é negra. É negra como poderia ser branca, parda, azul. Não importa, para o enredo, a sua cor. Porque, por mais que a história social dos negros interfira em suas vidas, todos são seres humanos antes de serem negros e, por isso, antes de terem uma história com sua etnia, têm também uma história com sua humanidade.

    Um dia a criança descobrirá que o mundo é duro. E mais duro com uns do que com outros. Que, neste dia, ela já esteja alimentada da visão livre de estereótipos. Que ela já tenha aprendido a ver qualquer indivíduo como ser humano antes de vê-los como negros, deficientes ou qualquer condição que normalmente define, segrega e limita. A propósito, peço licença para um relato pessoal: eu e meu filho costumamos ouvir histórias narradas por áudios do Projeto Histórias para abraçar, criado pela Ana Luiza Rocha, doutoranda em Teoria Literária e Literatura comparada. Numa delas², os filhos de um rei se deparam com um anão e se dirigem a ele como homenzinho ridículo e pedaço de gente nojenta. Meu filho nunca tinha visto um indivíduo com nanismo, não sabia como era uma pessoa nessa condição, mas entendeu que ele era um ser humano; e isso bastou para que ele se incomodasse: não pode falar assim com as pessoas, que feio chamar alguém assim. Crianças têm o hábito de ler – ou ouvir – a mesma história infinitas vezes e, um dia, mostrei fotos de uma pessoa com nanismo. Ele observou com atenção, mas os xingamentos continuaram sem fazer sentido para ele: mas por que xingam ele, mamãe?. Tentei explicar que o desrespeito se devia à diferença em sua aparência, mas ele continuava sem entender; afinal, não somos todos diferentes? Como um aspecto físico pode determinar um tratamento como esse?! Mudei o rumo, e passei a explicar-lhe que no mundo há gente preconceituosa. Percebi que, se insistisse na outra explicação, eu estaria justificando e validando um comportamento social que deveria ser inaceitável.

    Ouvir essa história, então, abriu-nos um mundo de possibilidades: conversar sobre diferença, deficiência, preconceito. Oportunidade de conversar sobre um assunto que ainda não apareceu na realidade, discutindo previamente formas legítimas de lidar com o diferente. É aceitável xingar? E fazer cara de nojo pode? E quando a diferença se reflete em nossa expressão curiosa, com um misto de espanto? Saberemos controlar esse impulso quando já tivermos gastado um tempo para pensar sobre ele: sobre o que a imagem do outro suscita em nós, mas sobre o que a nossa expressão causa no outro. Precisamos aprender a policiar nossa reação e a intervir em situações sociais de agressão, mesmo que verbal. Lembremos que o silêncio é sinal de cumplicidade.

    Assim, a literatura pode ser a primeira entrada em assuntos complexos da existência humana, permitindo pensar o real de modo simbólico. Há quem prefira evitar tocar em temas delicados – ou mesmo tabus – com crianças, temendo não ter respostas para as perguntas que surgirão. De fato, questionamentos virão e muitos sem respostas. Mas é isso que justifica a existência da literatura: ela guarda aquilo que não é passível de ensino. O livro didático, por exemplo, precisa ser coerente, saber explicar cada assunto abordado. Mas, será que tudo é explicável? Como falar sobre amor? Sobre dor? E sentimentos como raiva e ciúmes? Eles existem; o que fazer com eles?! Para isso serve a literatura: acolher o que não se ensina; trazer mais perguntas do que respostas; inspirar reflexões; apresentar caminhos; e não para oferecer respostas que definem e limitam.

    1.3 Arte como vacina

    (…) verifiquei que a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza (CANDIDO, 2011, p. 188).

    Retomando as listas de por que ler, outro item obrigatório é ler permite viajar sem sair do lugar. Fato. Por meio da literatura podemos conhecer diversos lugares e culturas que talvez nunca conheçamos ao vivo. Porém, muito além de visitar lugares físicos, a literatura nos possibilita viajar na mente, pelos mais diversos sentimentos. É nela e por ela muitas vezes que se dará o primeiro contato com assuntos delicados, como a morte. É nela, talvez, que nossos filhos sentirão medo pela primeira vez: que monstro é esse? É nela que eles viverão a quebra de expectativa, a frustração. E, assim, eles vão se vacinando, treinando como lidar com os sentimentos que, um dia, quem sabe, serão vividos para valer, de modo muito mais intenso e cheio de consequências em sua vida.

    Paulo Fochi, especialista em Educação Infantil, em um bate-papo promovido pelo Projeto A Taba³, comenta sobre a importância da leitura na criação de uma reserva criativa, afetiva e simbólica para ajudar a enfrentar a vida, criar novas possibilidades, ver além do óbvio, suportar experiências traumáticas reais, reconhecer que o mundo não é só o que está no nosso entorno, enfim, para existir. Por tudo isso, devemos ter cuidado ao escolher privar as crianças de certas histórias, alegando protegê-las. Será que temos esse direito? Essa questão será aprofundada no capítulo O que ler; por enquanto, então, vamos nos limitar a pensar a literatura como escola de sentimentos: ela contribui para nossa construção emocional tanto ao abordar sentimentos conhecidos, quanto aqueles nunca vividos, apresentando uma gama de caminhos para lidar com eles – já que provavelmente os personagens de cada livro nem sempre agirão da mesma forma diante da mesma situação. Assim, pelo lúdico e pelo belo, questões complexas do ser humano são apresentadas, e nossa relação com a linguagem e com nossos sentimentos se constrói, formando nosso aspecto sensível ao mesmo tempo que somos inseridos num mundo estético. É por meio da literatura – e das artes, em geral – que experimentamos antes de vivenciarmos.

    Quem convive com crianças provavelmente já percebeu como utensílios domésticos fazem ainda mais sucesso do que brinquedos. Deixe uma criança explorar os armários da cozinha e tenha minutos de paz. Panelas são chapéus, potes viram tijolos, hashis⁴ são baquetas. Vivendo pela imaginação, recriar objetos à sua volta é um hábito. Por isso, brinquedos eletrônicos nem sempre são os preferidos: eles brincam sozinhos, privando a criança de sua participação. Que graça tem, afinal, tocar um instrumento que já toca sozinho? Onde ficam as experimentações, hipóteses e descobertas? Onde fica a imaginação se o funcionamento é previsível? Objetos do cotidiano fazem mais sucesso porque neles as crianças enxergam um mundo de possibilidades. Futuramente, quando precisarem utilizá-los, elas já estarão familiarizadas com eles. Aprenderão o uso correto, mas o primeiro contato terá sido pela fantasia. Ou seja, pela fantasia conhecem a realidade e encontram formas de usos não tradicionais. O mesmo se dá com as emoções: narrando, a criança fica triste, nervosa, alegre, empolgada. Pela fantasia experimenta esses sentimentos, criando familiaridade. Quando eles surgirem na vida real, é provável que saiba reconhecê-los; e caminhar por um território familiar já é o primeiro passo para aprender a lidar com as complexidades humanas. Complexidades essas

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