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O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)
O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)
O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)
E-book615 páginas8 horas

O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)

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Sobre este e-book

Da sutil insinuação à sacanagem mais escancarada, este segundo volume de contos eróticos, organizado pela professora e pesquisadora Eliane Robert Moraes, conduz o leitor por uma excitante senda construída pelos mais brilhantes narradores da literatura erótica brasileira dos últimos cem anos. Com seu pensamento filosoficamente sofisticado, a autora demonstra que ao trazer o sexo à tona a literatura trata de vida e de morte, as principais questões da existência. O livro reúne mais de 80 textos, escritos a partir de 1922, que incluem desde mestres veteranos do erotismo, como Nelson Rodrigues e Hilda Hilst, passando por autores que transitam sutilmente pelo gênero, como Otto Lara Resende e Olga Savary, até a geração mais recente, em que as mulheres se lançam sem reservas, ombreando com os homens na forma picante com que tratam o tema.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jan. de 2023
ISBN9786554390576
O corpo desvelado: contos eróticos brasileiros (1922-2022)

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    O corpo desvelado - Eliane Robert Moraes

    acoisaforadesi

    Eliane Robert Moraes

    Há coisas incomensuráveis: Deus e o amor carnal

    Marina Zvétaieva (Correspondência, 1933)

    ...carne penetrável, gozável, e ponto final. Isso me faz sentir vazio de nome, identidade, livre do peso de ser o velho e gasto eu mesmo, como o rio que perde forma quando se entrega às águas do mar.

    Reinaldo Moraes (Pornopopéia , 2008)

    O que se sabe do corpo erótico além daquilo que não se sabe?

    A questão é ardilosa, mas a resposta não demora a se impor: o que se sabe desse corpo é, de fato, muito pouco. Tão pouco que o empenho em desvelá-lo atravessa as mais distantes paisagens e os mais remotos tempos, para se repor continuamente sem jamais encontrar termo. Talvez caiba afirmar até mesmo que, quanto mais se acumulam as inventivas para se constituir um saber sobre a vida sexual, mais e mais insondável ela permanece.

    Não surpreende então que, sendo o erotismo um objeto privilegiado dos discursos que prometem dizer e mostrar tudo, estes só façam obscurecer ainda mais a matéria de que se ocupam. A rigor, nenhuma verdade se sustenta nesse domínio penumbroso, por mais límpida e precisa que venha a se apresentar. O esforço é em vão: não há luz que esgote a densidade dessa estranha noite, assim como não há nem mesmo palavras adequadas para nomeá-la, como dão prova certos termos esquivos praticados em nossa língua como aquilo, troço, treco, negócio e, sobretudo, coisa, como se verá adiante. O corpo desvelado só pode ser evocado na qualidade de incógnita.

    É nessa condição, portanto, que os contos da presente coletânea vêm se oferecer à leitura, propondo-se menos como reunião de saberes sobre a sexualidade e mais como um conjunto de interrogações ao fundo opaco da matéria erótica que, instalada num corpo sempre provisório, resiste a toda ordem de sentidos. Como que pactuando com essa ideia, Sérgio Sant’Anna se vale da indeterminação própria do tom interrogativo para resumir tal condição em três breves parágrafos:

    Mas como é possível, penetrar num corpo que não é o seu próprio, e ali permanecer, dentro de entranhas, visgos, líquidos, paredes vermelhas que se ajustam como luvas e, ainda mais, dão prazer?

    Ou então, para ela, a mulher, ser trespassada por um osso que não é bem osso, sangue misturado com a carne, cartilagens, contraindo-se e dilatando-se a comandos invisíveis, como se infringíssemos os limites das leis?

    E depois soltar líquidos, fertilizar no desespero do gozo, o que, por sua vez, fará gerar outros seres dotados do mesmo trêmulo desespero?

    A passagem dá início ao conto O sexo não é uma coisa tão natural que, por sua vez, abre a presente antologia. Apesar de tantos inícios, nada há de inaugural aí, uma vez que o texto começa in medias res, com uma adversativa que supõe a continuidade de algo já conhecido há muito, o que é de praxe em se tratando do sexo. Aliás, como se comprova ao longo da leitura, no conto de Sant’Anna proliferam duas funções gramaticais — o mas e, sobretudo, o mais — que agem no sentido de dar prosseguimento a essa coisa iniciada sabe-se lá quando, que segue indefinidamente (busca-se mais, sempre mais) e, quando enfim parece acabar, quer-se mais, sim, muito mais e isso movimenta o mundo. É o que repete mil vezes o narrador num vertiginoso crescendo que está sempre a avançar em direção às profundezas de um território inóspito e inquietante: Sim, mais e mais, como se Eros fosse o Deus único e implacável, justificando todos os crimes, perfídias, vinganças.

    Note-se que, se o texto tende a devolver o corpo ao domínio orgânico — com suas entranhas, visgos, líquidos, paredes vermelhas, sangue e cartilagens —, ele jamais cede ao que quer que seja o natural, como adverte desde o título. Antes, o que prevalece aí é a mesma coisa sem nome que pulsa desde sempre ou, pelo menos, há oitocentos bilhões de sóis, como propõe Ferreira Gullar numa prosa poética também incluída no volume, cujo narrador denuncia o inventor da roda como responsável pelo ressecamento precoce das [suas] afinidades sexuais. Por certo, não escapará aos leitores que esses e outros autores do livro nunca perdem de vista a substância carnal e fugaz que movimenta o mundo.

    Prova disso, no caso de Sant’Anna, está em seu investimento nos dispositivos literários do detalhe e do excesso, que lhe servem para movimentar a própria narrativa. Instaura-se aí um pacto decisivo entre fundo e forma que se beneficia ainda das inúmeras repetições de palavras e conjunções praticadas no texto: estas, a exemplo do advérbio mais, conferem ao escrito um ritmo de forte apelo erótico no qual o ato de repetir e o ato de copular se interpelam cada vez mais, a ponto de se confundirem. Daí a importância de se aludir ao excesso de detalhes, pois, além das abundantes notações fisiológicas, espaciais, estéticas e tantas outras, o conto apresenta uma notável galeria de tipos na qual circulam os mais díspares personagens que vão de maridinhos a amantes apaixonados, de adolescentes a estupradores, de costureirinhas a poetas necrófagos, de solteironas a veados, de putas a medeias, de garotinhas de uniforme a estranguladores, para citar apenas alguns. Em termos de inventário, o compacto conto brasileiro não fica nada a dever aos catálogos dos grandes pornógrafos ocidentais, cujo exemplo mais conhecido talvez seja dado pelos 120 dias de Sodoma de Sade.

    O gênio do autor carioca, porém, excede a habilidade arquivística para transitar com robustez entre a via do detalhamento infinito, aberto às singularidades, e sua incontornável contramão, que se evidencia na menção a um anonimato também constitutivo da vida libidinosa. Observe-se que, antes de esboçar a galeria de tipos, suas descrições iniciais se limitam a identificar protagonistas diferenciados apenas pelo gênero sexual binário. São um homem e uma mulher que atendem por ele e ela, a encenar ações que prescindem de sujeito determinado, enunciadas por um narrador ainda sem identidade, que só mais tarde assumirá a segunda pessoa do plural. O anonimato retorna mais intenso quando a narração abre mão dos contornos da figura humana para se concentrar em partes do corpo que ganham vida própria e autonomia, contracenando com objetos que só existem a serviço do sexo, e exclusivamente do sexo:

    Bundas e seios expostos em todas as bancas de revistas; bocetas veladas como sorvetes que não se deixassem chupar; sexo, sexo, sexo, nos letreiros luminosos dos cinemas, como se o interesse maior do homem fosse contemplar indefinidamente o ato sexual.

    E mais e mais, como se tudo não passasse disso: perfumes, sêmens, preservativos, exames ginecológicos, abortos, espirais contra mosquitos a arderem em hotéis fodidos da zona, como se incenso queimando em templos erigidos em honra a divindades orientais.

    E [...] saias levantadas junto a muros e postes; bonecas estripadas numa necropsia infantil; graves brincadeiras de médico; estupros dentro de carros, matagais, a lâmina de um punhal que faz escorrer, na ânsia, um fino filete vermelho de um pescoço branco, enquanto lá em baixo, entre as pernas, verte-se a vida, a vida, a vida...

    O animado e o inanimado se confundem nessa escrita a um só tempo lancinante e nebulosa, precipitada por um pensamento vertiginoso que acompanha passo a passo a própria vertigem carnal, a ponto de reconhecer até o último fio de vida que anima um corpo moribundo. Tudo se discrimina e, paradoxalmente, tudo se mistura nesse conto que se oferece como um sumário das fantasias eróticas descritas e narradas ao longo do volume, implicando protagonistas, narradores, cenários, atmosferas e situações, mas sem qualquer pretensão de esgotamento. Afinal, não haveria mesmo como esgotar o que é, por excelência, opaco — e tem o infinito por horizonte.

    .......................................................................

    Do corpo erótico só se sabe o que não se sabe.

    A afirmação é ardilosa, mas sua confirmação sempre acaba se impondo. Mesmo assim, cabe insistir que, a cada esforço, o desejo de desvelar esse corpo parece ainda mais eloquente e vivo, como comprovam os inumeráveis testemunhos de sua multiplicação. Se as ciências e artes, no decorrer dos séculos, se lançaram repetidamente a essa infinda tarefa, vale lembrar que, entre as últimas, a literatura se distingue sobremaneira por uma razão muito particular: sendo a arte que mais se expõe ao fantasma, é igualmente a que parece penetrar mais fundo na opacidade da coisa erótica.

    Faz parte dessa opacidade o próprio termo coisa, que comparece com destaque no léxico obsceno de diversas línguas, no mais das vezes envolvido por uma ambiguidade fundamental, que se torna produtiva quando submetida à forma literária. De um lado, por ser uma palavra que pode dizer tudo e não dizer nada, ela se credencia como o significante perfeito daquilo que, a exemplo da famosa formulação socrática, constitui um saber negativo, limitado exclusivamente ao que não se sabe. De outro, porém, uma vez integrada a um determinado vocabulário erótico, a expressão adquire uma curiosa positividade, que decorre mais da oscilação de sentidos do que efetivamente de sua afirmativa.

    Os dicionários de termos obscenos advertem que a palavra coisa, quando relacionada ao sexo, assume diversos significados, não raro alternando entre a designação de uma ação e de um objeto sexual.¹ Nas línguas latinas, pelo menos desde o século XV, sua maior constância diz respeito à nomeação dos genitais, sejam masculinos ou femininos. Mas o termo também pode significar o próprio ato da cópula, sendo que nesse caso o substantivo por vezes se desdobra no inusitado verbo coisar, registrado como sinônimo de fazer, copular. Presente tanto no português brasileiro quanto no lusitano, a forma verbal também comparece em outras línguas, como é o caso do choser francês, que carrega semelhante significado.²

    Importa aqui realçar a potência desse significante como dispositivo de transporte da etérea matéria erótica, razão pela qual esta seleção convoca a própria expressão literal da coisa para abrir e fechar sua reunião de contos. Organizado em nove seções, o conjunto começa com A coisa em si e termina com O espírito da coisa.

    Se o fecundo texto de Sant’Anna está na embocadura da primeira seção, os contos que a ele se seguem apostam, cada qual à sua maneira, em descrições sexuais mais pontuais, sugerindo à primeira vista uma abordagem que vai direto ao assunto. Nada, porém, é exatamente o que parece: a chuva de caralhos de todos os tamanhos e de todas as formas caindo do céu, apresentada por Veronica Stigger, e a apinhada sauna com tanta pica prá todos os lados, descrita por Tobias Carvalho, de repente se submetem a um improvável tom pianíssimo; os comentários do narrador de Vilma Arêas sobre as bocetinhas que inspiram Picasso, e a evocação do ânus solar de Bataille por Fernando Paixão, a desembocar sempre em uma outra história, ganham desdobramentos imprevisíveis; a transa anônima de um casal dentro de um ônibus, narrada por Helena T, e a transa explícita de autodidatas do gênero, detalhada por Amara Moira, tampouco se esgotam no prenunciado excesso, este mais adequado para dar conta do insólito intercurso vegetal do tarado por melancias criado por Pedro Maia Soares. A coisa em si parece apontar, repetidamente, para a coisa fora de si, escapando às expectativas.

    É esse eloquente desvanecimento de sentido a alimentar também a seção final intitulada O espírito da coisa que, de certa forma, resume literariamente as linhas mestras — melhor dizendo: as linhas de fuga — da coletânea. Nada ali é conclusivo e tudo parece retornar a um princípio fantasmático que se propõe como princípio de tudo. Aliás, é o que realmente acontece, a começar da própria organização do livro, já que o último conto, Dueto, retorna à autoria de Sérgio Sant’Anna; ademais, é digna de nota a sugestiva evocação que seu narrador faz dos lascivos afrescos de Pompeia, remetendo a uma fonte arcaica e fundamental da literatura e das artes eróticas do Ocidente.

    Faz parte ainda desse conjunto final a citada Carta ao inventor da roda, de Ferreira Gullar, que repudia os nefastos maquinismos seviciosos encarregados da destruição dos apetites lúbricos, em diálogo com o breve e corrosivo Eros e civilização de Modesto Carone, que tece uma trama sintática de lâminas, carnes e lágrimas. Acrescente-se à lista o irônico Cântico dos cânticos de Dalton Trevisan, que registra uma sedução telefônica no mais cínico tom cafajeste, contrapondo-se à violência lírica de Lygia Fagundes Telles em Tigrela, cuja protagonista é capaz de transfigurar o corpo da amante na mais perigosa, estranha e desejada fera. Nada escapa ao mistério irresoluto que tangencia as vidas dessas personagens, seja quando realizam o sonho de todos, como o narrador de José Agrippino de Paula que transa com Marilyn Monroe, seja quando não conseguem realizá-lo nem nos bordéis, como o protagonista de Valêncio Xavier em O mistério da prostituta japonesa. A fantasia, aqui, engendra invariavelmente um resto.

    De fato, sempre resta algo de oblíquo, de inapreensível e de secreto que faz desses contos o exato oposto daquilo que se costuma atribuir à pornografia de mercado, obcecada pela ilusão de uma exposição absoluta. O resultado é uma incertitude cabal, que se faz presente até no narrador apolíneo de Alberto Mussa, que assim justifica seus erros de cálculo sobre uma violação: Parece absurdo que uma teoria verdadeira seja o somatório de teorias falsas. Sei que não se trata de uma hipótese provável. Paciência. Num universo absolutamente lógico, as coisas improváveis são as únicas possíveis. Ou, exatamente no outro polo, no narrador atarantado de Valêncio Xavier, que baralha os tempos verbais a ponto de subverter a própria lógica do tempo, ao afirmar:

    Eu voltarei outras vezes. Caminharei tantas vezes por esta mesma rua, este mesmo bairro de prostituição. Quantas vezes sentirei na boca o gosto oleoso do gim que vendem por aqui. Algumas vezes fumarei haxixe, três ou quatro vezes deitarei num catre e acenderei o cachimbo de ópio. Uma vez comprei cocaína, não para o meu uso, mas para conseguir do traficante uma informação que, conseguida, mostrou-se sem proveito. Muitas vezes dormi com outras prostitutas no mesmo pequeno quarto do hotelzinho barato, mas sei que nunca mais verei a prostituta japonesa, nem saberei se ela sentiu prazer comigo naquela noite escura. Às vezes penso que sim; às vezes, penso que não. Nunca encontrarei uma resposta que me satisfaça."

    Observe-se ainda, para citar só mais um exemplo, o enunciado em cacos pouco decifráveis da narradora concebida por José Luiz Passos em Vadim:

    Era toda corpo e ao mesmo tempo mulher adepta do xxx, que insultou o opressor com manifestos, artigos, mas desfrutava xxx, direito até então reservado só a pessoas que simplesmente gostavam, para quem os únicos temas eram amor, xxx, por isso aos meus filmes, acho, faltava-lhes uma simplicidade que pudesse agradar ao público mais amplo, não xxx por prazer, sem moral nem justificativas médicas, xxx sem noção, tornar xxx uma afronta, as mulheres e seu xxx, com toda veneração. Acho que sou comunista quanto a isso e aos nossos direitos, pois arte, prazer, xxx são uma e a mesma coisa, o em si, puramente por si…

    Nesta outra pornografia, há sempre um resto, uma sobra, um resíduo que, embora não sejam resgatáveis, também se encarregam de manter o mundo em movimento.

    .......................................................................

    É muito pouco o que se sabe do corpo erótico. Mas alguma coisa sempre sobra para tentar saciar o desejo dos leitores.

    Entre as pontas desta coletânea, emolduradas pela referência à coisa erótica, há sete outras seções que, ao lado das duas indicadas, expõem as linhas de força que organizam o volume. Embora o conjunto geral abarque o período que vai de 1922 a 2022, a estrutura de cada parte não segue o critério cronológico, como costuma ser mais comum em se tratando de antologias.

    O modelo, neste caso, foi dado por uma antologia poética de Carlos Drummond de Andrade, organizada pelo próprio poeta e publicada em 1962. A nota introdutória ao livro, também assinada por ele, faz referência ao curioso termo vertebrado para definir tal forma de organização. Vale a pena reproduzir algumas de suas considerações, pois nelas o autor trata de explicitar o que tinha em mente ao conceber o volume sem observar as fases de sua carreira, esclarecendo que:

    […] Cuidou antes de localizar, na obra publicada, certas características, preocupações e tendências que a condicionam ou definem, em conjunto. A Antologia lhe pareceu assim mais vertebrada e, por outro lado, espelho mais fiel.

    Escolhidos e agrupados os poemas sob esse critério, resultou uma Antologia que não segue a divisão por livros nem obedece a cronologia rigorosa. O texto foi distribuído em nove seções, cada uma contendo material extraído de diferentes obras, e disposto segundo uma ordem interna. […]

    Algumas poesias caberiam talvez em outra seção que não a escolhida, ou em mais de uma. A razão da escolha está na tônica da composição, ou no engano do autor. De qualquer modo, é uma arrumação, ou pretende ser.³

    Em que pesem as grandes diferenças entre o título drummondiano e O corpo desvelado, sem falar do insuperável abismo entre seus organizadores, a ideia de uma antologia vertebrada aproxima ambas as arrumações como possibilidades pertinentes no sentido de desobedecer à cronologia rigorosa. Vertebrado talvez seja uma forma de dar mais opacidade à transparência da edição dos livros — sugere Eduardo Francisco Junior, para completar que se trata talvez, de dar mais intensidade ao enfrentamento do puro arbítrio, ou seja:

    Ao invés da indiferenciação que diz que toda forma de antologia é equivalente, [o vertebrado] vem encarar de maneira mais profunda essa arbitrariedade: não se trata simplesmente de perceber que tudo é circunstancial, trata-se de enfrentá-lo: em cada risca, em cada corte, há um risco, há algo sendo jogado — se tudo é arbítrio, todo verso, todo poema, todo signo pode ser alterado, pode ser refeito, pode ser reinventado; se nada é dado, em tudo há uma escolha, um dilema.

    No que tange a presente seleção, não se deve esquecer que uma edição pautada pelo critério cronológico poderia favorecer interpretações históricas, associando de modo mais límpido os fenômenos sociais e as expressões literárias no século que se estende da década de 1920 à de 2020. Afinal, para citar um só marco crucial, o período testemunhou duas ditaduras no país, sem falar das enormes transformações no plano das sensibilidades que por certo incidiram nas vivências da sexualidade, passando pela pílula e pela AIDS, para chegar com força às questões de gênero. Basta um vislumbre na linha do tempo que integra este livro para se intuir o potencial interpretativo sugerido pelas relações entre a república brasileira e as fantasias eróticas que nela emergiram. Sem prejuízo dessa profícua possibilidade, porém, a arrumação aqui proposta se dispõe a interrogar o que, nessas mesmas fantasias, se dobra à obscuridade do desejo. Tal é, pois, o critério que orienta a sua ordem interior.

    Assim, o que se privilegia no volume é o próprio recorte da seleção, já que o erotismo nem sempre se acomoda de forma confortável em sequências históricas lineares. Como bem pontua o narrador do conto A viagem de Modesto Carone, as afinidades do sexo com as medições do tempo não são de forma alguma seguras: no quarto onde ele se encontrava com a amante, por exemplo, o relógio parecia uma coisa fora do lugar e, quando enfim libertado da visão daquele objeto inútil que marcava as horas, o gesto tinha o esplendor de uma senha; a partir daí, o mergulho no baixo-ventre era inevitável. É desse mergulho que se trata aqui.

    Na seção consagrada aos escritos picantes, a imersão se realiza na própria escrita, e em profundidades diversas. Nos contos de Milton Hatoum e Seane Melo, o foco se concentra no potencial lúbrico das leituras e suas consequências carnais, enquanto os textos de Alcântara Machado, Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão e Ricardo Lísias se voltam aos diversos exercícios que a prática da escrita comporta quando atravessada pela libido. Já José Luiz Passos e Péricles Prade interrogam as linhas e as entrelinhas de escritos memorialísticos em que se interpelam o dito, o não dito e o interdito sexual.

    Duas tópicas recorrentes na erótica literária organizam as seções intituladas Das iniciações e De espelhos e revelações. Embora figurem em literaturas de séculos distantes dos aqui referenciados — o que lhes confere uma feição, por assim dizer, clássica —, elas não deixam de evidenciar atualizações significativas. É o que se confirma nas ficções que deixam de lado os tradicionais adolescentes heterossexuais para investigar personagens gays e transexuais (Caio Fernando Abreu, Walmir Ayala) ou mulheres maduras (Marques Rebelo, Nivaldo Tenório), além de diversificar ao limite o perfil das crianças (Rodrigo M. F. de Andrade, Otto Lara Resende). Estas, por vezes, são bem mais perversas do que os adultos com quem contracenam (Haroldo Maranhão, Hilda Hilst), e por certo mais desenvoltas do que o macho supostamente convicto concebido por Reinaldo Moraes em Contramão, cuja inclassificável iniciação enriquece essa lista.

    Semelhante perspectiva ocorre nos contos em torno de espelhos e revelações. Sendo essa a seção que contém os escritos mais antigos do período, assinados por Gastão Cruls e Chrisanthème, note-se que nem estes se acomodam a fórmulas passadas. Ao contrário, é digno de nota o diálogo que travam com ficções mais recentes como aquelas criadas por João Gilberto Noll e Ronaldo Correia de Brito, embora deixem transparecer diferenças com os escritos de Péricles Prade e de Esmeralda Ribeiro, que tomam caminhos diametralmente distintos ao visitarem a mesma tópica. Obviamente que essa constatação dá testemunho da riqueza da coletânea, sobretudo por chamar atenção para as diversas opções formais que aquilatam tais diferenças.

    De outro lado, não deixa de surpreender uma constância nesta reunião que, remetendo fortemente à mencionada opacidade do sexo, incide em duas de suas tópicas. Alinhadas a uma mesma chave noturna, as seções De madrugadas e penumbras e Do que não tem limites se caracterizam pela frequentação dos redutos mais obscuros do erotismo. Na primeira, ora a paisagem exterior ganha estatuto de personagem, a contracenar com narradores homossexuais e femininos que se perdem pelas noites frias e lúbricas (Samuel Rawet, Marcia Denser, Gasparino da Mata), ora a escuridão emana do interior deles para contaminar toda a paisagem a sua volta (Lúcio Cardoso, Ricardo Guilherme Dicke), mesmo se limitada a um quarto (Hilda Hilst, Raduan Nassar). Já na segunda seção, é a morte que permanece o tempo todo à espreita, enquanto os protagonistas se lançam às mais bizarras e lascivas experiências dos limites (Olga Savary, João Silvério Trevisan, Elvira Vigna, Hilda Hilst, Nelson Rodrigues, Dalton Trevisan), o que não exclui nem mesmo os ecos fúnebres da erótica romântica oitocentista (Humberto de Campos, Régis Mikail).

    Em clave mais amena, a seção intitulada Das incertezas do desejo prefere os lusco-fuscos à escuridão, apostando em jogos eróticos mais ou menos graves como possíveis promessas de gozo ou prazer. Nenhuma garantia de sucesso, porém, já que a tópica se mantém fiel ao princípio da coletânea — nada é bem o que parece —, a começar dos contos O jogo de erros de Alberto Mussa e Aconteceu amor de José Falero. A indeterminação prevalece nas páginas de Marcos Rey, Ivana Arruda Leite, Silviano Santiago e Vilma Arêas, como que a partilhar o título de Natália Borges Polesso, O coração precisa ser pego de surpresa para ser incriminado.

    Cabe citar por fim a chave mais solar de O corpo desvelado, nomeada Das visitas ao paraíso. Mais solar e mais feminina, convém assinalar, uma vez que, dos dez títulos que comporta, sete foram escritos por mulheres. A constatação, porém, demanda aprofundamento, pois, à primeira vista, não se percebem diferenças de base entre os contos de autoria feminina — de Myriam Campello, Ana Miranda, Andréa Del Fuego, Cíntia Moscovich, Ana Paula Maia, Beatriz Bracher e Hilda Hilst — e os outros três, que reúnem Aníbal Machado, Modesto Carone e Evando Nascimento. Seja como for, a totalidade dos textos, de grande diversidade formal, se singulariza por um tom de júbilo, mesmo quando deixa no ar certa melancolia.

    A rigor, o que neles prevalece é uma expressão de plenitude que talvez seja igualmente um dos principais motores a movimentar o mundo. Não é por outra razão que o mesmo narrador de Carone, ao confessar que diante do corpo nu de Alma nunca experimentara nada tão necessário, ainda se obriga a completar, categórico: é evidente que nem a cidade moderna gera a abundância com tamanha facilidade. Se a utopia tem um sentido, então é esse.

    Pouco se sabe do corpo erótico. E esse pouco, na literatura, é legião.


    1 Estas observações têm por base uma consulta aos verbetes coisa nos seguintes livros: SANTOS, Carlos Pinto e NEVES, Orlando (eds.). Dicionário obsceno da Língua Portuguesa. Lisboa: Bicho da noite, 1997; ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de termos eróticos e afins. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981; MAIOR, Mário Souto, Dicionário do palavrão e termos afins. Recife: Editora Guararapes, 1980.

    2 GUIRAUD, Pierre. Verbetes Chose e Choser. In: Dictionnaire érotique. Paris: Payot & Rivages, 1993, p. 225. O léxico comporta variações interessantes que, embora não sejam sempre as mesmas em cada língua, revelam conexões de fundo. No Brasil, por exemplo, distingue-se a coisa do coiso, supondo a diferença entre os genitais femininos e masculinos; já na França, a língua popular distingue entre uma forma feminina e outra masculina do significante chose, sendo a primeira relativa a uma ação, e a segunda a um objeto.

    3 ANDRADE, Carlos Drummond de. Nota da primeira edição, 1962. Antologia poética. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. Citado por Eduardo Francisco Junior, O livro vertebrado: a articulação de poemas em Claro enigma de Carlos Drummond de Andrade. Dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2014, p. 10. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-07112014-125945/pt-br.php.

    4 Idem, ibidem, p. 12. Para um aprofundamento do tema, cabe remeter a esse criterioso estudo, em particular ao seu primeiro capítulo.

    notaeditorial

    O corpo desvelado faz par com outro livro, lançado em 2018 também pela Cepe Editora sob o título O corpo descoberto – Contos eróticos brasileiros (1852-1922). Considerados lado a lado, os dois volumes compõem uma Antologia do conto erótico brasileiro, que cobre 170 anos da literatura do país no período que vai de 1852 a 2022.

    Se a sequência das coletâneas se impõe a partir de um critério cronológico, os conjuntos que elas abarcam em separado não se apresentam sob a orientação do mesmo princípio. Antes, foram ambos estruturados a partir de tópicas eróticas que se revelaram as mais constantes em cada reunião, tendo por modelos duas antologias literárias que, apesar de muito distintas, adotaram com sucesso esse tipo de estrutura. A primeira, brasileira, é a Antologia poética de Carlos Drummond de Andrade, organizada pelo próprio autor e publicada em 1962, sobre a qual se discorre brevemente na apresentação deste livro. A segunda, francesa, é a excelente Anthologie de la poésie érotique française (Paris: Fayard, 2004), organizada por Jean-Paul Goujon.

    Justifica ainda tal opção o fato de que, na erótica, os temas transversais não raro se constituem como estruturas internalizadas que aquilatam o plano da forma. Assim, ao invés de ignorar as singularidades formais, a escolha deixa perceber como a literatura responde a tal ou qual estímulo extraliterário, evidenciando o processo de transfiguração que lhe é próprio. Por tal razão, considerou-se interessante a possibilidade de reunir, em cada uma das nove seções, contos que dialogassem entre si, independentemente de sua vinculação aos movimentos literários de cada período. Pretendeu-se com isso iluminar questões de fundo que dizem respeito ao erotismo, abrindo aos leitores a fértil possibilidade de que um conto possa explicar o outro.

    No decorrer da pesquisa, tentou-se sempre buscar a fonte escrita original, mas a prudência obriga a não tomar como exatas todas as referências aqui apresentadas, o que vale ainda para todo o conjunto. Em alguns poucos casos, no intento de tornar a leitura mais fluente, a grafia de algumas palavras foi atualizada, mas de forma geral foram mantidas as expressões originais, mesmo quando estas não condizem com correções históricas mais recentes. Afora isso, os contos foram reproduzidos tal qual aparecem nas fontes elencadas na bibliografia, na qual se encontram por vezes introduções, prólogos, notas explicativas e outras informações que podem ser de interesse.

    Osexonãoéumacoisa

    tãonatural

    Sérgio Sant’Anna

    Mas como é possível, penetrar num corpo que não é o seu próprio, e ali permanecer, dentro de entranhas, visgos, líquidos, paredes vermelhas que se ajustam como luvas e, ainda mais, dão prazer?

    Ou então, para ela, a mulher, ser trespassada por um osso que não é bem osso, sangue misturado com a carne, cartilagens, contraindo-se e dilatando-se a comandos invisíveis, como se infringíssemos os limites das leis?

    E depois soltar líquidos, fertilizar no desespero do gozo, o que, por sua vez, fará gerar outros seres dotados do mesmo trêmulo desespero?

    E quer-se mais, sempre mais. Ele, o homem, fatigado de possuí-la ao modo civilizado dos atuais humanos, agora a quer de costas — e ah, isso machuca, sim, ah!

    Mas quer-se mais, cada vez mais, ainda que seja o prazer junto à dor, entre lágrimas, e ela, a mulher, deseja esse homem gentil e brutal, carinhoso e perverso. Que ele goze egoísta e gemendo e depois role para o lado, como uma besta. E ela ama e protege, a esse bicho. Não se lava do sangue com que ele a marcou e é mesmo capaz de acariciá-lo em seu sono de assassino.

    O sono de ambos, agora, que, no entanto, não significa a trégua mas uma continuação, partilhada com outros corpos e rostos, nas quedas tenebrosas no vácuo dos sonhos. Moços, velhos, de ambos os sexos, indistintos como anjos, demônios, seres bestiais entre fugas e perseguições. Mas todos também dotados desse poder de espadas ou cofres de veludo, a devassarem-se impudicamente, trespassando-se de mil formas, entre gritos e risos, ou mesmo rostos impassíveis, uma obra de Hyeronimus Bosch.

    Então se acorda e olha-se em torno, surpreso, o coração ainda a bater, os olhos vermelhos, hálitos, corpos que perderam o viço dos banhos perfumados, das luzes e máscaras da noite.

    Mas ainda assim procuram-se eles nessa madrugada, agora sob cobertas, se encaixam mais uma vez, sem beijos, como quem não quer ser cheirado ou visto.

    E depois é recompor-se para mais um dia, novos banhos, roupas limpas, o trabalho, a batalha das ruas. E busca-se mais, sempre mais, há outras pessoas, terceiros resguardados nos segredos que trazemos todos e que, se viessem à claridade, fariam desintegrar o nosso mundo.

    E depois desse que a teve à noite, deseja, pérfida, a mulher, um outro mais cruel, se este último foi bonzinho. Ou então, pelo contrário, aquele que ela presumirá gentil e carinhoso, se foi o último o bruto.

    Ah, que me afague e me console, como um paizinho. E se o seu sexo também me corta, ele o faz de um modo tal que é como se não o fizesse, preparando-me com murmúrios incompreensíveis, a palavra que se sopra num ouvido dentro de um desses bares de meia claridade, mesmo durante a tarde, abrigando os sinuosos de conversa e espírito, os homens que sempre conseguem um intervalo livre. E depois, muito aos poucos, como se temesse ferir uma flor, conduzindo-me igual a uma deusa ao templo, a um desses hotéis ambíguos e fosforescentes.

    Mas, ah, esses homens cansam, vivendo apenas da sua fatuidade e de seu esperma ralo. O medo, agora, da mulher, de uma gravidez que só pode levá-la ao aborto do nojo. O que se pratica por se saber impossível amar tal filho e sim o filho do outro, o bruto, o que ama preguiçosamente, o verdadeiro. Que é capaz de dar nela um chute carinhoso na bunda muitíssimas vezes mais bonito do que aquelas palavras vazias. E que quando odeia, odeia — e diz: Sua filha da puta, quase a lhe dar um soco. E que é também capaz de dizer: Vou te usar hoje como se usa uma coisa; vou te comer hoje, minha mulher. E depois secando as lágrimas dela, como se não tivesse dito mais que nada. E que, por fim, é capaz de ceder: Eu gosto de você, minha mulherzinha.

    Ah, esse outro homem — soubesse ela — também pode estar agora, nesta tarde, buscando por sua vez entre duas pernas aquilo que não alcançou com ela e, quem sabe, jamais atingirá.

    Meu Deus, eu quero o prazer maior, ainda que me custe a paz.

    E depois: "Meu Deus, eu quero a paz e não o prazer. E quem é essa que está aqui ao meu lado? Não a sinto, não a conheço. E por que a culpa, Senhor?

    "Ah, minha mulherzinha, quando chegar em casa vou ser gentil contigo; vou te prometer até um filho, porque estou cansado e arrependido, principalmente cansado. Na cidade há um monte de fêmeas e machos andando de um lado para outro, faz calor e o ruído dos carros é insuportável, entre vapores quentes que sobem do asfalto. Alguns desses machos e fêmeas estão absorvidos de um modo tal na subsistência que mal se olham no rosto ou no corpo, ou aquele olhar que vai direto entre as pernas. Mas outros, como nós, cuja subsistência está temporariamente garantida, poderão estar neste momento nos bares que começaram a receber seus fregueses; nos olhares que se trocaram em todos os locais de trabalho e depois, mais tarde, cumprem-se os desejos e promessas, a satisfação e, mais uma vez, o cansaço.

    O que fazemos nós, que já aceitamos tudo com naturalidade, quando, de fato, não passamos de bichos numa queimada da floresta e deveríamos todos correr em busca de um rio, uma vegetação, um oásis, onde, aí sim, talvez pudéssemos saber o que são os nossos corpos?

    A nostalgia, então, dos jantares simples, com pão, sopa, arroz, feijão-preto e carne assada, programas de televisão ou de rádio, crianças que rezam antes de ir para a cama. Casais que se amam como antigamente, gerando filhos, olhando-se nos rostos, beijando-se, sem pedir mais do que uma pacata satisfação…

    Que logo acaba e quer-se mais, sim, muito mais e isso movimenta o mundo. E o maridinho que larga um dia a mulher e vários filhos por causa da putinha, porque esta, sim, sabia simular com perfeição os suspiros e o arranhar do peito e por isso o foi ganhando dia a dia, como doses medidas de cocaína, pedaço a pedaço, porque ele achava, de início, que poderia estar aí a felicidade, e depois simplesmente não podia prescindir desse vício. Até deixá-lo sem ânimo nem mesmo para matar-se.

    E como, meu Deus, pode ser tudo tão natural se aquela outra, costureirinha ou comerciária, toma um dia veneno de rato por causa daquele rapazinho de família que saía com ela de carro e que fazia o sexo com um sorriso quase de deboche, e rompendo-lhe um dia as carnes sem nenhuma preparação ou tato, abrasando-a literalmente? E aquilo passa a fazer-lhe uma falta tão profunda que, à sua ausência, prefere ela morrer entre vômitos e estrebuchando-se: Ou te tenho ou nada.

    E aquele outro, o estrangulador, que depois de haver terminado com a vítima, uma solteirona, ajeita os cabelos dela e a compõe na cama, a cabeça sobre o travesseiro, fechando-lhe a boca e os olhos para apagar qualquer traço de violência ou terror e depois, sentado à mesa, após ter feito para si na cozinha um sanduíche, bebe um gole de coca-cola — como se fosse um patrício romano e sua taça de vinho — e contempla sua obra? Contempla-a, assim, antes de possuí-la, como um epicurista refinado, e não é mesmo pena que ela, morta, não possa viver esse seu momento único de mulher cobiçada?

    E mais e mais. Cópulas delirantes nas masturbações dos adolescentes; revistas emporcalhadas nas mãos dos veados; garotos da roça abraçando-se a árvores ou a animais que não são da sua espécie; moças lambidas por cães; rapazes que deixam passear em seu sexo moscas molhadas na lassidão de um banho quente; torturas sexuais dentro de celas herméticas e incomunicáveis com o mundo, como se o torturador desejasse, desejasse… o quê?

    Sim, mais e mais, como se Eros fosse o Deus único e implacável, justificando todos os crimes, perfídias, vinganças. Milhões de Medeias atravessando os tempos, sacrificando seus filhos ou os filhos da outra em nome do seu santificado amor. Ah, e os homens, os amantes desprezados preferindo, no homicídio, vinte anos de prisão à desonra, como se todos os olhares do mundo se concentrassem em seu dilaceramento e não cada um em sua própria dor, egolátrica e intransferível.

    Ah, e o mito do poeta necrófago, a amar como se fosse ele próprio um soneto, moças pálidas enterradas na véspera, seus finos braços que pendem para o lado, o seio ainda tão durinho mas que não arfa mais, um luar que ilumina aquela face viva do violador, porém ainda mais macilenta que a dos mortos, uma barba desvairada, uma gota de cuspe pingando da boca. Poeta, poeta! Como se fosses tu em todos os tempos uma variante mais inofensiva dos assassinos.

    Ah, e o famoso bordel das colegiais, imaginado por todos os devassos da província, como se o tédio das cidades pequenas de repente se materializasse num sonho coletivo em que garotinhas cândidas despem um uniforme negro e suas alças de colégio de freira, compridas meias brancas e, ao lado da cama, uma pasta escolar, sim, uma pasta escolar.

    Ah, e os rapazinhos a se surpreenderem, um dia, num gesto lânguido de ajeitar os cabelos diante do espelho; um gesto que primeiro negam, engrossando a voz, enquanto se dizem: Comigo, não — comigo não pode acontecer. Mas logo depois aquele impulso mais forte, abrir a camisa, afagar-se no peito onde deveriam estar os seios. Uma primeira lágrima, que vai se transformando em soluço, um choro que ele descobre um alívio e não uma nova dor; como se uma pressão há muito acumulada dentro da cabeça de repente se esvaísse — e ele vê, então — ele vê que é corajoso e íntegro —, o grande êxtase da unidade, vê que é mais que um homem e subitamente, na sua liberdade, percebe que pode arrumar sua mala, juntar suas poucas coisas e partir para Amsterdã, ou então simplesmente sair para as ruas e combater, ainda não sabe bem por que causa, mas combater.

    Ah, e o menino, ainda, que olha nua a mãe, a irmã ou avó e compreende, com nojo, que teve uma ereção, e o que está oculto e proibido se deseja, trate-se de um cigarro ou uma mulher. E que a mulher, entretanto, não pode ser aquela e, daí para a frente, sabe também que seu itinerário na rua, onde antes ele chutava tampinhas de garrafa, olhava modelos de carros, pipas, balões, será o mesmo da silenciosa multidão carente: olhos nos olhos, sorrisos furtivos, cochichos de baixo calão.

    Bundas e seios expostos em todas as bancas de revistas; bocetas veladas como sorvetes que não se deixassem chupar; sexo, sexo, sexo, nos letreiros luminosos dos cinemas, como se o interesse maior do homem fosse contemplar infindavelmente o ato sexual.

    E mais e mais, como se tudo não passasse disto: perfumes, sêmens, preservativos, exames ginecológicos, abortos, espirais contra mosquitos a arderem em hotéis fodidos da zona, como se incenso queimando em templos erigidos em honra a divindades orientais.

    E mais, ainda: cães atados a ganirem no desespero de buscarem um retorno ao próprio corpo (e não podem) entre homens ao redor a rirem grosseiramente; gafanhotos a se deceparem no meio do gozo; cavalos e éguas a relinchar; homens e mulheres suspirando sobre os tapetes dos apartamentos, examinando-se sob a luz azulada de um televisor; saias levantadas junto a muros e postes; bonecas estripadas numa necrópsia infantil; graves brincadeiras de médico; estupros dentro de carros, matagais, a lâmina de um punhal que faz escorrer, na ânsia, um fino filete vermelho de um pescoço branco, enquanto lá embaixo, entre as pernas, verte-se a vida, a vida, a vida…

    Querendo-nos comer uns aos outros, roubar o que está além (o que existe ali dentro, meu Deus?), para sê-lo também, tornar-se maior, o anjo perdido ou prometido desde os primórdios, forte e belo e bastando-se, ah!

    Sons como arf — ai — ahn — sim e não, os desejos dos pormenores mais ínfimos, olhar para dentro de um útero, um cu, segurar um pau como se fôssemos todos náufragos estendendo a mão e não há botes salva-vidas, apenas vagas imensas onde nos espreitam baleias bíblicas que nos vão engolir; que nos buscam como buscamos nós uma alma, um poço, sim, um poço, em cujo fundo brilha uma água profunda e negra e límpida ou brilha maravilhosamente nada.

    E mais e mais: até estarmos todos chupados, exangues, cacos, pelancas, sem nada mais para exalar sobre um leito que os odores da doença e os suspiros brochas dos moribundos.

    veredatropical

    Pedro Maia Soares

    Amo melancias.

    Gosto de possuí-las ao fim da tarde, quando vem chegando a penumbra, de pé, sobre a mesa da cozinha, no sofá, onde é mais aconchegante, ou deitado no tapete da sala, onde podemos rolar de um lado para o outro.

    Prefiro as longas, escuras, rajadas, mas são difíceis de encontrar. Por isso, quase sempre tenho uma das redondinhas comigo. Faço um orifício pouco profundo, o suficiente apenas para remover a casca. Depois penetro-as, sentindo a carne vermelha se desmanchar, deixando escorrer um líquido fresco e doce. Com as mãos seguro o outro lado, acariciando o lugar do cabo. Bem lavadas e lustradas, elas são macias ao tato, as mãos escorregam pelo arredondado da forma. E eu pressiono mais para dentro, sinto as sementes me envolvendo e ouço o ruído da carne que se esfacela.

    Com as longas é possível possuí-las dos dois lados, sempre com o mesmo resultado. Não encontro o primeiro furo, é preciso fazer tudo de novo, o prazer é total. Com as pequenas, em compensação, ao penetrar do lado oposto, o líquido escorre também pelo buraco anterior, de tal forma que posso senti-lo em meus dedos, úmido, frio, pegajoso.

    Tentei melões: são pequenos demais, pouco carnudos e pálidos. Experimentei abóboras, mas machucaram-me de tão duras. Berinjelas, mamões, abacates, sempre a mesma insatisfação. Por isso volto às minhas queridas melancias, ao velho e sempre renovado prazer. Compro-as na feira e levo-as para casa debaixo do braço, dissimulando o desejo que cresce. Sinto-me meio obsceno com meu objeto amado assim exposto, em contato com minhas axilas. Mal posso conter a vontade de acariciá-la. Em casa, dou-lhe um banho bem cuidadoso, esfrego um pouco de talco, encosto meu rosto em sua pele macia e, quando consigo conter o desejo, fico à espera do grande momento, ao fim da tarde.

    Às vezes, deixo-me levar por perversões. Depois de fazer o orifício, não a possuo logo: mordo sua carne rubra, chupo-lhe o caldo, introduzo minha língua em movimentos circulares e vou enchendo minha boca de saliva e semente, suco e bagaço. Fico com o rosto encharcado, perco a cabeça. Atabalhoadamente monto sobre ela, forço suas

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