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A Floresta De Ad Finem
A Floresta De Ad Finem
A Floresta De Ad Finem
E-book1.293 páginas7 horas

A Floresta De Ad Finem

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Sobre este e-book

Dandara vivia uma vida infeliz e sem sentindo, mas tudo muda com o surgimento de uma família que ela desconhecia. Diante das mentiras, ela e sua prima Letícia vivem aventuras ao lado dos vampiros e lobisomens, constroem amizades e enfrentam a floresta de Ad Finem em busca da Árvore Dourada, o fruto era a única forma de salvar Azzam, um grande amigo e protetor, mas não é só isso que Dandara acaba encontrando por lá. Os sonhos lhe mostram uma mulher perdida e trancada em uma cabana, mesmo impossibilitada, ela vai ao encontro dela com a gata Afrodite em seu encalço e um Arthur extremamente irritado. Os dois passam por vários problemas e por muito pouco uma tragédia não acontece.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de mar. de 2017
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    A Floresta De Ad Finem - Diana Machado

    A Floresta de Ad Finem

    Diana Machado

    2009

    1

    Em

    memória

    daqueles

    que

    partiram e que fazem e vão fazer

    muita falta ao longo de minha

    jornada,

    meu

    avô

    Hélio

    Machado, meu sogro Ademir C.

    Rangel e Antenor A. Gomes.

    2

    SUMÁRIO

    01 – À primeira vista.................................................................05

    02 – Três balas..........................................................................33

    03 – A um passo da morte.......................................................53

    04 – Despedida..........................................................................57

    05 – Mudança............................................................................70

    06 – A história de Agatha.........................................................92

    07 – A invasão.........................................................................120

    08 – Pesadelo..........................................................................142

    09 – Fáuzi.................................................................................162

    10 – O primeiro passeio.........................................................180

    11 – Por trás da porta.............................................................203

    12 – Confiança........................................................................214

    13 – Ramule.............................................................................243

    14 – A floresta de Ad Finem...................................................272

    15 – Perdidos na floresta.......................................................308

    16 – O resgate de uma alma..................................................340

    17 – A enferma........................................................................361

    18 – Aprendendo a ouvir........................................................383

    19 – Preparativos e luta..........................................................414

    20 – Bolo e tragédia................................................................454

    21 – O resgate.........................................................................474

    22 – Uma esperança...............................................................488

    3

    23 – A rainha dos vampiros...................................................501

    24 – A árvore dourada............................................................529

    25 – Rais..................................................................................559

    26 – De volta a caverna dos vampiros..................................584

    27 – A partida..........................................................................602

    28 – De volta a Urwah.............................................................615

    29 – Último dia........................................................................645

    30 – Conhecendo o passado.................................................661

    31 – Traição e morte...............................................................679

    4

    Capítulo I

    À Primeira Vista

    Os primeiros raios de sol entraram pela janela, com

    certeza seria um belo dia de sol, mas não foi esse fabuloso sol

    entrando pela janela que me fez acordar. Um cheiro de álcool

    misturado a perfume barato estava no ar. Era insuportável inalar

    aquele cheiro, virei para o outro lado e identifiquei o motivo,

    minha adorável mãe já havia retornado de sua noitada.

    Ainda sentia um pouco de sono, mas levantei arrastando

    meu cobertor e joguei-me no sofá da sala, totalmente

    desanimada. Estaria na escola se fosse possível, mas estava

    acontecendo algo estranho comigo, algo que eu nunca

    conseguiria explicar. Eu passava os dias sentada no sofá

    fingindo assistir televisão enquanto pensava seriamente em

    minha vida.

    Minha última expulsão sugou todas as esperanças que

    ainda restavam em minha alma de se tornar um ser inteligente e

    bem-sucedido. Como sempre, eu estava irritada pelos

    comentários com relação a minha mãe. Resolvi que deveria tirar

    satisfações com um garoto da escola e acabei enfiando os pés

    pelas mãos, não consegui dar uma resposta a altura e sem

    5

    saber como, o fiz sufocar até atingir a cor roxa, quando percebi,

    ele já estava quase que sem ar, parei de alguma forma o que

    estava fazendo e assustada comecei a chorar pedindo

    desculpas, mas isso não resolveu o meu problema. O garoto

    ficou tão assustado que saiu correndo, contou ao diretor o que

    tinha acontecido (e é claro que o diretor entendeu tudo de outra

    forma, ou então, a fogueira seria o lugar ideal para mim). Depois

    disto, fui expulsa e Gelda desistiu de tentar me manter na

    escola.

    Não há nada de novo na televisão, apenas os mesmos

    desenhos, as mesmas mortes, acidentes e perdas.

    Perdas! – essa palavra é tudo para mim, não há nada

    em minha vida, apenas as perdas. Parece que algo em mim se

    perdeu e nunca vou conseguir encontrar ou descobrir o que é.

    O mundo não é feliz, não existe felicidade. Meu coração

    sufoca mais e mais conforme os dias passam como se estivesse

    parando de bater cansado deste corpo sem vida. Sinto o ar faltar

    e algo me segura todos os dias neste sofá, porque se nada me

    segurar, eu me entregaria para a morte, me jogaria pela janela

    monótona da sala a qual me encontro. Todos os dias tudo é

    igual, agarro-me num abraço com força para tentar colocar a

    cabeça no lugar e não entrar em desespero, mas enganar minha

    consciência não é fácil. A janela me chama e fico a imaginar

    6

    como Gelda ficaria se perdesse sua única e sem graça filha?

    Talvez apareça no noticiário do dia seguinte com o seguinte

    titulo: – "Garota de dezesseis anos pula do oitavo andar de um

    prédio na periferia de São Paulo, policia investiga se foi

    acidente, suicídio ou assassinato."

    Talvez, eu nem apareça nas páginas dos jornais se isso

    acontecer. Uma garota da periferia, pobre, morando em um

    prédio condenado pela defesa civil, prestes a desabar a

    qualquer momento, com uma mãe que sequer se importa com

    ela e que talvez trabalhe como prostituta para pagar o seu vício

    com a bebida, não é lá um grande anúncio para o noticiário.

    Eu me separo do meu abraço e sinto a janela me

    chamando, eu não quero levantar, mas não aguento mais viver

    do jeito que vivo, com esse abandono, com essa culpa por ser o

    que sou. Estou me aproximando cada vez mais e mais, quando

    enfim toco na janela fazendo um movimento para abri-la, o som

    de uma campainha toca no meu consciente, eu não quero

    atender, quero acabar de uma vez com tudo isso, mas mais uma

    vez a campainha toca e Gelda acorda gritando irritada.

    – Pelo amor de Deus Dandara, atende logo essa porta! –

    ela grita, e meu único instinto neste momento é bufar de raiva e

    sentir os músculos enrijecerem, ela deve estar com dor de

    cabeça de tanto beber.

    7

    Fui em direção a porta e a abri com certa violência, mas

    então fiquei frustrada e espantada e vi o quanto sou tão imatura

    por querer soltar minha ira numa criatura tão agradável que

    sempre que possível é a minha melhor companhia.

    – Bom dia Dan! – cumprimentou Geraldino com um

    sorriso nos lábios.

    Ele sim era feliz, mesmo com sua insuportável mãe

    sempre infernizando sua vida, ele sabia ser feliz e tinha o sorriso

    mais bonito que já havia visto.

    – Trouxe pão para você. – ele entrou com um pacote na

    mão, indo em direção a cozinha onde largou o pacote em cima

    da mesa. – Não é lá grande coisa, mas pelo menos hoje você

    terá um café da manhã decente. – completou ao retornar para a

    sala.

    – Com certeza e graças a você! – tenho muito a

    agradecer, Geraldino sempre me ajuda, mesmo roubando alguns

    pães de sua casa e deixando sua mãe furiosa. – Sua mãe não

    vai se irritar?

    Ele deu de ombros e respondeu:

    – Que diferença faz? De qualquer forma ela vai gritar

    comigo o resto do dia.

    8

    Isso era verdade! Geraldino era obrigado a ouvir sua mãe

    reclamar todos os dias dos mesmos problemas, incluído

    problemas relacionados a seu pai.

    Tio Geraldo é fabuloso, é o pai que eu não tenho, porém,

    não trabalha e passa a maior parte do tempo jogando baralho

    em um bar próximo ao prédio com uma roda de amigos nada

    confiáveis.

    Meu tio não se esforça para procurar emprego e

    definitivamente odeia a palavra trabalho, mas por mais estranho

    que possa parecer, é impossível não encontrar dinheiro em seus

    bolsos. Uma vez o observei arrancar do bolso da calça um bolo

    repleto de notas altas e achei aquilo bem estranho.

    Outro dia, enquanto aguardava Geraldino na porta do

    apartamento dele, ouvi tia Gertrudes conversando com sua

    amiga sobre seu casamento e como foi que ela havia conhecido

    meu tio.

    – Foi amor à primeira vista. – começou ela com uma voz

    um tanto doce, mas que logo se tornou amarga. – Nos casamos

    rapidamente, tive pouco tempo para conhecê-lo de verdade e

    logo após, Geraldino nasceu. Foi horrendo descobrir quem ele

    era e não há uma noite na minha vida em que me deito na cama

    pensando que tudo não passa de um pesadelo e que quando me

    9

    levantar na manhã seguinte tudo vai voltar a ser como era antes

    de conhecê-lo.

    Minha tia não podia ter um coração, sem tio Geraldo,

    Geraldino não existiria. E o que seria de mim sem meu melhor

    amigo por perto? Não quero nem imaginar o tamanho desta dor

    se isso fosse possível. Olhando-o ali, sentado ao meu lado no

    sofá, recordo as palavras de minha tia e não há um dia em que

    não pense nelas com total intensidade.

    Conforme os dias e os anos vão passando, Geraldino

    está ficando mais alto e cada vez mais bonito nada parecido com

    sua mãe ou seu pai. As garotas do bairro passam a maior parte

    do tempo tentando chamar sua atenção, algumas conseguem,

    outras continuam tentando. Algumas vezes ele me conta de seus

    namoros e vive a perguntar dos meus, como se ele já não

    soubesse a minha resposta.

    – Beijar? Eu? Você sabe que não beijo ninguém. –

    resmunguei tentando não alterar minha voz e mostrar minha

    irritação enquanto sentia um calor ruborizar minhas bochechas.

    – Como não? Você é tão bonita! Deixe-me descrevê-la

    neste momento: pele branca, cabelo castanho escuro e longos

    que em alguns dias parecem estar cacheados nas pontas e liso

    quando você utiliza uma escova e olhos tão azuis como o mar. –

    Geraldino sempre descrevia como eu era para mim mesma na

    10

    tentativa de fazer eu me sentir melhor, mas isso não ajudava em

    nada, sempre que me descrevia como pele branca eu pensava

    automaticamente na palavra pálida. Meus cabelos?

    Volumosos e feios. Meus olhos? Sim isso era algo que eu

    possuía de belo, mas somente isso, não havia mais nada em

    mim que poderia ter graça aos olhos de um garoto.

    – Não adianta tentar me animar, sei que todos na escola

    me chamavam de pálida e que até tinham me apelidado de

    estranha fantasma. – respondi com certa amargura na voz

    lembrando-me dos velhos tempos de escola. Esperei alguns

    segundos imaginando a resposta de Geraldino, mas ele ficou

    quieto apenas fitando-me, então continuei: – Além disso, não me

    interesso por nenhum dos garotos que já vi na minha vida.

    – Ninguém? – ele perguntou surpreso com um sorriso

    enquanto observava eu balançar a cabeça positivamente. –

    Como ninguém? Quer dizer que não sou bonito o suficiente para

    você?

    Encarei-o com uma careta imaginando o quão convencido

    ele estava se tornando e onde terminaria aquela brincadeira.

    – Você anda convencido hein? Você é bonito, mas é meu

    primo e eu jamais disputaria a sua atenção com as outras

    garotas do bairro.

    11

    O que eu disse pareceu engraçado para Geraldino e ele

    começou a rir. Dei-me por vencida e cai na risada também.

    Rimos juntos por longos minutos até que nos cansamos e ele

    retornou ao assunto.

    – Outras? – perguntou ele pensativo. – Tem razão, é isso

    que muitas delas são; outras. Não há nenhuma com quem eu

    consiga pensar no futuro ou que me faça sentir qualquer outro

    sentimento a não ser desejo, mas ainda somos jovens, e algum

    dia encontraremos a pessoa certa para nossas vidas. Aquele

    que se casar com você será abençoado, além de casar com uma

    mulher extremamente bonita, terá uma grande amiga,

    companheira e apaixonante esposa, qualquer homem vai querer

    disputar sua atenção.

    Senti minhas bochechas queimarem mais uma vez, não

    havia necessidade de ouvir aquelas palavras. Geraldino me

    achava perfeita, mas eu não conseguia acreditar nisso e sequer

    em um futuro na minha vida. Para não continuar naquele

    assunto que me encabulava, foquei meu cérebro na destruição,

    na minha própria destruição. Nada do que ele dizia era verdade,

    apenas gracejos para me animar.

    – Você ainda é jovem, tem tempo ainda, mas eu me sinto

    velha a cada dia que passa. – acrescentei observando a

    expressão de espanto de meu primo com minhas palavras.

    12

    – O quê? Você só tem dezesseis anos e já se sente

    velha? Não sei o que fazer com você Dan, a cada dia que passa,

    fico mais preocupado.

    – Não sei o porquê de tanta preocupação, eu sei me

    cuidar, é o que faço melhor depois de todos estes anos.

    Geraldino passou longas horas conversando comigo,

    dando-me um pouco da felicidade que faltava em meu ser. No

    final do dia despediu-se e saiu cantarolando para o seu novo

    encontro.

    Naquela tarde, terminei os meus afazeres e pensei em

    dar uma volta, não sabia ao certo para onde ir e odiava fazer

    isso, mas eu precisava andar um pouco. Quando eu surgia na

    rua, as pessoas encaravam-me como se eu fosse uma espécie

    de alienígena, além de ser estranha, não ter amigos e não se

    comunicar com os vizinhos, eu tinha um péssimo mau-gosto

    para se vestir. Gelda não comprava roupas, graças à bebida não

    sobrava muito para isso, então tinha que me contentar com as

    roupas que recebia como doação de membros da família. O

    problema é que muitas delas eram de quando meu primo tinha o

    meu tamanho, ou seja, eu me vestia como um garoto, mas isso

    para mim era indiferente, para quê se vestir bem? A quem eu

    queria impressionar? Não havia ninguém para impressionar,

    então para quê roupas novas e femininas?

    13

    Há uma floresta próxima a vizinhança, não é comum as

    pessoas entrarem nela, principalmente com o fim do entardecer,

    mas o que eu tinha a temer?

    Caminhei

    pelas

    árvores

    observando

    as

    luzes

    desaparecerem logo atrás de mim, a lua estava cheia e

    extraordinariamente bonita, ela era a única luz me indicando

    onde poderia haver uma árvore, andei com cautela para não

    tropeçar e após alguns minutos de caminhada encontrei uma

    clareira, havia um tronco caído no solo e sentei observando tudo

    a minha volta. Fechei os olhos e tentei me concentrar nos

    barulhos dos animais, não havia muitas espécies por ali, com

    certeza, com o crescimento da cidade logo aquele pequeno

    lugar deixaria de existir.

    O barulho de um galho se partindo me assustou, olhei em

    volta, mas não havia nada, então retornei para meus

    pensamentos sórdidos.

    Quando me tornei adolescente, cheguei à conclusão que

    Gelda não poderia ser minha mãe, éramos diferentes

    fisicamente, eu sou branca como um copo de leite e ela morena,

    quase negra.

    Certo dia, ouvi minha mãe e minha tia trancadas dentro

    do quarto conversando, como sempre Gelda chegou tarde da

    noite e bêbada, e eu estava com meu tio e Geraldino no

    14

    apartamento deles jogando baralho. Estava divertido, mas o

    sono e cansaço venceram. Despedi-me dos dois e fui para o

    meu apartamento, quando toquei na maçaneta da porta do

    quarto ouvi uma conversa que destruiu um pouco mais a minha

    vida.

    – Gelda, você precisa mudar minha irmã! – resmungava

    tia Gertrudes enquanto a amparava. – Que exemplo está dando

    para sua filha?

    – Que filha? Eu não tenho filha!

    Não sei ao certo se entrei em estado de choque com

    aquelas palavras, ou se minha alma havia decidido de uma vez

    por todas abandonar meu corpo, senti as lágrimas molharem

    minhas bochechas e o ar me faltou, se fosse preciso gritar,

    nunca conseguiria, não naquele momento. Deslizei apoiada na

    parede até o chão e apoiei minha cabeça em meus joelhos.

    Sempre acreditei que fosse parecida com meu pai, um pai que

    não existia e que era criação de Gelda.

    A conversa prosseguia lá dentro, tentei acalmar meu

    coração que mais parecia uma orquestra de tambores fora do

    ritmo, para continuar ouvindo o que diziam.

    – Do que você está falando? Ficou maluca? – questionou

    tia Gertrudes com uma voz tão surpresa quanto eu estava. –

    15

    Estou falando da sua filha, Dandara. Lembra-se dela? Ou está

    tão bêbada que sequer sabe qualquer coisa?

    – Ah sim Dandara! Como posso me esquecer dela? Sua

    mãe a entregou em meus braços numa noite chuvosa dizendo

    que voltava logo sem nem ao menos perguntar meu nome ou se

    era possível eu ficar com ela. Ela simplesmente desapareceu!

    Minhas lágrimas cessaram quando Gelda começou a

    falar, precisava ouvir com clareza e entender, não poderia fazer

    uma avaliação de forma desonesta sem antes ouvi-la.

    – Eu fiquei a sua espera por quase uma hora, e como ela

    não apareceu, trouxe a menina para casa, era tão pequenina,

    tão perfeita! Tinha olhos tão lindos, foi amor à primeira vista! Ela

    não é linda Gertrudes? Foram os anjos que me presentearam.

    Não pude evitar, tive que olhar pela fresta da porta para

    ter certeza de que aquelas palavras saíam da boca de Gelda,

    ela naquele momento segurava um porta-retrato em suas mãos

    com uma única foto minha de quando eu era um bebê.

    Não sei se tia Gertrudes ficou mais perplexa pela notícia

    ou se pelo fato de Gelda me amar.

    Um movimento demonstrou que alguém estava próximo

    da porta, era minha tia, então me escondi no banheiro na

    tentativa de ela não me ver.

    16

    Tia Gertrudes passou pela sala de estar bastante irritada,

    isso foi fácil de perceber porque assim que ela passou pela porta

    a bateu com violência.

    Voltei para a sala de estar arrasada e sentei no sofá, tudo

    estava às escuras e era disto que eu precisava naquele

    momento. Como um bebê, eu não passava de um ser

    desprezível abandonada pela própria mãe. Novamente as

    lágrimas despencaram, como se não bastasse o pouco amor

    que recebia de minha mãe bêbada, não tinha nem mesmo um

    sobrenome, com certeza, todos os meus documentos eram

    falsos, eu simplesmente não existia.

    A floresta parecia ser um bom refúgio, talvez um pouco

    perigosa durante a noite, bandidos, estupradores ou psicopatas

    poderiam surgir a qualquer momento e me levar deste mundo,

    ou quem sabe algum vampiro insaciável por sede de sangue.

    Geraldino ri quando falo de seres sobrenaturais, mas não há

    sentindo existir um universo tão grande com apenas humanos

    habitando e destruindo tudo o que há pela frente, deve haver

    algo mais grandioso e esplêndido, mas apenas poucos são

    escolhidos para vê-los e é claro que eu não estou nesta lista.

    O céu ficou nublado de repente, a lua e algumas poucas

    estrelas desapareceram. Tudo se tornou uma escuridão total,

    não conseguia mais enxergar as árvores. Um trovão sacudiu o

    17

    céu ao longe, uma chuva estava a caminho, senti um pouco de

    frio com o vento que vinha em minha direção, estava apenas

    com uma camiseta básica e calça jeans. Encolhi-me abraçando

    minhas pernas, não queria voltar para casa, não queria

    abandonar aquela escuridão.

    Um par de olhos brilhantes piscaram por entre as árvores,

    senti um arrepio percorrer minha espinha, depois de alguns

    segundos, eles estavam me encarando, pensei que poderia ser

    um gato, mas era extremamente grande, não poderia ser nem

    mesmo um cão.

    Um relâmpago caiu por entre as árvores fazendo-me pular

    em pé devido ao susto e olhei para a criatura no exato momento

    em que o raio caiu. Eu sei que foi muito rápido, mas não era um

    gato, um cachorro, ou algo parecido com que eu já tivesse visto

    em minha vida. Ele era grande e peludo como um cão, grande o

    suficiente para ter mais ou menos uns dois metros de altura caso

    se levantasse nas patas traseiras. Possuía um focinho e uma

    boca tão cheia de dentes como um cachorro, que pareciam ser

    bem grandes e afiados. Não havia nenhum animal descoberto

    cientificamente até aquele momento que se encaixasse em

    algum perfil como o deste. Para pessoas como eu que acreditam

    no sobrenatural, ele se encaixava no termo homem X lobo,

    conhecido folcloricamente como, lobisomem.

    18

    Continuei encarando a criatura à espera do próximo

    relâmpago, pelo instinto que todo ser humano possuí, diante de

    uma situação como essa, a primeira atitude a se tomar seria

    correr, mas eu não conseguiria, não sentia medo, apenas

    curiosidade, vontade de me aproximar, mesmo correndo o risco

    de morrer.

    Os olhos sumiram após alguns minutos e lá vinha o novo

    relâmpago, olhei na mesma direção, mas não havia mais nada,

    ele não estava mais lá. Olhei em volta na esperança de que ele

    tivesse mudado de lugar, mas não tinha mais nada ali a não ser

    eu e como sempre sozinha.

    A frustração me invadiu, não era justo chegar tão perto de

    algo que nem todos tinham visto ainda e não ter a oportunidade

    de tocá-lo.

    Respirei fundo domando minha frustração e decidi que

    era hora de voltar para o apartamento. O caminho foi árduo, não

    dava para enxergar quase nada, mas enfim, consegui com

    alguns arranhões nas mãos e nos braços. Quando entrei no

    apartamento, Gelda não estava mais no quarto, isso me animou

    um pouco, detestava a presença dela se trocando para sair.

    Quando deitei na cama, demorei a pegar no sono, não

    conseguia tirar aqueles olhos da minha cabeça, olhava pela

    19

    janela esperando que ele aparecesse a qualquer momento,

    quando enfim adormeci a chuva caiu lá fora.

    Quando acordei pela manhã, meu corpo estava dolorido,

    Gelda já estava em sua cama roncando como sempre. Fui até a

    cozinha e não havia mais nada nos armários. O único motivo

    pelo qual não passava fome era meu tio e meu primo, isso eles

    jamais permitiriam. Ainda era cedo para meu doce primo

    aparecer com um saco de pão, só me restava esperar um pouco

    mais.

    Sentei no sofá sem conseguir tirar aquela criatura da

    cabeça, aqueles olhos me encarando, eram perfeitos, cheios de

    devoção e fixação. Liguei a televisão na tentativa de me distrair,

    mas além da imagem que estava péssima e cheia de chuviscos,

    por algum outro motivo que não sei explicar, ela se tornou preta

    e branca, com certeza isso não prenderia nunca minha atenção.

    Comecei a trocar de canal e parei em um desenho

    animado, e para me aguçar ainda mais, os mocinhos

    enfrentavam um lobo grande e feroz. Que ironia do destino, eu

    tentando me distrair pensando em outras coisas e não consigo

    porque as encontro pelos caminhos aos quais eu ando.

    Estava achando o desenho engraçado quando um

    barulhinho estranho chamou minha atenção, comecei a procurá-

    lo e percebi que vinha da janela, olhei incrédula para a ave que

    20

    estava no parapeito do lado de fora, ela batia insistentemente no

    vidro e parecia a ponto de quebrá-lo.

    – Não pode ser! Não existem araras-azuis voando pela

    cidade de São Paulo. Será que ela fugiu do zoológico?

    Devagar me aproximei da janela para observá-la mais de

    perto, era enorme e muito linda, insistente ela continuou a bicar

    o vidro, parecia haver algo preso em seu pescoço, com cautela,

    abri a janela na esperança de que ela não rangesse assustando

    a ave ou caísse em cima dela, tudo naquele prédio estava

    automaticamente se destruindo, aquela janela não era aberta há

    anos.

    Apesar do barulho da janela, a ave não se assustou,

    continuou parada à minha espera. Era linda! A ave mais incrível

    que já vi em toda a minha vida, depois do lobo, é claro!

    Aproveitei que ela continuava ali e acariciei sua cabeça, ela piou

    e parecia gesticular para que eu retirasse o papel de seu

    pescoço, foi o que fiz logo em seguida e quando estava com o

    pedaço de papel em mãos, ela levantou voo.

    Não fiquei frustrada com sua partida, consegui tocá-la e

    não havia motivos para decepção. O papel sobre minha mão era

    velho e amarelado, estava dobrado de uma forma que parecia

    ser fácil e prático para um pássaro carregar, sentei-me no sofá

    encarando o papel e imaginando quem havia colocado isso em

    21

    uma arara. E desde quando araras fazem o serviço do correio?

    Eu deveria lê-lo?

    Curiosa, eu o abri, estava direcionada para mim. Fiquei

    pasma! Quem me escreveria?

    Querida Dandara

    Esta carta será um pouco curta. Não sei ao certo o que te

    escrever, tenho tanto para falar, mas deixarei para dizer tudo

    pessoalmente.

    Quem lhe escreve é o seu tio William. Sinto-me

    emocionado e empolgado por enfim poder fazer isso. Sei que

    deve ter sofrido muito nos últimos anos, não sabe o quanto

    demorei a encontrá-la, foi muito difícil. As dúvidas pairavam

    sobre minha cabeça durante todos estes anos imaginando se

    estaria viva.

    Meu único desejo no momento é trazê-la para o meu lado,

    para o lado de nossa família, para o lado daqueles que a amam.

    Embora não nos conheçamos, eu a amo desde o dia em que

    entrou em minha vida.

    Logo estarei ao seu lado.

    Do seu tio William.

    22

    Eu li e reli aquela carta sem conseguir acreditar nas

    palavras, meu coração disparava diante de cada uma delas, a

    emoção me dominou de tal forma que senti as lágrimas caindo

    dos meus olhos, mas desta vez eram lágrimas de alegria, de

    esperança, enfim havia alguém de minha verdadeira família à

    minha procura, alguém que acima de tudo tinha a capacidade de

    amar sem nem ao menos saber como era o ser que ele amava.

    Mas quando ele virá?

    Ainda sem conseguir acreditar no conteúdo daquela carta

    corri até o apartamento de meu primo, queria mostrar a carta

    para ele e obter uma segunda opinião, talvez estivesse me

    iludindo.

    Aproximei-me do apartamento que era em frente ao meu

    e bati na porta insistentemente, normalmente faço isso para

    irritar minha tia caso ela ainda estivesse em casa, mas naquele

    momento era por pura ansiedade.

    – Meu Deus! Que insistência Dandara. Aconteceu algo? –

    perguntou meu tio ainda de pijama ao abrir a porta.

    – Não tio, ainda não aconteceu nada. – podia acontecer a

    qualquer momento, então essa era a resposta ideal. – É que

    hoje eu recebi uma carta e preciso de uma segunda opinião. –

    expliquei rapidamente entregando a carta para meu tio ler.

    23

    Tio Geraldo olhou pelos dois lados da folha com uma

    expressão incerta, fez uma careta e dirigiu-se a mim:

    – Sente-se bem? – tio Geraldo perguntou colocando a

    mão em minha testa como se estivesse medindo minha

    temperatura.

    Não entendi sua pergunta, mas com uma careta se

    formando respondi balançando a cabeça positivamente.

    – Que tipo de brincadeira é essa, Dan? Você me tira da

    cama tão cedo para me mostrar um mero pedaço de papel sem

    nada, não há nada escrito aqui. Você não é mais criança para

    esse tipo de brincadeira.

    Como assim? Eu podia ver as palavras escritas naquela

    folha, estavam ali. Eu podia vê-las, porque ele não?

    Meu tio ficou encarando-me incrédulo sem dizer nada,

    retirei a carta de suas mãos com uma careta ainda mais feia e

    voltei para o meu apartamento. Sentei no sofá e fiquei

    questionando se depois de tantos problemas eu havia enfim

    enlouquecido e imaginado toda aquela situação, e o lobisomem?

    Com certeza, também era um fruto dessa loucura.

    Passei a tarde toda pensando em tudo isso, Geraldino

    apareceu por volta das três horas da tarde, assim que ele

    passou pela porta não consegui esconder que o esperava e me

    24

    lancei em sua direção assim que ele entrou quase que o

    derrubando.

    – Uau! Não imaginei que sentia tanta falta de mim. –

    Geraldino caçoou fazendo-me corar.

    – Não seja bobo! Preciso que me diga o que vê neste

    papel, palavra por palavra. – disse colocando a carta em suas

    mãos.

    Como seu pai, Geraldino também olhou a carta dos dois

    lados sem nada enxergar. Assustada, deixei-me cair sobre o

    sofá e fiquei a encarar o teto enquanto meu primo lançava um

    olhar confuso sobre mim.

    – Você está bem? – ele perguntou sentando-se ao meu

    lado.

    – Honestamente, não sei! Ou melhor, quando é que eu

    estou bem? – essa era uma pergunta verdadeira.

    Geraldino não respondeu, ainda estava com uma

    expressão confusa no rosto, então continuei antes que as

    perguntas surgissem.

    – Eu recebi essa carta de um tio chamado William, na

    qual ele diz que agora que me encontrou, vai vir me buscar para

    ficar ao lado de minha família, provavelmente ele deve ser irmão

    de minha mãe, ou de meu pai, só que... Não sei como... Apenas

    25

    eu consigo ver o conteúdo da carta. – expliquei bufando com a

    carta em mãos.

    – Nada de desespero prima! Talvez um pouco de

    descanso faça bem. Porque não aproveita e dorme um pouco?

    Talvez todo esse stress seja por motivos de sono. – tentou

    Geraldino me consolar.

    – Talvez tenha razão, estou tão cheia de mim mesma que

    estou até imaginando coisas.

    Geraldino ficou por pouco tempo, despediu-se com um

    abraço e deixou-me a mercê da loucura, não estava tão cansada

    o quanto ele pensava, dormir com Gelda roncando não estava

    em meus planos, queria conversar com alguém, por isso, não

    pensei duas vezes, fui ao apartamento de meu tio decidida a

    desabafar, talvez ele pudesse aconselhar-me.

    Bati na porta com a mesma insistência de sempre, desta

    vez tia Gertrudes atendeu a porta e ficou irritada ao perceber

    tratar-se da minha pessoa.

    – Ah! É você! – exclamou ela sem entusiasmo deixando-

    me plantada na porta e voltando para a cozinha.

    Entrei sem ser convidada e segui minha adorável tia.

    – O que você quer? Seu tio está no bar como sempre e

    seu primo, provavelmente com alguma garota fácil, algo que não

    falta neste bairro. Esse menino vai acabar com o futuro dele

    26

    andando com gente assim. Sabe o que quero dizer não? Gente

    como você.

    É claro que minha irritação neste momento aumentou. Eu

    não consegui dar uma resposta à altura. Tia Gertrudes deixou-

    me de lado e começou a preparar uma vitamina de frutas no

    liquidificador fingindo que eu não estava lá. Minha raiva se

    direcionou para os objetos como era comum acontecer, logo

    tudo estava se mexendo, panelas, móveis e até mesmo o

    liquidificador. Tia Gertrudes assustada começou a gritar.

    Contrariando minha própria vontade, deixei o apartamento

    ouvindo o som de pratos espatifando-se no chão assim que

    fechei a porta. Aquilo era muito estranho!

    Voltei para o apartamento e para meu espanto Gelda

    estava sentada no sofá envolvida por um cobertor assistindo

    televisão. Será que havia acontecido algo grave? Não era

    comum ela se sentar no sofá e assistir televisão. Devia estar

    doente. Em pleno verão, envolvida por um cobertor? O calor

    naquele apartamento era insuportável.

    – A televisão não era colorida? – ela perguntou quando

    entrei fechando a porta.

    – Sim era, mas creio que por algum defeito ela ficou

    assim. – expliquei tentando raciocinar.

    27

    – Deve estar achando estranho eu sentada aqui

    assistindo televisão. – Gelda começou a falar ao notar o meu

    choque por vê-la ali. – Faz tanto tempo que não faço outras

    coisas. Coisas comuns para seres humanos, até mesmo você,

    eu abandonei.

    Sim eu estava abandonada, mas que diferença isso faria

    agora? Sentei ao seu lado no sofá e esperei o momento

    desabafo começar, isso acontecia quando ela não tinha dinheiro

    para a bebida e provavelmente estava doente demais para fazer

    programa e ganhar algum dinheiro para isso. Seria uma longa

    tarde...

    – Meu Deus o que fiz comigo mesma? – Gelda perguntou

    enquanto passava a mão sobre as rugas de seu rosto. – O que

    fiz com você? Deveria ter lhe dado uma vida melhor. Uma família

    melhor! – ela disse isso, mas com certeza não se referindo a ela,

    a ideia de uma família não fazia jus a ela.

    – Eu sei como se sente... – tentei acalmá-la antes que as

    lágrimas começassem. –... Sobre essa dor que nunca acaba.

    – Eu te causo dor, não causo?

    Eu a encarei amedrontada. Dizer ou não a verdade? Por

    pior que Gelda fosse não era o momento certo para lhe causar

    dor, não estava preparada para lágrimas naquele momento.

    28

    – Só um pouco, mas agora já está tudo bem! Eu sei que

    não é minha mãe, mas não me importo. Deve haver razões para

    eu estar na sua vida e você na minha. Razões das quais, não

    conseguimos compreender... Pelo menos... Não ainda... Mas eu

    me sentiria mais confortável se pudesse me contar como tudo

    isso começou.

    Eu estava tranquila, mas não deveria ter dito a verdade,

    isso a faria desabar em prantos, mas para minha sorte, ela

    apenas me olhou incrédula pelo fato de eu estar calma.

    – Era uma tarde chuvosa... – ela começou a contar

    encarando a janela, agora lá fora começava a chover. –... Chovia

    bem mais do que hoje. Eu estava indo para o trabalho quando

    sua mãe esbarrou em mim e pediu quase que implorando para

    eu olhar você por alguns minutos. Parecia desesperada! Sequer

    me permitiu dizer que não era possível. Fiquei plantada na

    calçada embaixo de um toldo de uma pizzaria com você em

    meus braços por quase uma hora, como sua mãe não voltou, eu

    a trouxe para minha casa. Fiquei um pouco assustada no

    começo, eu sabia que você não teria uma vida boa ao meu lado,

    mas também temia procurar pela policia e então eles a levariam

    para outro lugar. Que garantias eu teria de que este lugar seria

    bom para você? Isso é engraçado, sabe? – sussurrou Gelda no

    final.

    29

    – O que é engraçado? – perguntei tentando entender o

    que ela estava imaginando.

    – Com tantas pessoas no mundo, porque justo eu? Acho

    que nada acontece por acaso.

    Sim, Gelda estava filosofando e isso era impossível de se

    acreditar, estava se tornando assustador.

    – Como ela era? – perguntei na tentativa de saber se eu

    era parecida com minha mãe.

    – Se parecia com você, mas não tinha os olhos azuis, era

    um pouco mais alta e o que chamava a atenção eram suas

    roupas, ela usava um vestido de galã muito bonito e elegante,

    deveria estar em alguma festa naquele dia, e embora estivesse

    chovendo e escuro, deu para perceber que era tão bonita e

    muito jovem para ser mãe, talvez tivesse a sua idade naquela

    época, ou quem sabe, fosse até mais jovem que você.

    Refleti sobre o que ela disse, e pensei que se isso

    acontecesse comigo, talvez ficasse apavorada. Ser mãe não era

    para qualquer pessoa e talvez minha mãe naquele momento

    estivesse cheia de problemas e com medo de ter uma criança

    para cuidar pelo resto de sua vida. Ora, ela deveria ter

    enfrentado os seus problemas e não passado eles para frente

    como um objeto qualquer.

    30

    – Obrigada Gelda, por me esclarecer este capitulo da

    minha vida.

    Agradeci a ela com um beijo no rosto e deixei-a sozinha,

    precisava andar um pouco, com certeza isso me faria sentir

    melhor.

    Capítulo II

    31

    Três Balas

    Completei dezessete anos, agora faltava pouco para a

    maioridade. Não tenho vontade de fazer coisa alguma neste dia

    sórdido, talvez andar pela floresta, mas só durante a noite, quem

    sabe, enfim, eu não ganho um presente dos deuses e revejo

    aquela bela criatura.

    Há dias que eu estava fazendo isso, quase todas as

    noites perambulava pela floresta em busca de vê-lo, mas nada

    acontecia, nenhum sinal de que ele estava próximo. Queria tanto

    essa chance e se fosse possível um diálogo, pediria que me

    mostrasse o seu mundo, o seu lugar especial e os próximos a

    ele.

    O tempo estava lindo lá fora, o sol de verão estava

    fazendo o asfalto ferver.

    Ganhei um presente de Gelda e foi o melhor que já

    ganhei em toda a minha vida, no dia seguinte, partiria para ver

    meu avô Moacir. Já faz alguns anos que não vou ao sítio e lá é

    um dos melhores lugares do mundo, o único lugar onde

    realmente sou feliz, mesmo que por poucos dias.

    Passei o meu aniversário na companhia de meu primo,

    ele me levou ao shopping e gastou o suficiente para deixar

    32

    minha tia louca, mas é claro que ele disse que eu não deveria

    me preocupar, meu tio tinha fornecido o dinheiro. Então não

    havia como não ficar preocupada, afinal eu não sabia de onde

    brotava aquele dinheiro. Apesar da preocupação, pela primeira

    vez não me importei de ele querer me vestir como mulher, o que

    me irritou foi a tristeza de Geraldino.

    – O que aconteceu com você? – perguntei quando nos

    sentamos na praça de alimentação para tomar um sorvete.

    – Nada de mais. – ele respondeu sem vontade. – É que

    você nem partiu e já estou com saudades.

    – Não se preocupe! São só alguns dias e depois estarei

    de volta para te deixar louco da vida. – lembrei-lhe com um

    sorriso.

    – É, são só alguns dias! – Geraldino enfatizou

    desanimado e demonstrando saber de algo que eu não sabia.

    Ele percebeu meu olhar curioso e mudou sua expressão

    rapidamente. – Vamos tomar logo esse sorvete, você precisa de

    biquínis, não pode ir para a cachoeira de camisetão e calça

    jeans.

    Não gostei muito da ideia de usar um biquíni, seria a

    primeira vez, mas não custava tentar, se não me acostumasse à

    ideia, a deixaria de lado.

    33

    Quando voltei para casa estava abarrotada de sacolas,

    nunca em toda a minha vida comprei tanto, foi sem dúvida algum

    agrado de meu tio. Meu medo era descobrir de onde ele tirava

    esse dinheiro. Eu não tocava mais neste assunto com meu

    primo, ele sabia de onde vinha e se chateava muito com isso.

    Larguei as sacolas no chão da sala e fui com meu primo

    até o seu apartamento, era hora da despedida, não daria para

    vê-los pela manhã, Gelda me levaria a Rodoviária bem cedo.

    Meu tio estava estendido no sofá quando entrei, estava

    assistindo uma partida de futebol. Ele abraçou-me quando me

    aproximei e parabenizou-me pelo aniversário.

    – Que Deus lhe dê muitos anos de vida e sabedoria.

    Espero que tenha gostado dos presentes. Você precisa causar

    uma boa impressão ao seu avô. Não me agradaria nada se ele a

    visse usando roupas de menino, ele com certeza tiraria dinheiro

    do próprio bolso para vesti-la melhor e como sei que sua

    situação não anda lá tão boa, resolvi eu mesmo o problema.

    Tio Geraldo gostava bem mais do meu avô que as

    próprias filhas.

    – Obrigada tio, nem sei como agradecer.

    – Não precisa! Eu fiz porque gosto de você e de seu avô,

    e não há duas pessoas que mereçam tanto nesta família como

    34

    vocês. Vou sentir sua falta e espero que se divirta muito, terá

    muito tempo para isso, claro.

    Muito tempo? Como assim? Que coisa estranha! Meu tio

    também parecia chateado, ele me abraçou tão apertado que

    senti que não o veria mais, logo ele me soltou e ficou com um

    olhar ainda mais triste.

    – Faça uma boa viagem!

    Não consegui dizer nada, então apenas agradeci

    balançando a cabeça.

    Olhei para meu primo e o abracei com força, era

    exatamente um abraço parecido com o de meu tio, quando me

    separei dele o olhei e a expressão de seus olhos parecia querer

    dizer algo, mas por algum motivo ele não disse nada.

    Voltei para o meu apartamento com o coração apertado,

    estava empolgada com tantas emoções, então aproveitei para

    arrumar minha nova mala, agora não precisava mais da antiga

    que já havia deixado pronta, mas já que parecia que não haveria

    retorno coloquei os velhos casacos de Geraldino na nova mala,

    lá o inverno é rigoroso. Quando terminei, coloquei meu velho

    pijama e fui dormir um pouco. Temia que essa suspeita fosse

    real, mas amaria viver ao lado do meu avô.

    Pela manhã senti cheiro de café fresco, levantei e quando

    entrei na cozinha, Gelda já estava em pé saboreando um bom

    35

    gole de café, já estava arrumada para sair e com a bolsa ao seu

    lado, então sem dizer nada, fui me preparar.

    Se despedir de Gelda não era tão difícil, é claro que como

    meu primo e meu tio, ela estava estranha e triste. Durante o

    trajeto para a rodoviária elogiou minhas roupas novas e disse

    que agradeceria ao meu tio pelos presentes, mas apenas isso.

    Ela tentava puxar conversa comigo, mas eu não conseguia

    manter uma aproximação a ponto de sentir entusiasmo para falar

    qualquer coisa, estava ansiosa demais para isso e não havia

    assuntos interessantes para se falar com Gelda.

    Próximo do portão de embarque, sua expressão ficou

    ainda pior.

    – Está tudo bem? – perguntei antes da despedida.

    – É que vou sentir sua falta.

    Ela me abraçou após dizer isso, foi um abraço demorado,

    aquilo comprovava o que eu pensava, eu não voltaria mais. Senti

    meus olhos ficarem marejados diante daquela perspectiva, mas

    não permiti que as lágrimas caíssem, pelo menos não naquele

    momento.

    Separei-me do abraço sem encará-la nos olhos e fui para

    o ônibus, não olhei para trás e mesmo que o quisesse fazê-lo

    não conseguiria. Já dentro do ônibus e acomodada em minha

    36

    poltrona, permiti que as lágrimas caíssem. Queria saber o motivo

    de não poder mais voltar e porque todos sabiam menos eu? O

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