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Desquite!
Desquite!
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E-book606 páginas1 hora

Desquite!

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Sobre este e-book

Clarice, de Belo Horizonte, tem 27 anos e trabalha como assistente em um escritório de advocacia especializado em divórcios no edifício Maletta. Ela é insegura e está em um casamento fracassado e vê sua vida se tornar insuportável quando resolve se divorciar do homem ciumento, violento e sádico. Sem o apoio dos pais que vivem junto com o casal ela resolve procurar ajuda de sua tia Samara, uma mãe de santo que por vingança faz um feitiço para que um demônio entre na vida da família de Clarice a incitando ao suicídio e assassinato. Para ter novamente o controle de sua vida e se livrar do marido, Clarice precisará enfrentar sozinha seus medos, seus pais, sua fé, um passado de traumas familiares, dificuldades financeiras, o demônio invocado por Samara, um ser ardiloso, sedutor e sem limites para o mau transfigurado no corpo de Lucas e alguém ainda pior, Matheus seu pastor e marido.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de nov. de 2018
Desquite!

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    Desquite! - Samir Horta

    Desquite! 

    Clarice enfrentará até o demônio para 

    se livrar do marido 

    Samir Horta 

    Sumário: 

    1 ............................................................................................................................. 5

    2 ........................................................................................................................... 10

    3 ........................................................................................................................... 15

    4 ........................................................................................................................... 20

    5 ........................................................................................................................... 27

    6 ........................................................................................................................... 33

    7 ........................................................................................................................... 39

    8 ........................................................................................................................... 46

    9 ........................................................................................................................... 51

    10 .......................................................................................................................... 56

    11 .......................................................................................................................... 63

    12 .......................................................................................................................... 68

    13 .......................................................................................................................... 75

    14 .......................................................................................................................... 79

    15 .......................................................................................................................... 84

    16 .......................................................................................................................... 92

    17 .......................................................................................................................... 96

    18 ......................................................................................................................... 101

    19 .........................................................................................................................106

    20 ........................................................................................................................ 111

    21 ......................................................................................................................... 117

    22 ........................................................................................................................123

    23 ........................................................................................................................129

    24 ........................................................................................................................135

    25 ........................................................................................................................140

    26 ........................................................................................................................144

    27 ........................................................................................................................149

    28 ........................................................................................................................155

    29 ........................................................................................................................162

    Desquite, por Samir Horta 

    30 ........................................................................................................................168

    31 .........................................................................................................................173

    32 ........................................................................................................................178

    33 ........................................................................................................................183

    34 ........................................................................................................................190

    35 ........................................................................................................................196

    36 ........................................................................................................................201

    37 ....................................................................................................................... 206

    38 ........................................................................................................................210

    39 ........................................................................................................................217

    40 ....................................................................................................................... 223

    41 ........................................................................................................................ 228

    42 ....................................................................................................................... 234

    43 ....................................................................................................................... 238

    44 ....................................................................................................................... 243

    45 ....................................................................................................................... 250

    46 ....................................................................................................................... 255

    47 ....................................................................................................................... 260

    48 ....................................................................................................................... 263

    49 ....................................................................................................................... 268

    50 ....................................................................................................................... 273

    51 ........................................................................................................................ 280

    52 ....................................................................................................................... 284

    53 ........................................................................................................................291

    54 ....................................................................................................................... 295

    3 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    Dedicado a minha filha Giovanna.  

    4 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    — "A mulher está ligada a seu marido enquanto ele viver. Mas, 

    se o seu marido morrer, ela estará livre para se casar com quem quiser, 

    contanto que ele pertença ao Senhor.".  

    Discursou Maria Clara, mãe de Clarice, como se estivesse lendo 

    o livro de Coríntios na bíblia.  

    — Até o momento, que eu saiba, Matheus está vivo. Então trate 

    de obedecer às ordens de Deus. 

    Clarice passou a mão esquerda sobre a caneca de café sentindo o 

    vapor  que  se dissipava  no  ar  e  com  o polegar  esfregava  sua  aliança  de

    casamento 

    tentando 

    inutilmente 

    fazê-la 

    brilhar. 

    Balançava 

    freneticamente uma das pernas esperando a chegada de sua amiga Carla 

    que estava atrasada para um encontro que aumentava ainda mais a raiva 

    de Maria Clara. Havia enchido a caneca pela terceira vez, mas não bebeu 

    e Maria Clara fechava a cara cada vez que a garrafa era colocada de volta 

    na bandeja sem endireitá-la.  

    A jovem de pele tom chocolate, incomodada, desviava o olhar 

    em direção a um crucifixo preso na parede a sua frente, mas logo virava 

    novamente o rosto. O efeito de sombras e luzes da pintura criava uma 

    ilusão de que a imagem de cristo a observava seguindo seus movimentos 

    com um olhar tão severo quanto ao de sua mãe, cujo silêncio era mais 

    intragável do que suas palavras. Dava pra ler nas linhas da pele rugosa de 

    seu  rosto,  uma  lista  de  motivos  que  ela  repetiria  por  dezenas  de  vezes

    para evitar que a filha saísse de casa à noite naqueles dias terríveis. 

    Uma dama da noite deixava seu rastro forte de perfume entrar 

    pela fresta fechada da janela da sala do sobrado antigo no bairro Sagrada 

    Família em Belo Horizonte. Maria Clara não queria que nenhum vizinho 

    ouvisse seu diálogo e não se importava que se sentissem sufocadas.  

    — Sabe que ao trair novamente a confiança de seu marido e sair 

    por aquela porta você vai deixá-la aberta para a entrada do diabo!  

    Um  arrepio  frio  subiu  pela  espinha  de  Clarice.  Não  era  a 

    primeira vez que mãe profetizava alguma tragédia sobrenatural. Desde o 

    5 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    tempo  de  infância  dizia  ver  sombras  caminharem  pela  casa  e 

    sussurravam o que estava por vir e nunca lhe trouxeram boas noticias.  

    O  marido,  Matheus,  era  um  pastor  de  trinta  e  seis  anos, 

    fundador  da  prospera  IDFE,  Igreja  Divina  Família  Eterna,  na  região

    oeste  da  capital  mineira,  mais  precisamente  no  bairro  Vista  Alegre

    próximo  ao  cemitério  Parque  da  Colina,  porem  os  familiares  nunca 

    ousaram  perguntar  o  motivo  de  ele  morar  tão  longe  de  seu  local  de

    trabalho.  

    Ele  herdou  dos  pais  a  casa  onde  morava  com  a  família  de 

    Clarice  e  após  uma  discussão  em  que  a  mulher  insinuou  terminar  o

    relacionamento,  ameaçou  entrar  na  justiça  para  coloca-los  na  rua 

    definitivamente.  Sempre  foi  um  homem  influente  e  podia  pagar  bons 

    advogados e isso aterrorizava os pais da morena de cabelos cacheados.  

    O pastor estava fora de casa há alguns dias e Maria Clara, que 

    tinha pesadelos ao imaginar os vizinhos assistindo seu despejo, culpava a 

    filha e fazia questão de lembrar a ordem do rapaz, que determinou que 

    ao voltar, a esposa deveria estar dentro de casa o aguardando com um 

    sorriso no rosto e impecavelmente vestida. Eventualmente Matheus dizia 

    que  iria  para  algum  retiro  espiritual,  sumia  por  dois  ou  três  dias,  mas

    voltava sempre com um semblante iluminado e com o humor um pouco 

    menos amargo, porem já havia se passado mais de duas semanas e nem 

    na igreja ele havia dado as caras.  

    A sogra de olhos pequenos e óculos fundo de garrafa omitia da 

    filha  uma  informação  que  talvez  aliviasse  a  ansiedade  da  esposa.  Não

    comentou  que  alguns  fiéis  haviam  ligado  para  sua  casa  dizendo  que  o

    pastor havia deixado dois banners gigantescos, um com a própria foto e 

    outro com a imagem de Jesus e eles precisavam saber qual ficaria do lado 

    direito do altar . Na igreja ele havia dito que viajaria a negócios, mas que

    voltaria  em  breve  e  os  fieis  não  demonstravam  preocupação  aparente

    com sua ausência, mas mesmo na posse da informação, preferiu deixar a 

    esposa  do  religioso  apreensiva  e  aumentar  ainda  mais  a  sensação  de

    culpa.   Tentando encontra-lo para terminar de resolver assuntos sobre 

    o pedido de separação, Clarice ligou para os parentes que moravam em 

    São Paulo, mas ouviu que o rapaz não visitava a família há mais de cinco 

    anos e que não tinham mais nenhum contato.  

    6 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    Sem encarar a filha que buscava no celular o numero da amiga 

    Carla, comentou: 

    — Matheus é um homem justo igual a Ló!  

    Clarice olhou para trás, na direção da porta que estava trancada 

    e trêmula conferiu mais uma vez as horas. 

    — Abra mão de seu orgulho menina. Ele te perdoará e a gente 

    vai sair dessa fria.  

    — Não quer saber o que ele me fez, mãe? As paredes escondem 

    muitas coisas.  

    Maria Clara desviou o olhar.   

    — Eu vou manter meu casamento e ir levando a vida até o dia 

    que Deus resolva olhar pra mim e tirar essa cruz das minhas costas. Se 

    for isso o que quer.  

    — Você jurou a Deus, diante do padre, permanecer casada até a 

    morte!    Quer  saber?  São  essas  más  companhias  que  estão  te 

    influenciando.  

    — Está falando sobre Carla? Ela te fez alguma coisa, mãe? 

    —  Sim!  Ela  disse  a  você  que  Matheus  está  se  tornando  um 

    carrasco.    

    — Talvez ela esteja certa. 

    — Certa está a bíblia quando diz: "diga com quem tu andas e eu 

    lhe direi quem és".  

    —  Ela  prometeu  me  ajudar  e  por  isso  aceitei  o  convite.  A 

    senhora  sabe  muito  bem  o  quanto  ela  o  conhece  e  eu  não  me  sentiria

    bem desmarcando um compromisso em cima da hora. 

    — Não duvido nada do que aquela devassa será capaz de fazer 

    hoje. Vai tentar te influenciar novamente. Ela é igual a um demônio que 

    finge ser um amigo e a esfaqueia pelas costas. 

    Maria Clara esfregou as mãos no rosto e perguntou: 

    —  Contou  a  sua  amiguinha  sobre  aquele  outro  motivo  de 

    Matheus ter que voltar? 

    Clarice negou balançando a cabeça e a mãe abaixou as armas.  

    —  Vou  passar  a  noite  rezando  para  que  o  Senhor  a  proteja  e 

    tampe seus ouvidos para que não ouça os conselhos daquela devassa. 

    Estavam  sentadas  frente  a  frente  na  mesa  da  sala  de  jantar  e 

    observava  a  roupa  que  Clarice  levou  horas  para  escolher.  Um  vestido

    7 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    amarelo,  no  tom  de  um  chama  de  vela,  longo,  cujo  tecido  insistia  em

    percorrer o caminho de suas curvas e com um decote sutil que somente 

    a mãe insistia em enxergar além do que podia ver.  

    A mãe da jovem de vinte e sete anos levantou-se e ajeitou a gola 

    do vestido da filha 

    — Quer que alguém a veja desleixada desse jeito? 

    Clarice  ajeitou  o  cabelo  para  trás  e  se  endireitou  na  cadeira 

    cruzando as pernas e os braços.  

    — A senhora me amaldiçoa sem sequer me ouvir.   

    — Eu não sou capaz disso, mas o profeta Samuel nos preveniu 

    sobre  a  desobediência.  Eu  devia  acender  uma  vela  e  colocar  sua  mão

    sobre a chama até esturricar! 

    Maria Clara segurou a mão da filha e observou que estava com 

    uma  pequena  mancha  de  tinta.    Encarou-a  nos  olhos  e  lhe  apertou  os

    dedos com raiva.   

    —  E  se  o  Matheus  te  vir  em  um  bar  com  a  pior  companhia 

    possível o que será de nós? 

    — Minha amiga jurou que ela planejou tudo eu confio nela.  

    — Confia numa perdida! Pra sair às escuras? 

    — Eu prometo que não farei nada que a envergonhe. Assim que 

    ela chegar eu saio discretamente daqui e volto rapidinho. Tá bom assim?  

    Maria Clara sem se convencer cruzou os braços. 

    Cinco tortuosos minutos depois, Carla parou o carro em frente 

    à casa de Clarice e buzinou três vezes apressada chamando a atenção de 

    toda  a  rua,  em  seguida  colocou  a  cabeça  pra  fora  da  janela  e  gritou  o

    nome  da  amiga  voltando  a  buzinar  atiçando  os  cachorros  que  latiam

    irritados.  

    A senhora de cabelos brancos arregalou os olhos: 

    — Santo Deus! Pra quê esse berreiro? O bairro inteiro precisa 

    saber que você vai sair?   

    Segundos depois Clarice surgiu no portão de grades da frente da 

    casa. Eram pouco mais de dez horas. Debruçada sobre a porta do carro 

    e escondida na escuridão da noite, a amiga não notou que a maquiagem 

    escondia  suas  olheiras  causadas  pelas  ultimas  noites  mal  dormidas  e

    rastros de lágrimas.   

    Caminhou  em  direção  ao  carro  sentindo  o  peso  das  pernas  e 

    8 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    uma força a atraindo de volta para casa, como se a mãe a puxasse com 

    uma corda invisível. Pretendia voltar antes do horário combinado. Sabia 

    bem  o  que  enfrentaria  caso  não  cumprisse  as  normas.  As  amigas  se

    cumprimentaram com um beijo no rosto e deram as mãos.  

    —  Gostou  do  meu  cabelo  novo  ultra  sexy  capaz  de  deixar 

    qualquer homem se arrastando aos meus pés? 

    — Vermelhaço! 

    — Queria que ficasse lindo igual ao seu, mas é impossível.  

    O motor do carro fez alguns ruídos estranhos e depois de algum 

    tempo ligou soltando uma fumaça que tomou conta da rua. A amiga de 

    Carla olhou para trás observando a entrada da casa que se afastava. Dava 

    pra ver Maria Clara pelas grades do portão endireitando o capacho antes 

    de bater a porta.  

    9 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

       Clarice ajeitou-se com dificuldade no banco do passageiro. Carla 

    a olhou com o canto dos olhos.  

    — Não reclame. Aquele seu Monza 89 é pior que meu Celtinha 

    e você não têm coragem de vender ou doar para um ferro velho.  

    —  Não  mesmo.  —  Respondeu  Clarice  reclamando  do  vestido 

    apertado e lamentando ter comido demais nos últimos dias: 

    — Queria ter coragem de usar um vestido soltinho e curtinho 

    assim. Nem dar trabalho pra colocar.  

    — Na verdade, Lice, é facinho de tirar!  

    A amiga sorriu com o rosto ruborizado.   

    — Se quiser te empresto. Temos a mesma altura praticamente. 

    Não  demos  sorte  e  não  passamos  do  um  metro  e  sessenta.  O  que 

    importo é que não gosto desse seu jeito cafona de se vestir.  

    — Não exagere Carla.  

    — Parece uma beata dos anos 70. Nenhum homem nunca vai te 

    olhar com essa roupa. Por acaso usa as roupas antigas da dona Maria? 

    Percebendo  que  Clarice  não  gostou  do  comentário,  Carla  a 

    perguntou  o  motivo  pela  qual  parecia  aborrecida.  Acostumada  com  os

    comentários  algumas  vezes  vorazes,  ajeitou  seus  cabelos  cacheados  e

    respondeu com uma pergunta enquanto fazia o sinal da cruz.  

    — Acha que praga de mãe pega?  

    —  Não  me  diga  que  ela  veio  novamente  com  aquele  papo 

    furado de demônio entrar pela porta. 

    — Sim, mas dessa vez ela estava tão convicta.  

    — Fala pra sua mãe que o capeta já está morando com ela faz 

    um  tempão.  O  nome  dele  é  Matheus  e  pra  ficar  perfeito  só  falta  ter

    chifres. Você devia, antes de conseguir se divorciar, colocar alguns nele 

    pra combinar…  

    A amiga riu pela primeira vez naquele dia. Carla comentou: 

    —  Pobre  dona  Maria.  Da  última  vez  que  passei  aqui  sua  mãe 

    estava com cara estranha. Um semblante sério. Pra falar a verdade uma 

    10 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    cara de bunda... Ficou de pé ao lado da caixa do correio picotando uma 

    carta em milhões de pedacinhos.  

    — É preocupação. Malditas cartas! Eu mato o Matheus! 

    —  Seu  marido  manda  cartas  pra  sogra  que  mora  na  mesma 

    casa? Que idiota. Será que ele não muda?  

    — Não… esquece Si.  

    — Quer saber. Acho que não é preocupação o que a dona Maria 

    sente.   — E o que seria? 

    —  Sabe  quando  a  mulher  fica  muito  tempo  sem  transar? 

    Então… era essa cara. Seu pai dá no couro ainda? Ele tá tão acabadinho. 

    A cara dela não me engana… mas tem horas que eu acho que ele é até 

    mudo. Parece um boneco de cera.  

    — Eles dormem no mesmo quarto, mas em camas separadas.  

    Clarice  pegou  um  espelho  na  bolsa  e  observando  o  rosto 

    retocou  a  maquiagem.  Não  quis  comentar  o  quanto  Maria  Clara  havia

    rezado  ao  seu  lado  ao  saber  que  ela  sairia  com  sua  amiga  e  evitou  dar

    corda a conversa que envolvia seus pais.  

    — Cara, você precisa dar um jeito nessa tua vida, antes que seja 

    tarde demais. — Comentou Carla.  

    — Por que diz isso? 

    —  Eu  conheço  esse  tipinho  de  homem.  Não  demora  ele  te 

    prender com uma corrente no pé da cama.   

    — Que horror. Não exagere Carlinha.  

    — Faz quanto tempo que o canalha não volta? 

    Ela conferiu a hora e fez os cálculos.  

    — Vinte e dois dias, quatro horas e alguns minutos.  

    —  Deus  seja  louvado!  Vamos   bebemorar!  —  Berrou  Carla 

    levantando os braços.  

    Assustada a passageira se esticou para segurar o volante, mas a 

    motorista logo ajustou a direção do carro.  

    — Se chegar a trinta dias minha família vai estar em apuros e a 

    culpa será minha. 

    —  Eu  tô  ligada  que  você  vai  precisar  que  o  canalha  volte  e 

    como prometi vou a ajudar resolver essa situação. Você vai conseguir se 

    livrar dele e ter um lugar pra ficar.  

    11 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    Clarice preferiu não confessar, mas queria sim ser a dona de sua 

    alma  novamente.  Enterrar  seu  casamento  fracassado  em  uma  cova 

    profunda que já havia sido cavada por Matheus e onde já estava os restos 

    mortais  da  paixão  que  sentiu  no  início  do  relacionamento,  mas  sequer

    tinha forças para mover a terra e deixar no passado seu maldito presente. 

    Precisava  aprender  a  desatar  os  nós  que  a  cada  dia  aumentavam  e  a

    impediam de se libertar: O medo, a necessidade, a fidelidade prometida 

    diante do padre, oposição da família…  

    —  Você  sabe  né  Lice  que  nem  mesmo  a  primeira  família  deu 

    certo. O casal traiu a Deus, imagine. E um de seus filhos matou o outro 

    por ciúmes. Isso porque foram unidos pelo criador heim! Sabe o que eu 

    acho?  Que  Deus  apartir  desse  dia  não  permitiu  mais  que  seus  anjos

    interferissem nos relacionamentos.   

    — Será que foi daí que surgiu o ditado que em briga de marido 

    e mulher ninguém deve meter a colher? — Perguntou Clarice forcando 

    um sorriso.  

    Enquanto Carla fazia a ultima curva, Clarice abaixou a cabeça e 

    fechou os olhos com força tentando conter algumas lágrimas que batiam 

    a porta tentando se libertar. Abriu a bolsa para conferir se levava consigo 

    a foto de São Golias entre seus documentos e aproveitou para colocar 

    algumas pulseiras repletas de amuletos, âmbar e pedras. Não acreditava 

    que fossem mágicas, mas se sentia protegida de alguma forma por elas. 

    Foram  presentes  de  sua  tia  Samara,  dona  de  uma  loja  de  artigos 

    esotéricos  próximo  ao  mercado  central,  poucas  ruas  abaixo  do  local

    onde trabalhava.  

    —  Pra  que  esse  tanto  de  amuleto  Lice?  Tá  com  medo  de  ser 

    morta?  — Estou sentindo um mau agouro, uma presença estranha. É 

    como se uma entidade espiritual me observasse. Veja meu braço como 

    arrepiou só de falar!  

    — Sarava morena! Pé de pato mangalô três vezes!  

    Clarice passou a mão pelo peito e faz uma careta.  

    — Alguma coisa me diz que Maria Clara estava certa. Essa noite 

    eu vou encontrar um demônio.  

    Ao chegarem à região da Savassi, Carla puxou sua amiga pelas 

    mãos  quase  a  arrastando  em  direção  ao  Restaurante.  Clarice  de  cara

    12 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    fechada caminhava de cabeça baixa. Não queria correr risco de esbarrar 

    em  algum  conhecido  que  iria  perguntar  sobre  o  marido.  Nas  calçadas

    repletas de mesas e cadeiras, sempre ocupadas por pessoas de todas as 

    idades,  era  quase  impossível  não  encontrar  alguém  familiar,  mas 

    entretidos  com  os  sabores  das  cervejas  artesanais  e  musicas  ao  vivo,

    ninguém a notava, mas ela não respirou aliviada. Temia ser vista também 

    por desconhecidos. Imaginava que os olhares curiosos em direção a sua 

    pele morena e seus cabelos negros e cacheados quase na altura dos seios, 

    serviam  apenas  para  afirmar  que  todos  sabiam  de  seus  problemas 

    conjugais. Talvez aquelas pessoas tivessem uma visão capaz de perceber 

    as  marcas  de  agressão  por  detrás  da  maquiagem  que  as  cobriam 

    perfeitamente e a julgassem por se sentir incapaz de dar um fim ao seu 

    relacionamento. 

    Reclamou  que  o  local  estava  cheio  e  pediu  a  Carla  para  irem 

    para um bar discreto na rua de baixo. Temia que Matheus aparecesse. 

    — Mas não é isso que você quer Lice? Que essa assombração 

    apareça?  — O que acha que aconteceria? 

    — Se fosse antigamente ele viria de joelhos te pedindo perdão. 

    É claro! 

    — Duvido, mas o que você faria nesse caso? 

    — Se viesse com teatrinho pro meu lado eu esmagava as bolas 

    dele com meu salto alto.     

    —  Tá.  Eu  faço  isso  e  depois  vou  morar  debaixo  da  ponte 

    sozinha porque meus pais certamente enfartariam... 

    — Enfartam nada. Só fazem drama.  

    — Tá e se passarem a me odiar? 

    — Bobagem.  

    —  Nunca  te  mostrei  o  que  Matheus  guarda  na  gaveta  do 

    quarto?  Carla tentava se lembrar, mas não conseguia. Esticava-se para 

    ver a mesa no fundo do restaurante.   

    — Você tá verde Lice. Tá tudo bem? 

    — Esse cheiro de pão de alho está me dando enjoo. Acho que é 

    o orégano. Sentiu o futum? 

    — Pare de frescura. Não invente desculpas pra ir embora. Mais 

    13 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    alguém sabe que viríamos aqui?  

    — Não. Ninguém. Quer dizer, apenas minha mãe. Ela me fez 

    contar até o que eu iria comer essa noite.  

    —  Então  fica  tranquila,  porra!  Acha  que  sua  mãe  a  trairia  e 

    contaria para o genro?  

    Uma  hostess  orientava  os  clientes.  Aproximou-se  com  um 

    sorriso e após conferir os nomes na lista e pedir para ver os documentos 

    de identidade, comentou: 

    — Boa noite Dona Clarice! A Senhora está sendo aguardada. O 

    rapaz que a espera já está à mesa ansioso por sua chegada e encomendou 

    um excelente vinho! Já vou lhe indicar onde ele está! 

    Ela arregalou os olhos e encarando Carla gaguejou:  

    — O que você fez?  

    14 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

     Clarice  continuava  paralisada  ao  lado  de  Carla  na  fila  do 

    restaurante. 

    — Você chamou Matheus? Ele está aqui? 

    — Claro que não! Fique calma. Eu lhe disse que eu tinha algo 

    que a ajudaria e vou cumprir a promessa.  

    Um pouco aliviada se esforçava em parar de imaginar a reação 

    do marido se a visse em um bar cheio de homens solteiros.  

    Carla  tentando  tirar  a  amiga  de  seu  transe  momentâneo  falou 

    bem perto de seu ouvido: 

    —Você  tem  que  encontrar  um  cara  pra  te  jogar  na  cama  e  te 

    pegar de jeito. Nada como um cara que fode gostoso pra te libertar desse 

    estresse. — Tá e depois? 

    — Encontre um cara rico e resolve sua vida!  

    —  Ah  sim  claro!  Boa  ideia  e  depois  de  uma  semana  eu  levo 

    meus pais pra casa desses ricaços? 

    —  Exato!  Esses  caras  alugam  apartamentos  e  dão  tudo  que 

    quiser  em  troca  de  sexo.  Detestam  as  esposas  frescas  que  não  sabem

    nem fazer um boquete. Podem até contratar seguranças...  

    — Você parece que veio de outro planeta. Devia saber melhor 

    do que eu que trocar de homem é trocar de problema. A única coisa que 

    preciso é que me ouça. 

    — Ok, mas se vier com aquele papo de que seu lindo esposo vai 

    mudar  por  mágica,  como  se  depois  de  beijá-lo  ele  deixasse  de  ser  um

    sapo e se transformasse em príncipe, eu te mato. E nem ouse me falar 

    que  a  culpa  pelo  mal  caráter  do  Shrek  é  sua  e  blá,  blá,  blá...  Vou  logo

    avisando que dessa vez eu é que vou te dar uns tapas nos beiços, porque 

    não aguento mais essa sua conversa fiada. Pau que nasce torto nunca se 

    endireita e ponto final!  

    Clarice não reclamou. Em casa o único que a ouvia era seu gato 

    15 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    Basílio, depois que ganhava um pouco de sachê de salmão e deitava no 

    colo dela para dormir e fingir e compreender suas confissões.  

    A hostess chamou por elas apontando para o fim do corredor.  

    Clarice puxou o ar com toda a força de seus pulmões e tentou se 

    manter  calma  para  não  borrar  a  maquiagem  com  seu  suor.  Enquanto 

    atravessava por entre as mesas observava sutilmente as pessoas no local. 

    Todas  pareciam  felizes  e  isso  lhe  causava  um  estranho incomodo.  Um

    pensamento mais forte a dizia que ela era a única pessoa infeliz naquele 

    lugar repleto de risos e isso a deixava abatida.  

    Com  um  sorriso  exuberante  Carla  apontou  para  um  homem 

    bem mais jovem do que ela: 

    —  Aquele  gato  na  mesa  do  fundo  é  meu  novo  namorado, 

    Hamilton! 

    — E o Marcelo, o amor de sua vida?  

    — A fila andou. Ele era chato pra caralho!  

    Enquanto  Hamilton  gentilmente  ajeitava  a  cadeira  para  a 

    namorada ela apontou para um homem que os acompanhava: 

    —  E  esse  é  Carlos.  —  Apontou  Carla  enquanto sentava-se  ao 

    lado do namorado.  

    Sem  opção,  Clarice  ficou  ao  lado  de  Carlos  e  esfregando  as 

    mãos  contava  até  dez  para  não  explodir  de  raiva.  Em  silencio  olhava

    discretamente para Hamilton que beijava Carla de uma maneira que ela 

    só havia visto em novelas. Era quente e intenso. Dava pra ver as línguas 

    cruzando.  Encabulada,  tentava  resistir  à  tentação  de  olhar  para  aquele

    gesto que parecia que terminaria em um sexo selvagem sobre a mesa ou 

    em um gemido de orgasmo. Encarava o casal como uma criança que vê 

    outra  de  mesma  idade  comendo  um  doce.  O  jeito  descontraído  e 

    confiante  da  moça  de  cabelos  vermelhos  demonstrava  um  domínio 

    completo  sobre  seu  parceiro.  Controlava  onde  as  mãos  do  rapaz 

    deveriam estar e o fazia a olhar com desejo. Tinha a habilidade incomum 

    de  uma  marionetista.  Queria  ter  ao  menos  um  décimo  daquela 

    habilidade. 

    No  canto  da  mesa,  enquanto  Carlos  se  esforçava  para  puxar 

    assunto.  Clarice  apenas  ouvia  o  murmurinho  de  dezenas  de  pessoas 

    falando  ao  mesmo  tempo  e  o  incomodo  som  se  misturando  a  música 

    sertaneja que contava historias de traições. Queria gritar toca Raul! ou 

    16 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

    chutar a mesa e ir embora, mas seu desejo não ultrapassava o limite da 

    vontade.  — Por que o senhor está me olhando? — Perguntou Clarice 

    desconfiada de Carlos.  

    — Bonito esse crucifixo em seu bracelete. 

    Ela  escondeu  a  mão  debaixo  da  mesa  a  colocando  sobre  o 

    joelho.  — Por acaso trabalha com joias pra ficar reparando no que as 

    pessoas usam? 

    — Eu fui seminarista e tinha uma coleção de crucifixos antes de 

    abandonar a carreira. 

    — Nem padre tá tendo fé? Que horror. — Comentou Clarice 

    arrancando um sorriso indesejado de Carlos. 

    — Eu defendia uma tese que irritou meus colegas da igreja.  

    Carlos  discursou por  alguns  minutos sua  teoria  de  que anjos e 

    demônios  se  materializavam  com  formas  humanas  convivendo  em 

    sociedade  Ao  menos  por  alguns  instantes  o  som  da  musica  chiclete 

    desapareceu e deu lugar ao som da voz do rapaz.  

    — Demônios podem entrar em nossas casas moço? 

    — Claro! Esse é o trabalho deles! Divertem-se com isso.   

    Hamilton ria discretamente da invenção do amigo e Carla não se 

    conteve:  

    — Mentira! Carlos deixou o seminário porque não conseguiria 

    viver o celibato. Esse cara tinha uma namorada linda, mas ela o pegou na 

    cama com outra. Acredita? Conte pra Lice como foi…  

    — Não precisa. Eu já imagino como deve ter sido. 

    A  música  chata  voltou  a  se  tornar  estridente  na  voz  aguda  da 

    dupla sertaneja.  

    —  Mas  se  tornou  um  grande  empresário.  —  Completou 

    Hamilton tentando chamar a atenção de Clarice que fez cara de nojo.  

    Um  dos  cantores  anunciou  que  havia  um  pedido  de  música 

    especial.  — Se tocar Amado Batista eu juro que levanto daqui e vou 

    embora! — Ralhou Clarice.  

    Ao  ouvir  o  nome  da  música  Clarice  sentiu  as  pernas 

    bambearem. Era uma versão acústica da canção Run for your Life, dos 

    17 ] 

    Desquite, por Samir Horta 

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