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sabores
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E-book132 páginas1 hora

sabores

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Sobre este e-book

O livro conta a trajetória de Sara em busca de encontrar o corpo que lhe dê significados. Nessa travessia, ela experimenta as violências de possuir um corpo à margem, seja no âmbito familiar ou social. A ausência de figuras que lhe dê direções a fazem percorrer um caminho que a leva a se tornar espelho-desejo das outras pessoas, tornando-a um corpo vazio de si.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de ago. de 2021
ISBN9781526049018
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    sabores - thiago zalinsq carneiro de almeida

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    SABORES

    Por

    Zalinsq Ivatnovn

                                                                                                  Em memória de Mário, a eterna mulher polvo. Amo-te para sempre, amigo. Saudades.

    Muito cedo na minha vida ficou tarde demais

    O Amante, Marguerite Duras

    1

    ..........................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................Era minha mãe quem abria as gavetas.

    2

    Logo depois meu papai morreu. Morreu numa terça e na quinta eu ainda não fora olhar o corpo dentro do quarto. Tinha medo de abrir aquela porta. De ver em meio aos dejetos um rosto que não era mais o dele. Como então saberia dizer se realmente morrera? Passei a vida com essa incerteza. Ele não mais me chamou, e não fui levar sua comida e remédios. Talvez tenha sido isso. Não havia mau cheiro, mas sentia algo podre, como uma decadência moral que me perseguia e se projetava pelos cantos da casa. Ninguém parecia sentir falta dele, e a porta fechada o guardava. Fingíamos não nos preocupar com isso para não levarmos esse fardo. Mamãe sempre me disse que papai era um homem doente. Guardava tudo como forma de estar dentro do mundo. E nossa casa ficava cheia de inutilidades e dos gritos de mamãe. Papai não entendia tanta ira. Trazia para casa gavetas. Todas que conseguia encontrar. A casa era cheia de gavetas. Todas entulhadas. Quando adoeceu, todas foram para dentro do seu quarto. Ele não permitiu se desfazer delas. Possuía uma estranha ligação com cada uma. E a porta foi fechada como forma de nos proteger. Papai dizia algo sobre a importância das gavetas para o mundo moderno nas poucas vezes das quais me lembro de vê-lo falar. Eu tinha medo de gavetas. Daquilo que podiam esconder. Acreditava que minha vida seria trancada dentro de alguma e para sempre ficaria amontoada. Gavetas serviam para guardar, mas não precisávamos delas para esconder nossas verdades. Papai era um homem engraçado e útil. Para os outros. Nunca aprendera a ler, mas gostava de escutar o som de seu nome no pequeno gravador que levava para o quarto e escondia a cada dia em uma gaveta diferente. Temia algo. Todos temiam. E isso me fazia ser uma pessoa má. Egoísta. Comia no mesmo prato e não mentia. Era minha forma de ser malvada. Ainda faço parte dessa casa, por isso me sento à mesa e posso comer carne. Não bebo, porque não quero compartilhar meus lábios nos copos que serão guardados. Por existir aqui que mamãe me despreza. Ela prepara o discurso para minha despedida. Mas eu fico. Quero ser invisível para ainda acordar naquela cama. Comer sozinha o pedaço da carne que mamãe fez. Não me preocupava se papai podia comer carne. A porta fechada parou de me chamar. Não me sentia filha, era uma hóspede indesejada para quem já passara do tempo de entregar o pequeno espaço da cama. Ontem reparei que não tínhamos fotos juntos. Daquelas que apresentam às visitas a mentira de ser família. Algo sempre aconteceu naquela casa, mas nunca tomei real conhecimento. Nunca falamos sobre isso. Sabíamos nossos nomes, mas não nos conhecíamos. Era uma casa de estranhos com o mesmo sobrenome. Mamãe parecia sempre esconder algo. Sempre estava espantada. E quando ficava sozinha, não deixava nenhuma gaveta fechada. Algo aconteceu. E aconteceria. Havia um perigo que para sempre nos acompanharia. Todos sabiam. Talvez até eu. Mas finjo não tomar ciência para manter alguma dignidade. Por isso, preferi ser um incômodo a criar laços. Gavetas sempre queriam se abrir. Era uma casa de gavetas. Todas abertas.

    3

    Deitada na cama me cubro e logo sinto calor. Uma gaveta ficou aberta, mas não tinha mais possibilidades de fechá-la. Tenho medo dos monstros que vivem no escuro do meu quarto. Devo proteger meu corpo, porque cada parte para fora da coberta é violada pelo escuro. Não consigo dormir. Meu quarto não tem porta, e a casa é escura. Sou uma menina de seis anos esquecida de adormecer. A sede me olha nos olhos, mas não posso me levantar. Junto as mãozinhas e rezo a parte da oração que aprendi no rádio. Ave Maria cheia de graça. Busco só o sono, mas meu medo me mantém atenta. Pintei uma árvore num papel, amanhã uma amiga que gostava de signos dirá que ela é minha vida e minha morte. Mas é só uma árvore mal pintada no branco de minha inocência. Queria ter ido ao analista. Teria mais consciência de mim. Meu tio reparou nas florezinhas, cheio de florezinhas não é coisa de homem. E riu como se cuspisse. E eu olhava sem entender com meus seis anos. Ninguém percebia que além das flores havia uma linha. Nem eu ainda sabia o nome daquele lugar. No quarto vazio vejo terrores que se encontram nas camadas do escuro a me olhar das gavetas. Esse quarto não existe mais na casa antiga, só os horrores que não se permitiram escapar de mim. Na noite dos dias sou uma criança sozinha. Estou na cama, a coberta me faz suar. Tudo é quente. Há sede em minha lembrança. O mostro logo virá. Ele tem nome e sabe rir. Meu corpo sente algo e me irrita. Mamãe me baterá por eu reclamar baixo. Não me é permitido chorar. Devo obedecê-la. Não posso me ser. Meu corpo não tem escolhas. O escuro ganha a dimensão de um ser terrível. Tudo me assusta. Sou uma criança com sustos. Sou a covarde que desenha flores e um risco sem sentido. Esqueci como pintá-las e hoje não mais desenho. Apenas tento lembrar de momentos bons. O escuro chega a essa hora, quando a casa parece se arrastar para um canto sem pessoas. Tenho um lugar secreto onde posso permanecer. Ele é pequeno e sólido e quieto. Estou nele agora. Estou na cama agora. A porta que tento abrir não se quer fazê-lo. Estou numa caixa sempre a tentar. Esse é o lugar que construí para me proteger do que a noite trazia entre os dedos no meu corpo. Nela fico até me desmanchar na inconstância e voltar a ver flores nos sonhos. Posso ver flores enquanto aquilo acontece. Desperto com o grito que vem da casa. Mas é meu susto. E levanto, e me vou, e deixo o quarto feliz pelo dia de sol. A cada dia sinto algo que ficou como sensação no corpo de criança. Não desenho flores nas paredes para minha mamãe não me bater. Mas vejo-as na pintura que se desfaz com o mofo. Imagino esses desenhos como uma desculpa por estar sozinha. Levanto e crio sorrisos, mas sei que algo ocorreu. Algo sem nome, algo que não sei falar. Não sou igual. Uma parte de mim ficou no terror de alguma gaveta. Tenho seis anos e invento palavras feias. Sei hoje, na distância de ser uma mulher culpada. Antes ficava dentro da porta, hoje não considero esse lugar. Ele se perdeu pelo caminho de minha vida. O mundo dorme. A noite permanece. E inocente não entendia todo o processo de dor. Do corpo que se fixa na alma. A alma se viola porque não pode mais suportar em si. Estou na fuga da porta fechada a tentar não esbarrar em gavetas. O escuro vem. É a hora dele. Quero escapar fechando só os olhos. Mas não posso me levantar da cama da minha infância. Estou de olhos fechados, mas não consigo ver flores. Sinto olhos em mim. As gavetas se arrastam pelos cantos, querem me puxar para seu dentro. Não é a noite, é outra coisa cujos dentes me sorriem em fome. De olhos fechados rezo à Maria. Rezo sozinha para o quarto sem luz. O escuro tem forma de pessoa. Linhas de adulto. Segredo de gavetas.

    4

    O telefone toca. Acabei de pintar as unhas. Tiro o fone do gancho e mantenho o cigarro na boca. Quero beber o conteúdo da garrafa. Preciso terminar as unhas dos pés. É mamãe. Ela fala coisas que não entendo. Quase posso vê-la gesticulando daquela maneira nervosa. Ela perdeu os cabelos. Usa uma peruca velha que ganhou na igreja. Está bebendo demais e sei que me pedirá dinheiro para comprar cigarros. Não, dessa vez ela fala de papai.

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