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Tempo de Tarumã
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E-book251 páginas

Tempo de Tarumã

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Sobre este e-book

O livro conta a saga de um jovem que, mesmo tendo praticado um ato ilícito – matou o prefeito da cidade – teve a oportunidade de reconstruir sua vida, através da travessia do cerrado e da construção de uma grande fazenda em Goiás. O romance reproduz com primor a vegetação, o crescimento de uma fazenda, a alimentação, as festas, as canções, os hábitos típicos da região e da época em que se passa a história.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de mar. de 2022
ISBN9788588642836
Tempo de Tarumã

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    Tempo de Tarumã - Tarciso Filgueiras

    Folha de Rosto

    Tarciso S. Filgueiras

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    Créditos

    Copyright © by Tarciso S. Filgueiras

    Capa e projeto gráfico

    Alexandre Brum

    Revisão

    Andréa D. Moreira

    CIP-Brasil. Catalogação na fonte

    Sindicato Nacional das Editoras de Livros, RJ

    F512t

    Filgueiras, Tarciso S., 1950

         Tempo de Tarumã / Tarciso S. Filgueiras. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2011. 234p.

         Contém glossário

         ISBN 978-85-88642-33-1

         1. Romance brasileiro. I. Título.

    [2011]

    Todos os direitos desta edição estão reservados à

    Outras Letras Editora Ltda.

    Rio de Janeiro, RJ

    Tel./Fax: (21) 2267-6627

    outrasletras@outrasletras.com.br

    www.outrasletras.com.br

    Prefácio

    Livro como este Tempo de Tarumã colabora para formar a verdadeira História do Brasil, que são as crônicas dos escritores regionais, segundo o escritor-diplomata Mário Palmério, autor dos famosos romances, Vila dos Confins e No chapadão do Bugre.

    Pela riqueza das narrativas efusivas do escritor, Tempo de Tarumã é um manual do fazendeiro, uma epopéia de uma comunidade que se forma, com personagens tenazes, cada um desenvolvendo o seu papel. Registro histórico dos desbravadores de sertão, dos fazedores de cidades, infelizmente, quase sempre contra a prepotência do coronelismo ajagunçado. Para quem tem o calcanhar enterrado na roça este livro cai nostalgicamente na alma. A fiel descrição dos personagens e dos acontecimentos nos lugares certos, narradas em Português correto, fugindo do insólito caipirismo, coloca o leitor em meio às cenas artificialmente construídas. É raro, principalmente nos tempos de hoje, um autor assim conciso, verdadeiro em suas descrições, seus depoimentos, embora ficcionais. Não comete pecados gramaticais que tanto desmerecem obras literárias. A temática é sertaneja, familiar, quase histórica. Vocabulário rico e adequado às situações e no falar dos personagens. Escritor que sabe coordenar capítulos com narrativas quentes, vivas. Não há frases frias. Elas levam o leitor a virar página por página, sempre interessado em ver o que vem pela frente, a narrativa que segue lenta e segura como o nostálgico andar cantado do carro-de-bois.

    Este livro tem um grande valor tanto para as pessoas saudosas que emigraram quanto para as que ainda moram na região rural, já que o livro é um relato de suas vidas. O autor consegue levar o leitor a um passado muito importante para as pessoas que trouxeram a cultura hereditária rural, trocando-a para a cultura de cidade, mormente cidade grande, onde tudo muda, menos as raízes. Relembrar é viver. A primeira escola, as festas religiosas e as festanças nas fazendas, sem malícia, de inocência e pureza, onde, muitas vezes, nascem e crescem verdadeiros amores, que levam até ao casamento.

    O autor aborda, também, com muita propriedade, por exemplo, o problema infalível à época das colheitas, quando os pais tiram os filhos da escola para o trabalho auxiliar da roça.

    E como há males que vêm para o bem, se Belmiro não fosse um refugiado criminoso, talvez a Fazenda Tarumã não existisse e não fosse tão próspera.

    É, ainda, o autor, atualizado no tocante à temática poética, que hoje a poesia tem mais sentido para emoldurar textos, e o escritor fez bem nas principais ocasiões em que a prosa requereu beleza poética para ser enfeitada, como: Os buritis balançavam suas bandeiras verdes saudando o dia que findava. Araras, papagaios e periquitos retornavam a seus ninhos nas frondes das palmeiras, nas locas dos barrancos e no oco dos paus. A natureza se recolhia. Sentindo uma primeira friagem na brisa noturna, Salina puxou o marido para dentro da casa. Na cozinha, o fogo crepitava mansamente. E mais: A tarde caia lentamente com preguiça de abandonar aquela paisagem iluminada. O céu mudava de cores à medida que o dia declinava. O pôr do sol se avizinhava com um furor de cores incandescentes que lembrava a boca ardente de uma fornalha em brasa viva. O mato alto dos dois lados da estradinha ocultava uma natureza ainda bravia, generosa, cheia de surpresas. A floração do pau-do-tucano e da gomeira salpicava de amarelo a paisagem dominada por tons de verde e prata.

    Tarciso Filgueiras é escritor e é poeta, e sabe muito bem onde entremear, inserir poesia ambientalista nos textos.

              Maktub!

    Bariani Ortencio,

    escritor e folclorista

    Nota do autor

    Trechos de algumas histórias relatadas neste livro circulam, oralmente, há décadas, entre membros de minha família. Não as usei da mesma forma como foram ouvidas. Porém, retirei delas o essencial e as utilizei em um contexto totalmente distinto do original.

    As letras das canções que aparecem no texto são de autores desconhecidos. No entanto, todas elas, sem exceção, eram cantadas pela minha mãe, dona Sinhá. Seguramente, são composições bastante antigas. Algumas já eram cantadas pelos meus avós maternos, que viveram na segunda metade do século XIX.

    Optei por colocar o glossário no início do livro para que o leitor ou a leitora se familiarize mais rapidamente com os termos tipicamente usados no período (entre 1930-1950) e no lugar (Goiás) onde se passa esta história.

    Glossário

    Certas palavras e expressões que aparecem neste livro não foram dicionarizadas. Algumas são corruptelas de palavras conhecidas, enquanto outras representam arcaísmos que foram preservados nas canções e na linguagem de certas populações rurais do Brasil Central.

    Embora não apareçam nos dicionários mais conhecidos no país, certos termos constam do Dicionário do Brasil Central, de Bariani Ortencio, que escreve a apresentação deste livro.[1]

    Apresenta-se aqui uma breve explicação do significado desses termos e expressões, no contexto do livro.

    Ajofar: espumar, fazer espuma.

    Alembrar, alevantar, amelhorar, arrepetir: formas arcaicas dos verbos lembrar, levantar, melhorar, repetir, respectivamente.

    Arrecursado: forma arcaica para recursado, que tem recursos, próspero.

    Bateção: variação de batição. Ato de bater. Por extensão, ato de bater com foice ou qualquer outro objeto.

    Bichim: contração familiar de bichinho.

    Breado: sujo.

    Brocador: que broca, que corta.

    Cabeça-inchada: paixão, geralmente não correspondida.

    Calumbi: arbusto ou pequena árvore da família das leguminosas.

    Cariá: denominação popular, familiar, de diabo.

    Cascudo: um tipo de peixe de água doce.

    Congestã: forma contraída de congestão.

    Contravapor: tabefe, tapa.

    Corrutela: pequeno povoado. Às vezes grafado como currutela.

    Coxonil: variação de coxonilho. Manta usada para forrar selas e outros assentos.

    Curralama: coletivo de curral.

    Diá: abreviação familiar de diabo.

    Dintirinzim: contração de dia inteirinhozinho, isto é, o dia inteiro, completo.

    Feme: corruptela de fêmea. A variação fema também ocorre.

    Gadama: coletivo de gado.

    Gengibirra: bebida adocicada, não alcoólica, levemente fermentada, à base de gengibre. No momento de ser servida, adiciona-se pequena quantidade de bicarbonato de sódio, o que faz com que a bebida produza espuma (cf. ajofar).

    Gibeira: corruptela de algibeira, isto é, bolso.

    Imbigo: corruptela de umbigo.

    Lenharia: depósito de lenha, para comercialização.

    Lobó: espécie de bagre pequeno.

    Lutrido: afoito, atrevido, desinibido.

    Maduro: bebida adocicada, não alcoólica, à base de garapa de cana, levemente fermentada. No momento de ser servida, adiciona-se pequena quantidade de bicarbonato de sódio, o que faz com que a bebida produza espuma (cf. ajofar).

    Mojar (mojando): ficar prenhe, prenha.

    Munha: restos de vagem de feijão, depois da bateção; fragmentos ou resíduos de partes vegetais secas.

    Orobó: ânus.

    Pandu: forma contraída de pandulho, barriga, estômago.

    Pé-de-pano: indivíduo que se locomove sem fazer barulho (como se tivesse os pés envoltos em panos). Por extensão, pode referir-se, também, aos amantes que penetram, sorrateiramente, nos aposentos das amantes, sem que ninguém os perceba.

    Peloco: pelado, sem penas.

    Peteco: confusão, desorganização.

    Pilungo: homem fisicamente robusto, atarracado.

    Pisquila: pequeno, de tamanho reduzido.

    Ponga: transporte gratuito, carona.

    Previde: placenta e estruturas anexas dos frutos peponídeos (abóboras, por exemplo), isto é, o miolo.

    Pucim da Vertude: corruptela de Pocinho da Virtude, isto é, um poço cujas águas têm propriedades virtuosas, curativas.

    Purubefu: exclamação arcaica que exprime alegria, regozijo, surpresa. Reboleira: capão de mata, de forma arredondada, que se destaca na paisagem do cerrado.

    Rual: forma arcaica para rua, ajuntamento de casas.

    Suã: coluna vertebral do porco.

    Tetê-lê-lê: lengalenga, conversa fiada.

    Trem: qualquer substantivo, concreto ou abstrato.

    Trenheira: coletivo de trem (cf. trem).

    Trinchete: instrumento antigo, semelhante a uma faca, usado por sapateiros. No meio rural, era usado para castrar animais. Por extensão, facão, faca, canivete.

    Tubi: forma familiar para ânus.

    Tucura: gado de má qualidade, feio.

    Vertude: forma arcaica e variante de virtude.

    Biritiba

    Naquela hora da tarde, o calor estava tão forte que não dava para ficar dentro da lojinha. Balaio era um armarinho de uma porta só que Belmiro recebera quase como dote por ter se casado com Divina, a filha única do seu Alves, o dono original da loja de miudezas. Como

    o movimento na tarde quente era quase nulo, ele resolveu puxar uma cadeira e se sentar na calçada para aproveitar a fresca que, de vez em quando, corria lá fora.

    Sentou-se na cadeira, mãos atrás da cabeça, espaldar precariamente encostado na parede. Deitou a olhar a rua, de alto a baixo. Não via nada, nada acontecia. Dava para ouvir cachorro latindo, crianças chorando em algum lugar, mulheres ralhando com alguém, mas ninguém nas ruas. Pachorra geral. De repente, ao olhar para os lados da praça da igreja, viu o vulto de uma mulher que subia a rua. Andava devagar, compassadamente. Apurou a vista e antes que seus olhos enxergassem direito, seu coração lhe segredou que era ela. Aquele jeito de andar, certo gingado, aquela sombrinha azul ferrete... Só podia ser ela. Sianinha!

    Eles haviam sido namorados antes de Belmiro se casar. Mesmo apaixonada, ela não teve coragem de enfrentar o pai porque o jovem era pobre e tinha frequentado a escola apenas o tempo suficiente para aprender a ler uma carta e a escrever outra. Conta era fácil para ele, fazia tudo de cabeça. A seu favor, Belmiro tinha um sorriso cativante, boa altura, pele morena, cabelos encaracolados, corpo bem-feito e olhos verdes, cristalinos, como de um gato. Já ela, além de bonita, estudava no colégio das freiras, tinha pai fazendeiro, dono de cartório e de muitas terras. Para afastar os dois, o fazendeiro mandou a moça estudar na Escola Normal de Goiabeiras, a mais de 30 léguas de Biritiba. Isso foi suficiente para esfriar o namoro, pelo menos da parte dele, que era sempre muito procurado pelas moças. Sianinha continuou interessada, mas não a ponto de romper com a família por causa dele. Ela queria ser cortejada, idolatrada e desejada por aquele bonitão, mas casar e morar em uma casinha no quintal da casa dos pais dele não estava em seus planos.

    Se para ela a questão ainda estava pendente, para ele a vida continuava. Apareceu a Divina, que não era lá essa lindeza toda, mas era asseada, caprichosa, o adorava, e, acima de tudo, tinha um pai que prometera ajudar o jovem casal. Negócio fechado. Além da noiva, seu Alves forneceu casa, mobília e o Balaio, com tudo dentro, como meio de ganharem a vida. Pronto. Ele casou e se acomodou. Logo, o danado se viu pai de dois filhos. Nesses dois anos, tinha ficado até mais forte e bonitão...

    Durante esse período todo, Belmiro e Sianinha se viram apenas de longe, e nunca tinham se falado novamente. Agora ele precisava falar com ela, para ver se ela ainda se lembrava dele, se o queria como antes. Quando teve certeza de que era ela quem subia a rua, sozinha, ficou de pé, em frente à loja, para se mostrar como macho vigoroso. Notou que ela levantara a vista, ficara fascinada pela visão, mas continuou seu caminhado faceiro, sem pressa.

    Assim que ela se aproximou o suficiente para ouvi-lo, ele deu dois passos, abriu os braços e declarou com todo entusiasmo:

    Meu Deus, Sianinha, como você está bonita! Parece uma flor, com essa cara rosada! Entra um pouquinho pra gente conversar!

    Olá, Miro, você também está jeitoso... Parece até que encorpou mais! Só não vou entrar porque o povo pode ver e começar um falatório! Tenho medo...

    Bobagem, menina! Agora não tem ninguém na rua! Pode olhar, todo mundo dentro das casas. Entra um instantinho...

    Ela relutou um momento, mas, fascinada pelo antigo namorado que lhe parecia mais sedutor que antes, olhou para cima e para baixo, fechou a sombrinha azul e entrou de fininho na loja. No fundo, queria também testar se ainda exercia sobre ele o mesmo fascínio dos tempos de namoro. O perfume dela recendeu, enchendo todo o ambiente. Belmiro ficou meio zonzo, relembrando os beijos que ele nunca esquecera. Ela estava simplesmente irresistível.

    Sianinha, você está parecendo uma pitanga madura!

    Miro...

    – É verdade! Uma pitanga vermelha, pronta pra ser colhida e desfrutada!

    – Miro, para! Assim eu fico sem graça!

    Ele tentou dar um abraço de namorado, mas ela se esquivou dizendo que agora tudo tinha mudado. Ele era um homem casado, pai de dois meninos e, entre eles, não poderia haver mais nada. Nem amizade, para ser sincera!

    Subitamente, tomado de uma emoção totalmente inesperada que parecia acima de sua vontade, ele a agarrou e a beijou à força. Sem saber direito o que fazia, ele a segurava possessivamente, apalpava, beijava. Ela dizia que não, não queria, ele era casado. Mas Belmiro não ouvia. Agarrando-a pela cintura, fina e sedutora, começou a arrastá-la para o interior da loja. Ao mesmo tempo em que fazia isso, dizia que gostava dela, que podia deixar a Divina e os meninos, e que somente ela, Sianinha, o interessava. Ela dizia que não, que não e, dando um último safanão no peito dele, escapuliu, saiu correndo da loja, tropeçando no armário e deixando a sombrinha caída no chão, como testemunha de sua fuga.

    Sianinha subiu a rua correndo, humilhada, aos prantos. Entrou em casa aos berros, chamando a atenção de todo mundo. A mãe acudiu, quis saber o que era, mandou chamar o pai que fazia a sesta.

    Com olhos vermelhos, entre muitos soluços e berros, ela relatou aos pais, com cores bem vivas, o que sucedera, tendo o cuidado de omitir, porém, o seu consentimento inicial. As irmãs revoltadas, desesperadas, choravam. A mãe, esta nem se fala, perdeu a voz e ameaçou desmaiar. Foi acudida com algodão embebido em alcanfor e voltou a si para nova sessão de choros e xingamentos. Feições transtornadas. Nessa barafunda toda, apenas o pai nada dizia, batia a palma das mãos ora nos joelhos ora nas próprias nádegas, em sinal de profunda indignação. A casa era um burburinho só. As empregadas em alvoroço total. Chás de capim-santo, erva-cidreira e sabugueiro foram trazidos às pressas para acalmar a mulherada. Alguém mencionou arnica no álcool, mas ninguém quis. Os punhos fechados do pai só significam uma única coisa: aquilo não podia ficar assim. O acontecido era grave e exigia providências, urgentes!

    Perto das seis da tarde, Belmiro achou que deveria fechar o Balaio e ir para casa. Lá, ao rever a mulher e os meninos, queria esquecer esse desassossego infeliz com a Sianinha. Coisa mais sem graça a reação dela. Era sempre tão amorosa com ele!

    – Mulher tem cada coisa...

    Enquanto puxava as duas bandas da porta para trancar e depois reforçar com o cadeado, notou a inesperada presença de seu Camargo, bem perto dele. Perfilado, como se fosse presidir uma sessão solene na prefeitura. Sem entender nada, Belmiro olhou mais detidamente. Foi nesse instante que ele descobriu três pilungos que acompanhavam o pai de Sianinha. Os três armados, dois deles com cassetetes. Belmiro nem teve tempo de se virar. Sentiu, inicialmente, uma pancada desgraçada na cabeça que o fez cambalear. Depois, chutes, pontapés, coronhadas e golpes de cassetetes por todo o corpo: cabeça, tronco e membros. Apesar da dor, ouvia distintamente o que eles diziam:

    – Isso é pra você aprender a respeitar moça de família, seu ban-dido, desgraçado, safado! Dessa vez você aprende a respeitar a filha dos outros, descarado! – Pá, pá, pá! Tum, tum, tum! Tá, tá, tá!

    Seu sem-vergonha, safado, cretino, tarado de uma figa!

    Ser desprezível, energúmeno, maldito!

    Este era o pai, dono do cartório, de pé, ereto, bradando com todos os pulmões, enquanto batia, nervosamente, a ponta da bengala no chão, porém sem tocar um dedo no energúmeno.

    Muitas pessoas saíram à porta das casas e olhavam a cena, horrorizadas. Ninguém esboçou o menor gesto em defesa do Belmiro. Todos sabiam que quem estava batendo tinha poder para bater. E quem interferisse pagaria caro. Quem espancava o pobre do Belmiro era, simplesmente, um dos homens mais ricos da cidade e, além disso, o atual prefeito, ou seja, a otoridade em plena função de seus direitos.

    Depois de uns quinze minutos de pancadaria, saíram pisando duro, sem nem olhar para trás. Encolhido na calçada, Belmiro mal conseguia respirar de tanta dor e humilhação. Apanhara feio e à vista de todos. Estava tão mal que achou que iria morrer ali mesmo. E ninguém aparecia para dar qualquer ajuda. Depois de uns dez minutos, ele começou a se mexer e, aos poucos, levantou-se, sentindo dores atrozes. Parece que tinham lhe quebrado alguma costela, pois não podia respirar direito. Mesmo assim, conseguiu trancar a loja e começou a andar cambaleante, cabeça baixa, abraçando o próprio tronco, rumo a casa.

    Andou devagar, sofridamente. Alguns passantes olhavam para aquela figura que se arrastava. Murmuravam alguma coisa, mas ele nada ouvia. Seguia lenta e dolorosamente. Quando avistou a casinha onde morava, avistou também a Divina e os dois moleques agarrados à saia dela. Os três pareciam anestesiados junto ao portãozinho de madeira. Estava claro que já sabiam de tudo. Em lugar pequeno, notícia ruim não corre, voa.

    A mulher abriu a cancelinha, ele entrou de cabeça baixa, evitando o contato revelador do olhar. Cara deformada pelo inchaço, manchas de sangue espalhadas pela cabeça, costas e pernas. Os moleques, apavorados e ainda agarrados à mãe, choramingavam. Ele não disse nada, ela nada perguntou. Foi direto para o quarto e se deitou, encolhido, parecendo não existir. Pouco depois, ela apareceu com uma baciinha de alumínio com água morna e, delicadamente, começou a lavar as feridas e passar algodão embebido em cachaça com arnica, em soturno silêncio. Os meninos tinham sumido, encorujados num canto da sala. Enquanto ela fazia tudo isso, ele, dentes cerrados, não soltava um único gemido. O efeito somado da pinga com arnica cortava como navalha de lâmina rombuda, mas ele não reagia, nem os dentes rangia. Silêncio total.

    Sentia o corpo todo quebrado, doendo como uma única chaga. Mas essa dor ele suportava bem. Pior era a dor moral e psicológica, trazida pela humilhação pública e violação de sua pessoa. Essa era insuportável. De costas viradas para a mulher, dentes cerrados, ele fitava a parede do quarto, com uma feroz expressão animal, planejando vingança.

    Crime E Fuga

    Tudo ainda estava escuro, escuro. O breu da noite envolvia todas as coisas. Ele pulou o muro de um único salto e entrou no cercado, pisando devagar. Atravessou o quintal e se colocou junto ao muro, do outro lado. Esperava. À medida que o dia clareava, notou que estava muito afastado da casa que vigiava. Aproximou-se mais, escolheu bem o ângulo e apoiou a arma no topo

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