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Contra a miséria neoliberal
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E-book401 páginas8 horas

Contra a miséria neoliberal

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Sobre este e-book

Fala-se constantemente do neoliberalismo, atribuindo-lhe significados muito diferentes uns dos outros, numa espécie de in ação verbal descontrolada. Rubens Casara tem razão em escrever que "o significante 'neoliberalismo' é usado de tantas maneiras que acaba por se tornar uma espécie de conceito 'guarda-chuva', um nome vago e impreciso". Tal imprecisão é uma fonte de erro no diagnóstico e também na resposta política ao fenômeno. Por conseguinte, qualquer trabalho acadêmico que vise de nir rigorosamente o neoliberalismo e colocá-lo de novo no centro da discussão é uma salvação pública. Esse é o caso do livro de Rubens Casara que estás prestes a ler. O autor oferece ao leitor brasileiro uma entrada extremamente clara em toda uma série de análises e pesquisas que compõem o que poderia ser chamado, para usar uma expressão inglesa, neoliberalism studies, que têm se desenvolvido há cerca de vinte anos em nível internacional. Esses estudos permitiram corrigir uma sequência de erros, como o que consiste em identificar o neoliberalismo com uma completa abstenção do Estado na vida econômica e social. O neoliberalismo não é, e nem pode ser, no plano da prática algo "anti-estado", como proclamado por doutrinas que são mais ligadas ao libertarismo do que propriamente neoliberais. É preciso dar ao termo o sentido mais exato que está presente nos trabalhos de pesquisa inspirados pelas intuições de Michel Foucault: de um certo tipo de governo de indivíduos, que, por sua vez, exige um certo exercício de poder por meio de um Estado forte, autoritário, por vezes violento, que visa uma nova articulação entre as esferas pública e privada.
– Christian Laval

Rubens Casara vê a existência humanada, e somente pode concebe-la assim, a partir de uma visão central organizadora que implica liberdade, igualdade e fraternidade.
– Márcio Sotelo Felippe
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de abr. de 2021
ISBN9786587233376
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    Contra a miséria neoliberal - Rubens Casara

    Casara

    PREFÁCIO: LEVAR O NEOBERALISMO A SÉRIO

    Christian Laval¹

    Fala-se constantemente do neoliberalismo, atribuindo-lhe significados muito diferentes uns dos outros, numa espécie de inflação verbal descontrolada. Rubens Casara tem razão em escrever que o significante ‘neoliberalismo’ é usado de tantas maneiras que acaba por se tornar uma espécie de conceito ‘guarda-chuva’, um nome vago e impreciso. Tal imprecisão é uma fonte de erro no diagnóstico e também na resposta política ao fenômeno. Por conseguinte, qualquer trabalho acadêmico que vise definir rigorosamente o neoliberalismo e colocá-lo de novo no centro da discussão é uma salvação pública. Esse é o caso do livro de Rubens Casara que estás prestes a ler. O autor oferece ao leitor brasileiro uma entrada extremamente clara em toda uma série de análises e pesquisas que compõem o que poderia ser chamado, para usar uma expressão inglesa, neoliberalism studies, que têm se desenvolvido há cerca de vinte anos em nível internacional. Esses estudos permitiram corrigir uma série de erros, como o que consiste em identificar o neoliberalismo com uma completa abstenção do Estado na vida econômica e social. O neoliberalismo não é, e nem pode ser, no plano da prática algo antiestado, como proclamado por doutrinas que são mais ligadas ao libertarismo do que propriamente neoliberais. É preciso dar ao termo o sentido mais exato que se encontra presente nos trabalhos de pesquisa inspirados pelas intuições de Michel Foucault: de um certo tipo de governo de indivíduos, que, por sua vez, exige um certo exercício de poder por meio de um Estado forte, autoritário, por vezes violento, que visa uma nova articulação entre as esferas pública e privada. Dizer que esse Estado neoliberal está a serviço da dominação capitalista não é suficiente. A afirmação é demasiado geral e, além disso, não é muito nova. O Estado neoliberal é um instrumento de transformação de toda a sociedade, mesmo em domínios da existência que não estão diretamente implicados na acumulação de capital, como se o seu objetivo final fosse uma transformação global da sociedade de acordo com as normas do mercado e do funcionamento das empresas.

    E é mesmo a metamorfose do ser humano que está em questão com a extensão universal da lógica da concorrência e a identificação de cada indivíduo com um capital que deve ser racionalmente gerido. O núcleo do neoliberalismo é um certo modo de governar as sociedades de acordo com a razão do capital transformada em universal, ou seja, de acordo com a norma da concorrência e a lógica da empresa impostas a todas as atividades e subjetividades.

    Esse núcleo não faz do neoliberalismo uma forma política imóvel. O livro tem outros interesses, como o de sublinhar a plasticidade do neoliberalismo e a sua capacidade de adaptação aos mais variados contextos. Rubens Casara tem fórmulas notáveis. Assim, quando escreve: a racionalidade neoliberal produz ‘novos’ modelos neoliberais compatíveis com as necessidades de cada contexto: neoliberalismo com um verniz democrático, neoliberalismo para Estados laicos, neoliberalismo para fundamentalistas religiosos, neoliberalismo para sociedades conservadoras, neoliberalismo para sociedades autoritárias e, como símbolo de maior engenhosidade, um ‘novo’ neoliberalismo como ‘resposta’ aos problemas gerados pelos ‘velhos’ neoliberalismos. Não se poderia dizer nada melhor na tentativa de compreender as situações muito confusas que encontramos nos Estados Unidos ou no Brasil, que associam métodos autoritários com o conteúdo político mais autenticamente neoliberal. O neoliberalismo pode perfeitamente se acomodar a métodos e a discursos fascistas para se impor contra as forças de esquerda e os sindicatos, e pode ocasionalmente empunhar golpes de Estado, promover mobilizações de massas, incentivar milícias armadas, mesmo que não possa ser inteiramente confundido com o fascismo histórico. O Estado Total de Mussolini não era compatível com uma racionalidade que toma como modelo a empresa privada em situação de concorrência e introduz o cálculo econômico em todas as engrenagens institucionais. Mais do que expor raciocínios de forma analógica, o livro procura captar a originalidade das formas mais contemporâneas de neoliberalismo, que são também as formas mais duras e violentas. Distante de qualquer abordagem essencialista, o método de Rubens Casara consiste em perguntar como funciona o neoliberalismo. Quais forças de sedução imaginária ele mobiliza? Por meio de quais normas ele orienta as práticas? Quais subjetividades ele forma?

    É talvez na terceira parte da obra que nós encontraremos a chave da resiliência do neoliberalismo. É a parte que constitui, a meus olhos, a mais fecunda contribuição para as investigações futuras. Pois a questão política mais fundamental hoje em dia é saber como uma lógica normativa como essa pode continuar a impor-se quando, todos os dias e em todos os planos, vemos e sofremos as suas consequências mais negativas. À ideia tipicamente foucaultiana de uma uniformização de práticas é necessário acrescentar outro esquema interpretativo, que considero mais complementar a ela do que contraditório. Esse outro quadro de análise mobiliza a categoria do imaginário, ao qual Castoriadis inscreveu o seu nome. Eu sou, pessoalmente, muito sensível a essa injunção de Rubens Casara: É preciso levar a sério o imaginário neoliberal.

    De fato, não podemos esquecer que o mundo social e as subjetividades, que são também sociais, são estruturadas por imagens de si, dos outros, da sociedade, da vida em geral, que interagem permanentemente com as práticas. Também é necessário interessar-se de perto, como faz o autor, pelas máquinas produtoras de imagem que naturalizam o mercado, a empresa e o capital. Isso leva Rubens Casara a se interrogar sobre a imago fundamental do neoliberalismo: a ilimitação. O autor não faz disso um simples reflexo da economia capitalista. Esta última precisava, certamente, do imaginário do mundo infinito nos seus primórdios. Mas tal imaginário capitalista permaneceu, durante muito tempo, confinado à economia, foi mesmo confundido com a economia, o que, ademais, permitiu a Marx desenvolver a lei da dinâmica capitalista, esse sempre mais que impulsiona o progresso dos negócios.

    Com o neoliberalismo, a ilimitação está no coração do imaginário produzido pela indústria cultural, pela cultura gerencial e pelo discurso do Estado. Ela se estende a todos os campos da existência, e pretende dar-lhe o seu último sentido. Já não estamos na época em que Freud descobriu, ao mesmo tempo, o narcisismo e as feridas infligidas pela civilização. Agora nós chegamos a uma exaltação da onipotência que os falsos heróis do entretenimento de massas e os modelos de publicidade, para não falar de alguns autocratas vulgares, procuram encarnar. Falar do imaginário neoliberal, portanto, é dizer que as imagens da ilimitação tornaram-se autônomas em relação à economia e jorram continuamente nos receptáculos das subjetividades dos consumidores.

    E é precisamente aí, como o autor insiste no final do seu livro, que se pode vislumbrar um possível para além da ilimitação. O dilema agora é o seguinte: ou a maquinaria de produção do imaginário continua a sua loucura, e será o colapso da humanidade, ou é detida, e a humanidade faz uma bifurcação radical para se dar uma oportunidade de sobreviver. Mas ao preço de que esforço da parte de cada um? E com que apoio? Nada será feito sem uma nova imagem de si próprio, dos outros, da vida: por outras palavras, pensar a alternativa à catástrofe que se avizinha implica a reconstrução de outro imaginário. Assim, é a reflexão e a ação às quais o belo livro de Rubens Casara nos convida, mas talvez, ainda mais, a criação dessas novas imagens da vida e do ser humano que serão necessárias para ultrapassarmos a lógica destrutiva que nos leva ao pior.


    1 Christian Laval (1953) é sociólogo e professor da Universidade de Paris-Nanterre. Especialista nas obras de Jeremy Bentham e Karl Marx, dedica grande parte da sua obra a discutir os enigmas e implicações do neoliberalismo. É membro do grupo de estudos Question Marx e do Centre Bentham, além de pesquisador associado a Fédération Syndicale Unitaire. No Brasil, é conhecido por obras como Comum, a nova razão do mundo e A escola não é uma empresa, todas pela Editora Boitempo, sendo as duas primeiras em colaboração com Pierre Dardot.

    APRESENTAÇÃO

    Márcio Sotelo Felippe²

    1. A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande. Em um ensaio sobre Tolstoi, Isaiah Berlin resgatou esse fragmento do poeta grego arcaico Arquíloco. Pensadores e escritores podem ser ouriços ou raposas. Ouriços, explica Berlin, relacionam tudo a uma noção central, um sistema coerente e articulado, um princípio único, universal e organizador. Raposas buscam diversos fins, geralmente não relacionados, eventualmente contraditórios, sem vínculo a alguma moral específica ou princípio estético. Movem-se em vários níveis e em uma vasta variedade de experiências. Mas não se deve tomar esquematicamente a distinção e nem entendê-la como juízo de valor, já que o ouriço se safa.

    Berlin classifica como ouriços Dante, Platão, Lucrécio, Pascal, Hegel, Dostoievski, Nietzsche, Ibsen, Proust. Como raposas, Heródoto, Aristóteles, Montaigne, Erasmo, Molière, Goethe, Pushkin, Balzac, Joyce.

    Se tomarmos o afresco de Rafael Escola de Atenas, que representa a Academia de Platão, temos uma mostra pictórica da distinção. Platão aponta o dedo para o alto, para um princípio único e organizador da realidade. Aristóteles espalma a mão para baixo, indicando que está ocupado com a multiplicidade de experiências aqui mesmo pela Terra, com os cinco dedos abertos.

    Rousseau e Voltaire, que não aparecem nos exemplos de Berlin, são clássicos ouriço e raposa. A raposa Voltaire criticou a intolerância, defendeu a liberdade, combateu a opressão sem filiar suas causas a um princípio universal, ao contrário de Rousseau. Foi ferino com Rousseau e Leibniz, que eram, ou talvez porque fossem, ouriços. Movia-se quando se deparava com a estupidez e o obscurantismo, mas não se preocupava com a organização da experiência por meio de uma lente. O ouriço Rousseau, apesar de ter sido objeto – melhor seria dizer vítima – de múltiplas e contraditórias interpretações, fundamentava a democracia em uma base filosófica derivada de uma base teológica.

    Seu caminho para ela se iniciava com uma teodiceia, expressão cunhada por Leibniz para o problema de conciliar a perfeição de Deus com a existência do mal no mundo. A solução de Leibniz, para dizê-lo sinteticamente, consistiu em remeter o problema à distância entre a mente humana, limitada e incapaz de alcançar a mente divina, seus desígnios e planos.

    Mas a solução de Rousseau para o problema da teodiceia era mais específica, original e concreta e forjou, em grande parte, a modernidade, que dispensou o fundo teológico. Nunca houve um pecado original, uma natureza humana imperfeita, mas seres que nascem livres, capazes de construir o racional, com o atributo da perfectibilidade, a aptidão para aperfeiçoar-se. O mal decorre do não uso desse atributo, e na gênese disso está a propriedade, a partir da qual surgem as instituições políticas e jurídicas visando assegurá-la, como se vê na segunda parte do Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Portanto, o sujeito da imputabilidade pelo mal era a sociedade. Como afirma Ernst Cassirer, em um texto indispensável para compreender Rousseau (A questão Jean-Jacques Rousseau), todas as lutas sociais dos séculos seguintes têm essa dívida com Rousseau: a de apontar a sociedade como o mal, e não a natureza humana (como decorreria, por exemplo, do pecado original). Sendo o mal social, transforme-se a sociedade. Toda a modernidade é prenhe dessa questão, e cada um de nós está em um lado da fronteira: reformar e revolucionar ou conservar.

    Este fundo teológico contempla uma vontade geral divina, que se expressa em leis necessárias que dão harmonia ao todo. Tudo está bem quando se considera o todo. No particular que não se harmoniza com o todo reside o mal. A vontade geral surge, pois, em Rousseau como resultado da passagem de um conceito teológico e filosófico para o político, como Patrick Riley demonstrou em The general will before Rousseau. The transformation of the divine into the civic.³ Malebranche, teólogo que Rousseau leu e admirava, dizia que Deus estabelece leis gerais e não age no particular, com exceção dos milagres. Uma intervenção específica faria Deus carecer de uma lógica perfeita, que se expressa em leis simples e gerais.

    A vontade geral é o modelo da Criação projetado para a sociedade. Deus não é o estafeta que cuida de nossa valise ou de nossa dor de dente, como Rousseau afirma, satirizando a Igreja na Carta Sobre a Providência e ecoando Malebranche. Nela cuida de absolver Deus pelo terremoto que destruiu Lisboa em 1755. Leis gerais e necessárias da natureza determinaram, desde priscas eras, o terremoto onde um dia Lisboa seria edificada e não eram derrogáveis porque os homens decidiram construir ali uma cidade mal organizada e mal-ajambrada, com seres humanos empilhados em edificações grosseiras. O que responde pelo mal, pelo que de ruim nos acontece, é o humano em sua imperfeita organização social: A maior parte dos nossos males é obra nossa: não foi a natureza quem reuniu em Lisboa vinte mil casas de seis a sete pavimentos. Se, prossegue, os lisboetas estivessem melhor distribuídos, vivessem mais modestamente e se, ao primeiro abalo, cuidassem de se proteger em vez de recolher seus pertences e dinheiro, o dano teria sido menor ou nenhum.

    Tem-se aí a dicotomia geral – particular numa espetacular passagem do teológico para o político e social, um modelo acabado do pensador ouriço que subordina tudo a uma visão central e chave para a existência: a vontade geral, a racionalidade do geral e a racionalidade do particular.

    A vontade geral, tanto como ideia teológica quanto política, é vetusta. Ela já aparece em Platão, no Livro V da República em linguagem distinta. Quando um de nós recebe uma pancada no dedo, a comunidade do corpo e da alma, submetida ao comando unificador da parte da alma que a dirige, sente o traumatismo e se associa à dor do local ofendido, motivo de dizermos que o homem sente dor no dedo. Da mesma forma a cidade organizada, afirma Platão, sempre que acontecer algo de bom ou mau para qualquer cidadão, dirá, antes de mais nada, que o fato se passou com ela e se alegrará ou sofrerá juntamente com o cidadão.

    Podemos encontrá-la em Paulo, na Segunda epístola aos coríntios. O corpo é um todo contendo muitos membros. Se o pé dissesse: eu não sou a mão, por isso não sou do corpo, acaso ele deixaria de ser do corpo? Há muitos membros, mas o corpo é um só. Patrick Riley, na obra citada, nota que Pascal faz da passagem um texto político: é necessário tender ao geral: o amor de si é o princípio de toda desordem, na guerra, política, economia, no corpo particular do homem.

    As noções kantianas de heteronomia e autonomia compreendem a dicotomia geral – particular. O uso pleno da racionalidade, que afasta a heteronomia e, portanto, o particular, conduz à autonomia, e esta ao geral. No véu de ignorância de John Rawls, de fundamentação kantiana, a autonomia é alcançada pelo recurso do esquecimento do particular. O desconhecimento das partes de sua situação na sociedade, talentos, habilidades etc., possibilitaria o acordo sobre regras de justiça e nesse acordo a desigualdade somente se admitiria quando favorecesse o menos privilegiado. O particular é esquecido, mas apenas para reaparecer em seguida em toda plenitude, formulação de Rawls que influiu em políticas de cotas nos Estados Unidos. Assim, a racionalidade do geral implica necessariamente contemplar o particular.

    Notará o leitor que, nesta síntese, todos os filósofos e pensadores citados são ouriços. Platão, Paulo, Pascal, Rousseau, Rawls. Todos recorrem a um princípio único, universal e organizador: construir a solidariedade, a harmonia entre o todo e a parte, sob pena de opressão e injustiça. Na metáfora do dedo, Platão, crítico da democracia ateniense, diz o que, afinal, entendemos hoje por democracia: quando algo de bom ou ruim acontece ao cidadão, a cidade organizada desse modo dirá, antes de mais nada, que o fato se passou com ela e se alegrará ou sofrerá juntamente com o cidadão. São ouriços porque, ao privilegiarem filosoficamente as categorias todo e parte, veem o sentido da existência humana pela lente da solidariedade.

    2. Rubens Casara descende dessa ilustre genealogia de ouriços porque, tal como eles, vê a existência a partir de uma visão central e organizadora. Ao deter-se na pesquisa e reflexão sobre a racionalidade neoliberal, operou na esfera de um aggiornamento da questão ética da relação do todo com a parte, de que cada um deles, a seu modo, também se ocupou. A racionalidade neoliberal é a expressão perfeita e acabada da parte indiferente ou, perversamente, hostil à totalidade, como quando se aproxima do fascismo. O uso específico das categorias todo e parte, explicitando a questão ética da solidariedade, vai além da preocupação com a injustiça. Aquela abarca esta, mas nem sempre o contrário é verdadeiro porque pode-se reivindicar justiça para si e não em si, incondicionalmente. Quando a solidariedade é posta no centro não há suspeita de contaminação.

    Casara se ocupa persistentemente da democracia, nesta e em outras obras, do seu desvanecimento sob a hegemonia do neoliberalismo atendendo à essência do conceito de democracia. A democracia se diz de muitas maneiras, e muito frequentemente quem a diz não a compreende, o que leva a confundir traços, características e atributos com o núcleo do conceito. Mas Casara é ouriço porque sabe essa coisa grande, a essência do conceito de democracia, e essa essência é para ele o princípio central e organizador do que deve ser a existência humana: a solidariedade social. O que o impulsiona é ver que a racionalidade que ameaça tornar-se hegemônica, a do neoliberalismo, atinge fundamentalmente esse valor. O neoliberalismo é a racionalidade que se propôs atrevidamente a eliminar de nossa consciência o todo para que nela somente viceje a parte, fragmentada, caótica.

    Assim, explica Casara, o mercado passa a ser o modelo para todas as relações sociais. A racionalidade neoliberal separa os desejáveis e os indesejáveis. Leva o indivíduo a acreditar que, atomizadamente, pode realizar sua própria felicidade. Rejeita princípios, políticas, sujeitos e instituições da democracia compreendidas como governo pelo povo. A democracia é um problema para os neoliberais porque ela significa exatamente o oposto disso. A racionalidade neoliberal não seria apenas uma cisão da racionalidade do indivíduo. Pretende-se absoluta, extirpar da consciência o todo visando acumulação, apropriação de renda e patrimônio, exclusão da maior parte da humanidade do acesso ao bem-estar material e à realização espiritual.

    Não encontrará o leitor dados, números e estatísticas (com exceção de uma breve passagem) nesta obra de Casara. A ênfase é a moralidade das relações sociais. A condenação do individualismo, do egoísmo, da fragmentação do social, a crítica à brutalidade da ideia, certa vez expressada por Margaret Thatcher, de que não existe sociedade, mas indivíduos e interesses, exatamente o oposto da categoria que é a essência da democracia.

    Rubens Casara vê a existência humana, e somente pode concebê-la assim, a partir de uma visão central organizadora que implica liberdade, igualdade e fraternidade. Ou, em apenas uma expressão: solidariedade social, a relação harmônica entre todo e parte, a categoria que é a essência da democracia. Rubens Casara sabe uma coisa grande: sem solidariedade não há sentido para a existência humana.


    2 Márcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de procurador-geral do Estado de 1995 a 2000. Publicou Razão jurídica e dignidade humana (1996) e foi diretor da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de 2007 a 2009, oportunidade em que elaborou o projeto pedagógico e implantou o curso de pós-graduação lato sensu em direitos humanos.

    3 Princeton: Princeton University Press, 1986.

    INTRODUÇÃO:

    UM NOVO MAL-ESTAR

    Naturaliza-se o absurdo, mesmo quando o horror parece estar perto demais. Diante de tanto sofrimento evitável, constata-se uma inércia que, em princípio, soa incompreensível. O caos parece reinar em meio à crença generalizada de que não existem alternativas. As pessoas, mesmo percebendo que há algo de errado, não sabem como agir para fazer diferente. Aliás, parecem ignorar que é possível fazer diferente.

    Enquanto isso, o indivíduo sente-se autorizado a deixar-se levar pela corrente em busca da felicidade possível: a mercadoria que pode ser adquirida, a derrota dos adversários e a obtenção de lucro, custe o que custar. A ilimitação tornou-se a regra: instaurou-se uma espécie de vale-tudo, no qual tudo e todos podem ser negociados ou destruídos.

    O mercado, por sua vez, é apresentado como o espaço da virtude e o modelo ideal para todas as relações sociais, inclusive as amorosas e familiares. A única postura racional e aceitável é aquela direcionada à obtenção de alguma forma de lucro. Desaparecem os laços intersubjetivos: o outro passa a ser visto como um concorrente que precisa ser destruído ou um objeto que pode ser usado e descartado.

    Hoje, as ideias de democracia e de povo são encaradas com desconfiança. Os limites democráticos (em especial os direitos e as garantias fundamentais) são tidos como obstáculos à eficiência do Estado ou à satisfação dos interesses egoísticos dos indivíduos (inclusive a manutenção de privilégios e a separação espacial das classes sociais). A imagem do povo, uma coletividade tendencialmente solidária, é substituída pela de indivíduos-empresas em concorrência. Com isso, desaparece a solidariedade e criam-se novos adversários e inimigos. Diante desse quadro, uma velha pergunta insiste em voltar: o que fazer?

    A proposta deste livro é fornecer elementos que permitam compreender o modo de pensar e agir que nos levou até aqui. Compreender para poder agir e romper a inércia. A angústia e o caos são, em grande medida, o resultado da ausência de reflexão. É preciso, então, insistir em confrontar com lucidez as exigências do presente e criar alternativas. Para tanto, é necessário identificar a racionalidade, a normatividade e o imaginário que levam aos novos autoritarismos, às novas formas de opressão, às novas justificativas para a desigualdade, às novas patologias sociais e às novas subjetividades.

    Os fatos, que normalmente são apresentados pelos detentores do poder político e do poder econômico de forma isolada, na tentativa de fragmentar a realidade para torná-la incompreensível, são encadeados a outros fatos e fazem parte de projetos que precisam ser compreendidos. Abdicar de perceber como uma determinada racionalidade condiciona os imaginários e a normatividade, significa naturalizar as diversas opressões e as novas formas de dominação, bem como aceitar ser tratado como gado pelos donos do poder.

    A ilimitação capitalista é incompatível com a finitude dos recursos naturais. A desconfiança e o ódio gerados pela lógica da concorrência acabam por contaminar as relações humanas. Impõe-se, então, uma verdadeira ruptura com o atual modo hegemônico de ver e atuar em relação ao mundo, às coisas e às pessoas.

    A crise global, sanitária e social provocada pela Covid-19 em 2020 revelou as consequências das políticas econômicas neoliberais das décadas anteriores sobre os corpos vivos. A opção política e ideológica por processos de privatização e desmantelamento dos sistemas nacionais de cuidado e atenção à saúde produziu mortes e potencializou o sofrimento da população. A aproximação entre neoliberalismo e necropolítica tornou-se ainda mais evidente.

    O modo neoliberal de compreender e de atuar no mundo passa necessariamente por decisões que autorizam a morte. Porém, grande parte da população permanece sem compreender a relação entre o crescimento do número de mortos e as opções políticas condicionadas pelo neoliberalismo. Isso porque foi construída uma espécie de véu sobre os mecanismos de sociabilidade, de produção e de reprodução do capital e da vida, bem como sobre as opções políticas neoliberais, que passaram a ser vistos como naturais e inevitáveis.

    Tanto as vítimas de violência policial quanto os pacientes sem tratamento adequado nos hospitais públicos são também efeitos de uma determinada racionalidade, que produz uma rede de poder que extrapola os limites legais e faz com que parcela da população passe a ser etiquetada de matável. A racionalidade, hoje hegemônica, busca o lucro sobre os corpos, os mortos, as crises, os desastres, as pandemias etc.

    A crise sanitária, econômica e social global de 2020, porém, abre um horizonte de possibilidades. A palavra crise (krísis), aliás, aparece na Grécia como um termo médico para designar o momento decisivo em que se define se um paciente doente vai morrer ou, a partir da própria doença, se curar. Diante de cada crise, que sempre é a consequência de um determinado modo de ver e atuar no mundo, diversos caminhos e possibilidades se abrem. Pode-se, por exemplo, insistir em fazer do Estado um instrumento a serviço do mercado e dos detentores do poder econômico, prestando auxílio financeiro a empresários e a instituições financeiras, restringindo a liberdade dos cidadãos em nome do medo da contaminação, eliminando os espaços de intimidade, reduzindo a liberdade das pessoas e aumentando o controle biopolítico sobre a população. Mas, diante de um quadro de crise, também se pode construir saídas novas e originais, revolucionárias, a partir da construção coletiva de um outro modo de ver e atuar no mundo.

    A premissa deste livro é a de que é preciso apostar em uma verdadeira revolução, e, para tanto, será necessário deixar de olhar o presente com os olhos do passado a partir de ideias, imagens e normas que atendem, prioritariamente, aos interesses dos detentores do poder econômico.

    É a percepção do absurdo e da injustiça que leva à ação e permite transformar o mundo. Por isso, é necessário, antes de tudo, buscar perceber e compreender o que está acontecendo, em favor de quem o poder é exercido, quais são os valores em disputa, quem está lucrando com o caos, o que é escondido da população, como funciona atualmente o sistema de exploração etc.

    O objetivo deste ensaio, portanto, é ajudar no desvelamento e na compreensão desse modo de ver e atuar no mundo que levou à naturalização do absurdo. Mas não só. Busca-se, ainda, fornecer nas próximas páginas algumas informações que serão úteis à transformação necessária e urgente do Estado, da sociedade e do indivíduo. Para tanto, procurou-se explicar a racionalidade, a normatividade e o imaginário que são responsáveis pelo sofrimento, pela desigualdade e pelo extermínio de parcela da população. Compreender como chegamos até o fim do poço, portanto, é condição para se revoltar, agir, inventar novas vias, criar um novo imaginário e produzir novas práticas, pois já não há mais tempo a perder: a manutenção desse quadro levará à destruição da natureza e da humanidade.

    1. RACIONALIDADE

    NEOLIBERAL

    1.1. Racionalidade e poder: o que pode?

    Em 1799, o pintor espanhol Francisco de Goya produziu uma gravura a que deu o nome de O sono da razão produz monstros. Trata-se de uma representação do artista dormindo, prestes a ser invadido por criaturas noturnas e perigosas (morcegos, linces etc.). A imagem, tipicamente iluminista, anuncia os riscos de se afastar da razão. Infelizmente, e em que pese o otimista presente nessa obra de Goya, manter-se acordado não é suficiente para evitar a produção de monstros. Por vezes, as criaturas perigosas e o horror surgem, justamente, do excesso de razão, como demonstra a experiência nazista. E isso só é possível porque existe uma relação necessária (e condicionante) entre o poder e a racionalidade.

    A ausência de limites e o abuso de poder também atendem a uma racionalidade. Em outras palavras, todo poder é exercido a partir de um determinado modo de compreender o mundo. É fundamental, portanto, buscar compreender a relação entre a forma como o poder é exercido e o modo de ver e atuar no mundo que prevalece em um determinado contexto. A maneira como o poder atinge o corpo de uma pessoa ou produz uma mudança na realidade depende sempre de um modo específico, que se pretende racional e aceitável, de se relacionar com o mundo. Tanto o poder sobre a vida exercido por um oficial nazista como Adolf Eichmann quanto a mais singela manifestação de poder em um regime formalmente democrático (o poder exercido, por exemplo, pelo guarda da esquina) estão condicionados por uma racionalidade, um modo de entender o mundo que permite, por exemplo, que o mal seja transformado em algo banal ou que o uso da violência seja percebido como algo legítimo.

    O exemplo da racionalidade que permitiu o surgimento do movimento nacional-socialista, que, como se verá, apresenta várias semelhanças com a racionalidade que hoje é hegemônica, pode ser útil para explicar a relação entre, de um lado, um determinado modo de pensar e atuar no mundo e, de outro, o exercício concreto do poder.

    A racionalidade nazista, que começou a se destacar na década de vinte do século passado na Alemanha, levou a uma nova visão de mundo a partir de uma espécie de revolução cultural.⁴ Com ela, algumas práticas, antes tidas por inaceitáveis e interditadas (como o assassinato de crianças, idosos e doentes), passaram a ser admitidas e justificadas. Em outras palavras, uma nova racionalidade produz uma mutação de sentido, de cultura e de norma. Cada racionalidade, portanto, estabelece os novos limites do aceitável e a esfera do absurdo.

    Para muitos o nazismo representa a falta de sentido. Várias das vítimas da violência nazista morreram atordoadas pela falta de sentido e pelo

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