Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano
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Sobre este e-book
Maria Angélica Peixoto
Maria Angélica Peixoto – Socióloga, Graduada em Ciências Sociais (UFG); Especialista em Aprendizagem e Diferenças (UFG); Especialista em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão (UNB); Mestre em Sociologia(UnB); Doutora em Sociologia (UFG); Professora do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás, Campus Inhumas. Autora do Livro Inclusão ou Exclusão? O Dilema da Educação Especial (Goiânia, Edições Germinal, 2002) e vários capítulos de livros.
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Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano - Maria Angélica Peixoto
APRESENTAÇÃO
Maria Angélica Peixoto
Nildo Viana
O mundo contemporâneo traz a marca do existente em crise e do novo existente em germe, mas ainda-não-existente. Existe uma crise? Na verdade, a crise apenas nos ronda, está esboçada. Sabemos dela pelos sinais que ela nos envia. Os sinais da crise apontam para a necessidade de repensar a sociedade existente, repensar o capitalismo, que, segundo muitos, teria garantido o seu triunfo definitivo e de sua insuperabilidade. Mas pensar hoje o capitalismo significa pensar não só o modo de produção capitalista e seu desenvolvimento, mas também seu cotidiano, sua reprodução, suas contradições, suas minúcias, seus sinais e sintomas. Daí a importância dos artigos aqui presentes, abordando tais elementos e realizando uma avaliação do mundo em que vivemos.
Mas que sinais são estes? Os sinais da crise, que nos ronda, podem ser vistos no processo de produção, de distribuição, de reprodução do capitalismo e no nosso cotidiano. A destruição ambiental em escala nunca vista antes na história da humanidade começa a mostrar seus efeitos nefastos, sendo um dos sinais do qual falamos. Apesar das denúncias da destruição ambiental e dos seus efeitos concretos sobre parte da população, nada se faz para impedir a deterioração geral do meio ambiente, demonstrando que a racionalidade do capitalismo gera a irracionalidade dos seres humanos, isto é, a dinâmica do capitalismo produz seres humanos que realizam sua autodestruição ou deixam que outros o façam sem agir e lutar contra isto. A falta de percepção da realidade, com os seres humanos se refugiando em um mundo imaginário, seja o da virtualidade e das ilusões da informática, seja no mundo das drogas ou das finanças, é apenas outro sinal de uma sociedade que se deteriora ao transformar o artificial em mediação geral das relações sociais, o que faz com que os indivíduos não consigam mais distinguir entre o real e o imaginário, entre a determinação e o determinado. Os desequilíbrios psíquicos (que recebem os nomes da moda, de acordo com a classificação dos especialistas, produtores e reprodutores do mercado consumidor composto pelos portadores de tais problemas, consumidores de remédios, terapias, psicocirurgias etc.) assolam os seres humanos, condenados ao trabalho alienado, ao lazer alienado, ao mundo generalizado da alienação, da burocratização e mercantilização das relações sociais.
Outros sinais estão na nossa frente, basta vermos o crescimento da violência criminal, o aumento da miséria e do desemprego, as dificuldades de reprodução de países capitalistas subordinados, o fortalecimento do extremismo político conservador, e o ressurgimento das buscas de alternativas e do ultraesquerdismo
, a ameaça de guerra, o crescimento de seitas religiosas e do extremismo religioso, a evaporação da estabilidade social, a nova configuração da organização do trabalho e das relações de trabalho marcadas pelo aumento da exploração e uso de métodos secundários de exploração capitalista
, a supremacia do neoliberalismo e da ideologia do mercado enquanto regulador absoluto das relações sociais. Isso tudo pode ser resumido com a percepção da instauração do regime de acumulação integral e da renovação hegemônica que traz o paradigma subjetivista e as ideologias correspondentes como as novas ideias dominantes
. Milhares de outros sinais do tempo poderiam ser colocados, mas bastam estes para se ver que algo está acontecendo e que o resultado deste processo poderá ser o caos ou uma nova sociedade.
Como explicar estes sinais? A psicanálise assume um papel importante para explicar alguns destes sinais. Ela consegue revelar o que muitas ideologias ocultam, inclusive a irracionalidade das ações humanas num mundo destrutivo, ou melhor, autodestrutivo. Assim, os textos aqui presentes apontam para uma melhor compreensão de aspectos do capitalismo e do cotidiano através de um conjunto de artigos e análises que bebem na fonte da psicanálise, através de uma pluralidade de contribuições.
No artigo Universo Psíquico e Reprodução do Capital temos uma análise geral do modo de produção capitalista e seus efeitos sobre a mentalidade dos indivíduos. Já em Normalidade, Excepcionalidade e Capitalismo temos uma concepção que coloca em questão a ideia de normalidade e a produção capitalista de normais
e anormais
, bem como dos efeitos sobre os excepcionais
. Em A Ciência Psiquiátrica e Os Discursos da Contemporaneidade temos a relação instituída entre o discurso capitalista e o discurso psiquiátrico, revelando as fontes da ideologia científica nesta área do saber. Em Crítica ao Gozo Capitalista temos a análise de como o capitalismo cria um gozo artificial, consumista, e a percepção do seu caráter ilusório.
Os demais artigos tratam de temáticas do cotidiano de forma crítica: Psicanálise da Ilusão Eleitoral mostra como o processo eleitoral é marcado por fenômenos psíquicos que escapam da mera explicação racional, pois em sua base se manifestam comportamentos irracionais
ao lado dos racionais; As Novas Formas de Sintoma na Medicina mostra a relação entre medicina e capitalismo, mostrando elementos nem sempre perceptíveis em tal relação; O Significado do Natal mostra a mercantilização do natal e no seu efeito de produção de desejo inautêntico e de pseudestesia coletiva de alegria; O Tempo da Saturação também aborda a questão da mercantilização do natal e o relaciona com o tempo e sua percepção; Psicanálise dos Filmes de Terror busca descobrir a dinâmica de produção destes filmes, relacionando-os com o psiquismo de seus produtores.
Enfim, um conjunto de artigos que nos ajudam a pensar o cotidiano e o capitalismo a partir da contribuição teórica da psicanálise, valendo-se de suas correntes culturalista, lacaniana e freudo-marxista.
UNIVERSO PSÍQUICO E REPRODUÇÃO DO CAPITAL
Nildo Viana
O coração faz revoluções, a cabeça reformas; a cabeça põe as coisas em posição, o coração põe-nas em movimento. Mas só onde existe movimento, efervescência, paixão, sangue, sensibilidade, aí reside também o espírito."
Ludwig Feuerbach
A sociedade capitalista se fundamenta na exploração e alienação de milhões de seres humanos. No entanto, tal sociedade vem se reproduzindo durante séculos. Sem dúvida, existem aqueles que resistem, lutam. As lutas operárias do século 19 e 20 demonstraram que existe um potencial revolucionário adormecido que em momentos de crise despertam. No entanto, a reprodução do capitalismo é o cotidiano, o permanente. Quais são os elementos que permitem a reprodução da dominação do capital? Existem vários elementos, mas aqui iremos destacar o universo psíquico, especialmente a mentalidade, como um dos mais importantes destes elementos. Obviamente que o conceito de mentalidade está relacionado com outros conceitos, tais como o de sociabilidade, pois aqui se trata de pensar a reprodução do capital a partir de uma análise marxista, assimilando a contribuição da psicanálise, o que nos leva a não isolar – o que seria um procedimento ideológico – os aspectos da realidade, que estão inseridos numa totalidade concreta. Assim, iremos analisar a relação entre universo psíquico e reprodução do capital a partir das contribuições de autores como Freud, Fromm, Marcuse, entre outros.
Freud e Marcuse fornecem elementos teóricos que nos ajudam a compreender o universo psíquico. O conceito freudiano de aparelho mental
é fundamental:
Ao longo dos vários estágios da teoria de Freud, o aparelho mental aparece-nos como uma união dinâmica de opostos: do inconsciente e das estruturas conscientes; dos processos primários e secundários; das forças herdadas, ‘constitucionalmente determinadas’, e das adquiridas; da realidade psicossomática e da externa. Essa construção dualista continua a prevalecer mesmo na posterior topologia tripartida do id, ego e superego; os elementos intermediários e ‘sobrepostos’ tendem para os dois pólos. encontram sua mais impressionante expressão nos dois princípios básicos que governam o aparelho mental: o princípio de prazer e o princípio de realidade (MARCUSE, 1988, p. 41-42).
Para Freud, a satisfação das necessidades humanas só pode ser realizada através do controle sobre a natureza. Este controle se realiza por intermédio do trabalho e isto faz com que toda civilização realize uma coerção ao trabalho e a repressão aos instintos. Segundo Freud, expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões
(FREUD, 1978, p. 89).
Portanto, a dicotomia entre princípio de prazer e princípio de realidade surge devido às condições de produção e reprodução da vida material pressionar os indivíduos para que trabalhem e renunciem aos seus instintos. Posteriormente, Freud utiliza os conceitos de id, ego e superego para analisar o aparelho mental. No id residem os instintos orgânicos
de um indivíduo, expressões do instinto de Eros e do instinto de destrutividade