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Assim falou Zaratustra
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E-book430 páginas5 horas

Assim falou Zaratustra

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Sobre este e-book

Nietzsche foi buscar no zoroastrismo, religião ancestral da Pérsia (atual Irã), o personagem para expor suas próprias ideias. O que parece ter atraído ao filósofo alemão é o dualismo cósmico da doutrina de Zaratustra (ou Zaroastro, daí o termo “zoroastrismo”). Cabe notar, no entanto, que a guerra semieterna entre o “Deus Bom” e o “Deus Mau” era, numa análise mitológica mais aprofundada (a qual Nietzsche certamente estava a par), uma analogia para a batalha moral que se dá antes **dentro** da alma humana do que fora dela.

A grande questão não era, portanto, termos medo de um Demônio externo – entidade que serviu e ainda serve para evocar o medo nos seguidores de dogmas. A questão era reconhecermos nossos próprios monstros internos, e apaziguá-los, dominá-los, nos tornando timoneiros de nossa própria embarcação.

Nietzsche foi muito mal interpretado ao longo dos anos, e por isso cabe lermos esta obra (para muitos, sua obra-prima) tendo em mente que o “Deus” ao qual ele anuncia a morte é, sobretudo, o “deus das barganhas”, que guia ovelhas com maior pavor dos “infernos” do que propriamente uma vontade genuína de se espiritualizar. Da mesma forma, o “Super-homem” não é um “homem de espécie superior” num sentido de “raça humana superior” (que a ciência já comprovou que sequer existe, ou seja: que todos somos homo sapiens desde seu surgimento na África), mas sim num sentido de “homem que supera a si mesmo, que vai além das suas capacidades atuais, que cria o novo”.

Tomei o cuidado (espero que me perdoem) de relembrar estes conceitos assim que aparecem ao longo do livro, com pequenas notas. Noutros casos, inseri notas mais pitorescas, como a que explica que “a péla dourada” nada mais é que uma bola do jogo de péla, espécie de ancestral do jogo de tênis (o esporte), e que teve o seu auge no século em que nasceu Nietzsche.

De resto, escutemos ao que falou Zaratustra...

O editor.

***

[número de páginas]
Equivalente a aproximadamente 315 págs. de um livro impresso (tamanho A5).

[sumário, com índice ativo]
- Prefácio
- Primeira parte
- Segunda parte
- Terceira parte
- Quarta parte
- Apêndice (incluí trechos de 'Schopenhauer como educador')

Obs: o sumário é bem mais detalhado no interior do livro, o que pode ser conferido na amostra gratuita.

[ uma edição Textos para Reflexão distribuída em parceria com a Bibliomundi - saiba mais em raph.com.br/tpr ]
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de abr. de 2023
ISBN9781526013002
Assim falou Zaratustra
Autor

Friedrich Nietzsche

Friedrich Nietzsche (1844–1900) was an acclaimed German philosopher who rose to prominence during the late nineteenth century. His work provides a thorough examination of societal norms often rooted in religion and politics. As a cultural critic, Nietzsche is affiliated with nihilism and individualism with a primary focus on personal development. His most notable books include The Birth of Tragedy, Thus Spoke Zarathustra. and Beyond Good and Evil. Nietzsche is frequently credited with contemporary teachings of psychology and sociology.

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    Assim falou Zaratustra - Friedrich Nietzsche

    Sumário

    Prefácio

    Primeira parte

    Preâmbulo de Zaratustra

    Os discursos de Zaratustra

    Das três transformações

    Das cátedras da virtude

    Dos crentes em além mundos

    Dos que desprezam o corpo

    Das alegrias e paixões

    Do pálido delinquente

    Ler e escrever

    Da árvore da montanha

    Dos pregadores da morte

    Da guerra e dos guerreiros

    Do novo ídolo

    Das moscas na praça pública

    Da castidade

    Do amigo

    Os mil objetos e o único objeto

    Do amor ao próximo

    Do caminho do criador

    A velha e a nova

    A picada da víbora

    Do filho do matrimônio

    Da morte livre

    Da virtude dadivosa

    Segunda parte

    A criança do espelho

    Nas ilhas bem-aventuradas

    Dos compassivos

    Dos sacerdotes

    Dos virtuosos

    Da gente vil

    Das tarântulas

    Dos sábios célebres

    O canto da noite

    O canto do baile

    O canto do sepulcro

    Da vitória sobre si mesmo

    Dos homens sublimes

    Do país da civilização

    Do imaculado conhecimento

    Dos doutos

    Dos poetas

    Dos grandes acontecimentos

    O adivinho

    Da redenção

    Da circunspecção humana

    A hora silenciosa

    Terceira parte

    O viajante

    Da visão e do enigma

    Da beatitude involuntária

    Antes do nascer do sol

    Da virtude amesquinhadora

    No monte das oliveiras

    De passagem

    Dos desertores

    O regresso

    Dos três males

    Do espírito do desgosto

    Das antigas e das novas tábuas

    O convalescente

    Do grande anelo

    O outro canto de baile

    Os sete selos

    Quarta parte

    A oferta do mel

    O grito de angústia

    Conversa com os reis

    A sanguessuga

    O encantador

    Fora de serviço

    O homem mais feio

    O mendigo voluntário

    A sombra

    Ao meio-dia

    A saudação

    A ceia

    O homem superior

    O canto da melancolia

    Da ciência

    Entre as filhas do deserto

    O deserto cresce, ai daquele que oculta desertos!

    O despertar

    A festa do burro

    O canto da embriaguez

    O sinal

    Apêndice

    Todo conteúdo original (em alemão; 1883~85) é de autoria de Friedrich Nietzsche e se encontra em domínio público. A tradução original é de Araújo Pereira (c.1913), revisada e atualizada por José Mendes de Souza (c.1936) e Frater Sinésio (2013).

    Pequenas adaptações foram feitas na gramática, observando as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

    Organização e comentários: Rafael Arrais.

    Esta é uma edição de Textos para Reflexão

    Para conhecer outras obras, visite o blog: textosparareflexao.blogspot.com

    Design e diagramação: Ayon

    Arquivo original ePub validado em validator.idpf.org

    Copyright © 2013 por Rafael Arrais (eBook para eReaders v1.1)

    Todos os direitos reservados (apenas para os comentários e o prefácio)

    Prefácio

    A ORAÇÃO AO DEUS DESCONHECIDO

    Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! [1]

    Quem disse isso foi um dos bigodudos mais geniais da filosofia, e também um dos maiores escritores da história. Muitos ateus militantes tem elegido Friedrich Nietzsche, filósofo alemão que viveu no fim do século XIX, como um de seus grandes heróis. Talvez pelo fato de o próprio Nietzsche ter se autointitulado um ateu:

    Para mim o ateísmo não é nem uma consequência, nem mesmo um fato novo: existe comigo por instinto [2]

    Basear argumentos com base na opinião de escritores famosos não deixa de ser uma falácia do apelo à autoridade – não é muito diferente de defender a infalibilidade da bíblia com base no que algum papa antigo disse sobre o assunto –, mas funciona... As pessoas ficam impressionadas – nossa, esse bigodudo escrevia muito bem, se ele falou que Deus está morto, é bem capaz de estar mesmo!.

    Estamos mesmo na era das generalizações apressadas, talvez porque com a internet os pequenos pedaços de informação tenham sido compartilhados de forma cada vez mais frenética... Faz muito efeito citar Nietzsche em 140 caracteres e completar com algo como #orgulhoateu ou coisa do gênero.

    Você deve estar achando que eu estou aqui para criticar os ateus, mas não é bem esse o meu ponto: quero criticar nossa tendência a ler frases, e não parágrafos, páginas, livros ou, quem sabe, até boa parte da obra e da biografia de um dado filósofo, e interpretar a crença alheia de forma supersimplificada, tornando nosso próprio conhecimento um tanto quanto superficial.

    E o pior de tudo é que muitos nem se dão ao trabalho de perder cerca de 30 minutos na própria internet para se inteirar mais sobre o assunto. É muito simples chegar a esta interpretação um pouco mais profunda da frase de Nietzsche, pesquisando na Wikipedia:

    "A morte de Deus representa, metaforicamente, o fato dos homens não mais serem capazes de crer numa ordenação cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores absolutos e, por fim, à descrença em quaisquer valores. Isso conduziria ao niilismo, que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada ao fato de ainda mantermos uma sombra, um trono vazio, um lugar reservado ao princípio transcendente agora destruído, que não podemos voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projeto de transmutação dos valores, reformular os fundamentos dos valores humanos em bases, segundo ele, mais profundas do que as crenças do cristianismo.

    Segundo ele, quando o cheiro do cadáver se tornasse inegável, o relativismo, a negação de qualquer valoração, tomaria conta da cultura. Seria tarefa dos verdadeiros filósofos estabelecer novos valores em bases naturais e iminentes, evitando que isso aconteça. Assim, a morte de Deus abriria caminho para novas possibilidades humanas."

    O bigodudo atacava a religião institucionalizada, baseada em dogmas castradores do potencial humano. Seu alvo era, sobretudo, as igrejas baseadas no cristianismo. Segundo o filósofo alemão, o evangelho morreu na cruz...

    Ora, o que Nietzsche anunciou não era nada de novo, muitos antes dele já haviam anunciado a decadência da igreja, e uma nova oportunidade para a ascensão da religião livre, da espiritualidade genuína [3]. Poderíamos retornar até muito mais no tempo, mas bastará lembrar de Benedito de Espinosa, o grande filósofo holandês que foi excomungado do judaísmo. Espinosa, em sua Ética, havia chegado à conclusão de que uma substância não poderia criar a si mesma, mas haveria de ter criado tudo o que há.

    A grande peça oculta do Iluminismo também foi acusado de ateísmo – mas é preciso ser racionalmente cego para acusar Espinosa de não acreditar em Deus. Toda sua obra foi dedicada a Deus... Conforme Borges bem disse em sua homenagem em forma de poema: O feiticeiro insiste em esculpir a Deus com geometria delicada – Mas, que espécie de Deus estaria visualizando Espinosa do alto de sua grandiosa racionalidade geométrica? Seria um Senhor dos Exércitos? Seria um deus que opera barganhas com os homens? Seria alguma espécie de avatar divino encarnado em algum profeta?

    Embora possamos hoje chamar de ateu aquele que não acredita em um Criador nem tampouco em deus algum, na época de Espinosa, de Jesus, e até mesmo de Sócrates, ser acusado de ateísmo era ser acusado de não seguir a cartilha religiosa da igreja dominante, era ser acusado de subverter dogmas, de rezar secretamente, quem sabe, para algum deus estranho e desconhecido, que ninguém sabe onde está e nem exatamente como é... Ora, não se enganem: Espinosa foi excomungado por ser ateu! Jesus foi crucificado por ser ateu! Sócrates se viu condenado a beber veneno por ser ateu!

    Mas, é claro, todos esses acreditavam em algum Criador... Esbarramos aqui em um profundo problema etimológico. É como pedir para um grupo de pessoas interpretar a frase disciplina é liberdade – cada qual vai interpretá-la, obviamente, de acordo com sua própria definição dos termos disciplina e liberdade. E, por mais que tais conceitos já sejam capazes de gerar uma imensidão de interpretações diversas, mesmo combinados eles mal chegam aos pés das quase infinitas interpretações para que se responda a pergunta o que é Deus para você?.

    Nietzsche também era um filósofo profundamente espiritual, o que pode ser constatado facilmente em uma de suas obras primas, Assim falou Zaratustra. Mas, e qual seria a visão que o bigodudo tinha de Deus? Talvez este poema, que ele escreveu na juventude, possa nos dar uma boa pista:

    Antes de prosseguir em meu caminho

    e lançar o meu olhar para frente uma vez mais,

    elevo, só, minhas mãos a Ti na direção de quem eu fujo.

    A Ti, das profundezas de meu coração,

    tenho dedicado altares festivos para que, em

    cada momento, Tua voz me pudesse chamar.

    Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras:

    Ao Deus desconhecido.

    Seu, sou eu, embora até o presente tenha me associado aos sacrílegos.

    Seu, sou eu, não obstante os laços que me puxam para o abismo.

    Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-lo.

    Eu quero Te conhecer, desconhecido.

    Tu, que me penetras a alma e, tal qual turbilhão, invades a minha vida.

    Tu, o incompreensível, mas meu semelhante,

    quero Te conhecer, quero servir só a Ti.

    Oração ao Deus desconhecido (traduzido do alemão por Leonardo Boff) [4]

    Existem algumas interpretações bem detalhadas sobre o motivo de Nietzsche ter escrito um poema tão profundamente espiritual, e tão aparentemente teísta, mas o que nos importa aqui é reconhecer a complexidade inata da relação que cada ser tem com Deus – e, quanto mais sábio este ser, mais deliciosamente complexa será sua interpretação, pelo menos se a formos tentar resumir com meras palavras, que no fundo são apenas cascas de sentimentos...

    Se você crê ou não nalgum Criador, contente-se com sua própria crença ou descrença, pois a não ser que faça parte de alguma comunidade eclesiástica profundamente ortodoxa e dogmática, é bem provável que a interpretação do que seja Deus de seus semelhantes, mesmo aqueles mais próximos e queridos, seja algo diversa da sua própria... Uns creem em líderes militares que comandam povos escolhidos, outros em um pai bondoso muito velho e de barba perfeitamente branca, outros em um avatar que encarnou na Terra e ressuscitou 3 dias após ser crucificado, outros em alguma espécie de ser de pele azulada que gosta muito de música e dança, outros apenas em um conceito de libertação da mente do sofrimento mundano, outros na mãe natureza, outros em uma substância que abarca a tudo e a todos, outros num evento aleatório que gerou leis profundamente simétricas por todo o Cosmos... E, quem sabe, cada um deles tenha conseguido visualizar um pequeno pedaço do incompreensível, do desconhecido, do nosso mais profundo semelhante.

    Mas não adianta apenas crer, é preciso se mover em sua direção. É preciso amar. Julguemos os seres por seus frutos, por suas obras; Pois julgá-los por suas crenças ou descrenças não é muito diferente de julgar que Nietzsche era apenas mais um louco, apenas porque achamos o seu imenso bigode um tanto quanto fora de moda...

    Rafael Arrais, 2011

    ***

    [1] Retirado de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche. Parte deste trecho também se encontra em Assim falou Zaratustra, obra posterior. [voltar]

    [2] Retirado de Ecce Homo, de Friedrich Nietzsche. [voltar]

    [3] Embora todo seguidor de igrejas seja religioso, nem todo religioso é um seguidor de igrejas. Religião vem do latim religare e significa religação a Deus ou ao Cosmos, enquanto que Igreja vem do grego ekklesia e significa algo como a comunidade dos escolhidos por Deus. É claro que é possível seguir uma doutrina eclesiástica ou algum dogma e ainda assim ser genuinamente religioso e espiritual, mas a maioria se contenta em repetir orações decoradas uma vez por semana, e esperar pelo tão aguardado céu de ócio eterno... A crítica de Nietzsche era endereçada diretamente e esses últimos. [voltar]

    [4] O texto em alemão pode ser encontrado em Die schönsten Gedichte von Friederich Nietzsche, Diogenes Taschenbuch, Zurich 2000; ou em F.Nietzsche, Gedichte, Diogenes Verlag, Zurich 1994. Ver também o artigo Wotan, por Carl Jung; e também o livro Nietzsche, God and the Jews, por Weaver Santaniello. Também não podemos descartar que na quarta parte de Assim falou Zaratustra Nietzsche provavelmente esteja a ironizar a si próprio, quando jovem, através do personagem encantador (que recita trechos parecidos com alguns trechos deste poema). [voltar]

    ZARATUSTRA: O BEM E O MAL

    Durante 10 anos, segundo narrativas que chegaram a nós, Zaratustra viveu quase sempre isolado, habitando no alto de uma montanha, em cavernas sagradas. Não ingeria nenhum alimento de origem animal. Em outros relatos, teria ido ao deserto, onde fora tentado por uma entidade maligna. Após anos de solidão completa, regressou ao seu povo com as boas novas...

    Assim começou a sua missão. Segundo os masdeístas, ele encontrou muita dificuldade para converter as pessoas à sua nova religião. Em dez anos de pregação teve somente um crente: o seu primo. Durante este período, o chamado de Zaratustra foi como uma voz no deserto. Ninguém o escutava. Ninguém o entendia.

    Nietzsche foi buscar no zoroastrismo, religião ancestral da Pérsia (atual Irã), o personagem para expor suas próprias ideias. O que parece ter atraído ao filósofo alemão é o dualismo cósmico da doutrina de Zaratustra (ou Zaroastro, daí o termo zoroastrismo). Cabe notar, no entanto, que a guerra semieterna entre o Deus Bom e o Deus Mau era, numa análise mitológica mais aprofundada (a qual Nietzsche certamente estava a par), uma analogia para a batalha moral que se dá antes dentro da alma humana do que fora dela.

    A grande questão não era, portanto, termos medo de um Demônio externo – entidade que serviu e ainda serve para evocar o medo nos seguidores de dogmas. A questão era reconhecermos nossos próprios monstros internos, e apaziguá-los, dominá-los, nos tornando timoneiros de nossa própria embarcação.

    Nietzsche foi muito mal interpretado ao longo dos anos, e por isso cabe lermos esta obra (para muitos, sua obra-prima) tendo em mente que o Deus ao qual ele anuncia a morte é, sobretudo, o deus das barganhas, que guia ovelhas com maior pavor dos infernos do que propriamente uma vontade genuína de se espiritualizar. Da mesma forma, o Super-homem não é um homem de espécie superior num sentido de raça humana superior (que a ciência já comprovou que sequer existe, ou seja: que todos somos homo sapiens desde seu surgimento na África), mas sim num sentido de homem que supera a si mesmo, que vai além das suas capacidades atuais, que cria o novo.

    Tomei o cuidado (espero que me perdoem) de relembrar estes conceitos assim que aparecem ao longo do livro, com pequenas notas. Noutros casos, inseri notas mais pitorescas, como a que explica que a péla dourada nada mais é que uma bola do jogo de péla, espécie de ancestral do jogo de tênis (o esporte), e que teve o seu auge no século em que nasceu Nietzsche.

    De resto, escutemos ao que falou Zaratustra...

    Primeira parte

    PREÂMBULO DE ZARATUSTRA

    I

    Aos trinta anos afastou-se Zaratustra da sua pátria e de seu lago, e foi para a montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua solidão sem se cansar. Variaram, porém, os seus sentimentos, e uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se frente ao sol e falou-lhe deste modo:

    "Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a quem iluminas? Faz dez anos que te aproximas da minha caverna, e, sem mim, sem a minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste caminho.

    Nós, porém, esperávamos-te todas as manhãs, tomávamos-te o supérfluo e o bem-dizíamos.

    Pois bem: já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha que acumulasse demasiado mel. Necessito mãos que se estendam para mim.

    Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua loucura e os pobres da sua riqueza.

    Por isso devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro exuberante de riqueza, quando transpões o mar para levar a tua luz ao mundo inferior.

    Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero dirigir.

    Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma felicidade demasiado grande!

    Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela jorrem as douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria!

    Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer voltar a ser homem".

    Assim se iniciou o ocaso de Zaratustra.

    II

    Zaratustra desceu sozinho das montanhas sem encontrar ninguém. Ao chegar aos bosques deparou-se de repente com um velho de cabelos brancos que saíra da sua santa cabana para procurar raízes na selva. E o velho falou a Zaratustra desta maneira:

    "Este viandante não me é desconhecido: passou por aqui há anos. Chamava-se Zaratustra, mas mudou.

    Nesse tempo levava as suas cinzas para a montanha. Quererá levar hoje o seu fogo para os vales? Não terá medo do castigo que se reserva aos incendiários?

    Sim; reconheço Zaratustra. O seu olhar, porém, e a sua boca não revelam nenhum enfado. Parece que se dirige para aqui como um bailarino!

    Zaratustra mudou, Zaratustra tornou-se menino, Zaratustra está acordado. Que vais fazer agora entre os que dormem?

    Como no mar vivias, no isolamento, e o mar te levava. Desgraçado! Queres saltar em terra? Desgraçado! Queres tornar a arrastar tu mesmo o teu corpo?"

    Zaratustra respondeu: Amo os homens.

    "Pois por que — disse o santo — vim eu para a solidão? Não foi por amar demasiadamente os homens?

    Agora, amo a Deus; não amo os homens.

    O homem é, para mim, coisa sobremaneira incompleta. O amor pelo homem me mataria".

    Zaratustra respondeu: Falei de amor! Trago uma dádiva aos homens.

    "Nada lhes dês — disse o santo. — Pelo contrário, tira-lhes qualquer coisa e eles logo te ajudarão a levá-la. Nada lhes convirá melhor, de que quanto a ti te convenha.

    E se queres dar não lhes dês mais do que uma esmola, e ainda assim espera que te peçam".

    Não — respondeu Zaratustra — eu não dou esmolas. Não sou bastante pobre para isso.

    O santo pôs-se a rir de Zaratustra e falou assim: "Então vê lá como te arranjas para te aceitarem os tesouros. Eles desconfiam dos solitários e não acreditam que tenhamos força para dar.

    As nossas passadas soam solitariamente demais nas ruas. E, ao ouvi-las perguntam assim como de noite, quando, deitados nas suas camas, ouvem passar um homem muito antes do alvorecer: Aonde irá o ladrão?

    Não vás para os homens! Fica no bosque!

    Prefere à deles a companhia dos animais! Por que não queres ser como eu, urso entre os ursos, ave entre as aves?".

    E que faz o santo no bosque? — perguntou Zaratustra.

    O santo respondeu: "Faço cânticos e canto-os, e quando faço cânticos rio, choro e murmuro.

    Assim louvo a Deus.

    Com cânticos, lágrimas, risos e murmúrios louvo ao Deus que é meu Deus. Mas, deixa ver: que presente nos traz?".

    Ao ouvir estas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e disse: Que teria eu para lhe dar? O que tens a fazer é deixar-me caminhar, correndo, para que não lhe tire coisa alguma.

    E assim se separaram um do outro, o velho e o homem, rindo como riem duas criaturas.

    Quando, porém, Zaratustra se viu só, falou assim, ao seu coração: Será possível que este santo ancião ainda não tenha ouvido no seu bosque que Deus já morreu?

    III

    Chegando à cidade mais próxima, enterrada nos bosques, Zaratustra encontrou uma grande multidão na praça pública, porque estava anunciado o espetáculo de um bailarino de corda.

    E Zaratustra falou assim ao povo:

    Eu vos anuncio o Super-homem [Übermensch: super-homem, sobre-homem, o homem que transcende a si mesmonota do editor; as demais notas seguirão este padrão].

    "O homem é superável. Que fizestes para o superar?

    Até agora todos os seres têm apresentado alguma coisa superior a si mesmos; e vós, quereis o refluxo desse grande fluxo, preferem voltar ao animal, em vez de superar o homem?

    Que é o macaco para o homem? Uma piada ou uma dolorosa vergonha. Pois é o mesmo que deve ser o homem para Super-homem: uma piada ou uma dolorosa vergonha.

    Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, e ainda em vós resta muito do verme. Noutro tempo foram macaco, e hoje o homem é ainda mais macaco do que todos os macacos.

    Mesmo o mais sábio de todos vós não passa de uma mistura híbrida de planta e de fantasma. Acaso vos disse eu que vos torneis planta ou fantasma?

    Eu anuncio-vos o Super-homem!

    O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-homem, o sentido da terra.

    Eu os exorto, meus irmãos, a permanecerem fiéis à terra e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres.

    São envenenadores, quer o saibam ou não.

    São menosprezadores da vida, moribundos que estão, por sua vez, envenenados, seres de quem a terra se encontra fatigada; vão-se por uma vez!

    Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas Deus morreu, e com ele morreram tais blasfêmias. Agora, o mais espantoso é blasfemar da terra, e ter em maior conta as entranhas do impenetrável do que o sentido da terra.

    Noutros tempos a alma olhava o corpo com desdém, e então nada havia superior a esse desdém: queria a alma um corpo fraco, horrível, consumido de fome! Julgava deste modo libertar-se dele e da terra.

    Ó! Essa mesma alma era uma alma fraca, horrível e consumida, e para ela era um deleite a crueldade!

    Irmãos meus, dizei-me: que diz o vosso corpo da vossa alma? Não é a vossa alma, pobreza, imundície e conformidade lastimosa?

    O homem é um rio turvo. É preciso ser um mar para, sem se toldar, receber um rio turvo.

    Pois bem; eu vos anuncio o Super-homem; é ele esse mar; nele se pode abismar o vosso grande menosprezo.

    Qual é a maior coisa que vos pode acontecer? Que chegue a hora do grande menosprezo, a hora em que vos enfastie a vossa própria felicidade, de igual forma que a vossa razão e a vossa virtude.

    A hora em que digais: "Que importa a minha felicidade! É pobreza, imundície e conformidade lastimosa.

    A minha felicidade, porém, deveria justificar a própria existência!"

    A hora em que digais: Que importa minha razão! Anda atrás do saber como o leão atrás do alimento. A minha razão é pobreza, imundície e conformidade lastimosa!

    A hora em que digais: Que importa a minha virtude? Ainda me não enervou. Como estou farto do meu bem e do meu mal. Tudo isso é pobreza, imundície e conformidade lastimosa!

    A hora em que digais: Que importa a minha justiça? Não vejo que eu seja fogo e carvão! O justo, porém, é fogo e carvão!

    A hora em que digais: Que importa a minha piedade? Não é a piedade a cruz onde se crava aquele que ama os homens? Pois a minha piedade é uma crucificação.

    Já falaste assim? Já gritaste assim? Ah! Não vos ter eu ouvido a falar assim!

    Não são os vossos pecados, é a vossa parcimônia que clama ao céu! A vossa mesquinhez até no pecado, isso é que clama ao céu!

    Onde está, pois, o raio que vos lamba com a sua língua? Onde está o delírio que é mister inocular-vos?

    Vede; eu anuncio-vos o Super-homem: É ele esse raio! É ele esse delírio!

    Assim que Zaratustra disse isto, um da multidão exclamou: Já ouvimos falar demasiado do que dança na corda; agora, mostre ele para nós.

    E toda a gente se riu de Zaratustra. Mas o dançarino da corda, julgando que tais palavras eram com ele, pôs-se a trabalhar.

    IV

    Entretanto, Zaratustra olhava a multidão, e assombrava-se. Depois falava assim:

    "O homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa travessia, perigoso caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.

    O grande do homem é ele ser uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e um acabamento.

    Eu só amo aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque são esses os que atravessam de um para outro lado.

    Amo os grandes desdenhosos, porque são os grandes adoradores, as setas do desejo ansiosas pela outra margem.

    Amo os que não procuram por detrás das estrelas uma razão para morrer e oferecer-se em sacrifício, mas se sacrificam pela terra, para que a terra pertença um dia ao Super-homem.

    Amo o que vive para conhecer, e que quer conhecer, para que um dia viva o Super-homem, porque assim quer o seu acabamento.

    Amo o que trabalha e inventa, a fim de exigir uma morada ao Super-homem e preparar para ele a terra, os animais e as plantas, porque assim quer o seu acabamento.

    Amo o que ama a sua virtude, porque a virtude é vontade de extinção e uma seta do desejo.

    Amo o que não reserva para si uma gota do seu espírito, mas que quer ser inteiramente o espírito da sua virtude, porque assim atravessa a ponte como espírito.

    Amo o que faz da sua virtude a sua tendência e o seu destino, pois assim, por sua virtude, quererá viver ainda e deixar de viver.

    Amo o que não quer ter demasiadas virtudes. Uma virtude é mais virtude do que duas, porque é mais um nó a que se aferra o destino.

    Amo o que prodigaliza a sua alma, o que não quer receber agradecimentos nem restitui, porque dá sempre e se não quer preservar.

    Amo o que se envergonha de ver cair o dado a seu favor e que pergunta ao ver tal: Serei um jogador fraudulento? – porque quer submergir-se.

    Amo o que solta palavras de ouro perante as suas obras e cumpre sempre com usura o que promete, porque quer perecer.

    Amo o que justifica os vindouros e redime os passados, porque quer que o combatam os presentes.

    Amo o que castiga o seu Deus, porque ama o seu Deus, pois a cólera do seu Deus o confundirá.

    Amo aquele cuja alma é profunda, mesmo na ferida, e ao que pode aniquilar um leve acidente, porque assim de bom grado passará a ponte.

    Amo aquele cuja alma transborda, a ponto de se esquecer de si mesmo e quanto esteja nele, porque assim todas as coisas se farão para sua ruína.

    Amo o que tem o espírito e o coração livres, porque assim a sua cabeça apenas serve de entranhas ao seu coração, mas o seu coração, o leva a sucumbir.

    Amo todos os que são como gotas pesadas que caem uma a uma da sombria nuvem suspensa sobre os homens, anunciam o relâmpago próximo e desaparecem como anunciadores.

    Vejam: eu sou um anúncio do raio e uma pesada gota procedente da nuvem; mas este raio chama-se o Super-homem".

    V

    Pronunciadas estas palavras, Zaratustra tornou a olhar o povo, e calou-se. "Riem-se — disse o seu coração. — Não me compreendem; a minha boca não é a boca que estes ouvidos necessitam.

    Terei que principiar por lhes destruir os ouvidos para que aprendam a ouvir com os olhos? Terei que atroar à maneira de timbales ou de pregadores de Quaresma? Ou só acreditarão nos gagos?

    De qualquer coisa se sentem orgulhosos. Como se chama então, isso de que estão orgulhosos? Chama-se civilização: é o que se distingue dos cabreiros.

    Isto, porém, não gostam eles de ouvir, porque os ofende a palavra desdém.

    Falar-lhes-ei, portanto, ao orgulho.

    Falar-lhes-ei do mais desprezível que existe, do último homem.

    E Zaratustra falava assim ao povo:

    "É tempo que o homem tenha um objetivo.

    É tempo que o homem cultive o germe da sua mais elevada esperança.

    O seu solo é ainda bastante rico, mas será pobre, e nele já não poderá medrar nenhuma árvore alta.

    Ai! Aproxima-se o tempo em que o homem já não lançará por sobre o homem a seta do seu ardente desejo e em que as cordas do seu arco já não poderão vibrar.

    Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante.

    Eu vo-lo digo: tendes ainda um caos dentro de vós outros.

    Ai! Aproxima-se o tempo em que o homem já não dará a luz às estrelas; aproxima-se o tempo do mais desprezível dos homens, do que já se não pode desprezar a si mesmo.

    Olhai! Eu vos mostro o último homem.

    Que vem a ser isso de amor, de criação, de ardente desejo, de estrela? — pergunta o último homem, revirando os olhos.

    A terra tornar-se-á então menor, e

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