Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Minha Melhor Amiga
Minha Melhor Amiga
Minha Melhor Amiga
E-book333 páginas5 horas

Minha Melhor Amiga

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Carolina é uma mulher que na adolescência se envolveu em um acidente de carro com a sua então melhor amiga, Helena. A partir desse evento ela resolve adotar um estilo de vida completamente diferente (inclusive sexualmente falando), em uma cidade distante. Nos dias atuais, mãe de três crianças, ela aparenta normalidade, mas vive lá os seus tormentos. Sua vida muda ao conhecer Flávia, a professora da sua filha caçula. A história de Minha Melhor Amiga intercala o passado e o presente de Carolina, mostrando o reflexo dos traumas depois de quase 20 anos (acentuados em dias de chuva), até que Flávia lhe traz o sol de volta. Esta é uma história de amor. O amor cura!
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de jul. de 2020
Minha Melhor Amiga

Relacionado a Minha Melhor Amiga

Ebooks relacionados

Ficção Geral para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Minha Melhor Amiga

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Minha Melhor Amiga - Caribu

    Minha Melhor Amiga

    (caribu, 2020)

    Para todas as Carolinas que existem em mim.

    À Garota Errada, minha garota certa para sempre.

    Agradecimentos

    Este livro, em partes, é fruto do envolvimento de várias pessoas que me incentivaram, torceram pelas personagens e estiveram comigo enquanto eu estava entrelaçada em Carolina e mergulhada no seu universo.

    Minha querida amiga Patty merece destaque porque é dela a responsabilidade dessa história estar viva agora, diante dos seus olhos.

    Patty foi a primeira a conversar comigo tratando as personagens como gente; ela me ajudou a humanizar cada um deles. Meu amor é seu, para sempre.

    Recebi o apoio de pessoas incríveis enquanto editava a história, durante o isolamento da pandemia de 2020. Elas me fizeram companhia, e leram capítulos, e deram opiniões valiosas. E ouviram cada um dos meus áudios falando sobre isso de manhã, à tarde, à noite e até de madrugada. Os mais próximos foram Cris, Rô e Xupico (a Rubi também ouviu um bocado). Sou grata por ter a sorte de tê-los.

    Esta história sempre estará ancorada no amor de Mari e Gabi, minhas pessoas preferidas no mundo, tão importantes em todo o meu processo de amadurecimento – como pessoa, mulher e escritora. A vida muda, mas elas sempre serão a minha família.

    E os meus consanguíneos, minha irmã e meu irmão que tanto amo, me forneceram a matéria-prima para dar vida a todas essas pessoas. Eu não seria quem sou sem os meus irmãos (e suas extensões).

    Por fim, mas não menos importante, deixo registrado meu amor à Brã, minha melhor amiga na época em que a primeira versão dessa história foi escrita. Hoje quase não temos contato, mas mexer aqui me fez voltar até lá. No fim dos anos 90 a gente arrasava juntas.

    E minha gratidão, meu amor incondicional, minha admiração àquela que, no fim das contas, é a minha eterna melhor amiga, tão querida: Carolina, que em alguma dimensão vive de verdade.

    Nota da autora

    A primeira versão dessa história foi escrita por volta de 1999 e originalmente era a mesma que se apresenta agora (o pano de fundo, ao menos), mas sem um detalhe especial: Carolina era hétera. Não a culpo; na ocasião eu também era (nessa época tinha meus 16, 17

    anos).

    Graças à Minha Melhor Amiga, à Carolina, a personagem principal, me descobri! E devido a todos os seus desenlaces, este virou um romance lésbico. Minha vida virou um romance lésbico ♥

    Tudo começou quando reconheci que não tinha experiência nenhuma para escrever essa história. Eu era uma adolescente de classe média que basicamente só fumava maconha nos intervalos da escola.

    Carolina, sempre maravilhosa da cabeça aos pés, era super adulta, divorciada, com filhos... difícil para mim. Uma realidade muito distinta da outra.

    No começo dos anos 2000 o que mais bombava eram as salas de bate-papo da Uol (eram incríveis, conheci minha primeira esposa lá). Decidi entrar em uma com o nick Carolina. Onde mais se passar por outra pessoa do que na internet, uma terra nova onde a tecnologia mal abria os olhos? Não havia muitas ferramentas capazes de descobrir que eu não era eu e era Carolina. E vice-versa.

    De maneira muito calculista e racional optei por uma sala onde as chances de me envolver amorosamente eram zero: sala de bate-papo para lésbicas 02.

    Lá eu era ela, a Carol. Uma mulher estressada, sempre brava com o ex-marido, às vezes com a filha doente, sempre com o sono atrasado. Mas linda, sempre elegante (inclusive nas palavras), atenciosa, e se alguém pudesse ver diria que seu sorriso é o seu principal charme. Tudo isso num cenário típico de quem tem três filhos. Um caos. Delicioso.

    Tinha dias que eu nem lembrava de escrever; só queria ser a Carolina, e viver seus dramas cotidianos (banais para alguns, importantes para ela).

    Para encurtar: nesse laboratório me apaixonei perdidamente por uma menina. Ela se apaixonou perdidamente por mim, Carolina (impossível não se apaixonar, risos). Para piorar, nessa época eu namorava um carinha, que nem imaginava que à noite eu me travestia de Carol. De

    Cau – porque quem deu esse apelido foi ela.

    Um dia não aguentei e abri meu coração, num e-mail de quatro páginas. Pedi perdão, disse que a amava. Não entendia como, mas amava. Ela me ligou e ficou brava porque eu tinha dormido na casa do carinha. Fui canalha mesmo.

    Passados uns meses meus pais se separaram de vez, e minha mãe decidiu se mudar para João Pessoa. De carro. E eu fui junto. Numa das noites dormimos numa determinada cidade no sul da Bahia. Ela morava lá.

    Foi meu primeiro beijo numa mulher. A primeira vez que entendi o que realmente significava a expressão borboletas no estômago – se bem que não era bem no estômago que eu sentia as borboletas.

    Passaram-se alguns anos. No final de 2006 eu estava me formando na faculdade, e como trabalho de conclusão de curso estava escrevendo um livro-reportagem sobre a homossexualidade feminina. Me sentia às vezes entediada, muito presa às citações, às normas da ABNT, e aí decidi que para desestressar reescreveria o Minha Melhor Amiga –

    agora de maneira justa, atualizada (eu já era casada com uma mulher e a nossa filha já tinha três anos). Toquei os dois projetos simultânea e paralelamente.

    Amei os resultados, enfiei os dois numa gaveta (para não dizer no meu cu) e fui tocando a vida.

    A reedição ocorreu em maio de 2020, em meio à pandemia de covid-19, e teve o intuito de não só tirar as tremas do texto (sim!), mas

    também de dar os retoques que só a vida real é capaz de moldar, nos moldar. A meta é permitir que essas meninas agora ganhem o mundo, porque não é justo tê-las só para mim.

    Mas chega. Quero que você veja como ficou. Te convido para entrar nesse nosso universo, e conferir essa história que tenho tanto apreço!

    Foram 20 anos lambendo essa cria, e agora ela está pronta para ganhar o mundo. O seu mundo.

    Boa leitura! Divirta-se!

    Prólogo

    Numa madrugada molhada, Carolina discute, com a roupa já úmida, com Helena, que força sua voz rouca. É mês de fevereiro e o clima está abafado, quente. Helena, com o rosto corado devido ao banho de sol de mais cedo com seu namorado, esbraveja ao falar.

    Leandro, por sua vez, assiste à discussão, indiferente. Já não aguentava mais ver as duas brigando e apesar de saber que era sempre o causador dos impasses nunca se sentia culpado. Fumava no canto, debaixo de uma árvore e apenas observava.

    - Você está confundindo as coisas, Cau. Nós somos amigas, sempre nos protegemos, mas isso já é exagero! – reclama Helena, mexendo muito com as mãos. A franja, torta, escorria na testa junto da garoa.

    As duas se conheciam desde o primário. Na época Helena, com oito anos, havia acabado de se mudar para a cidade com seu pai, um viúvo que tinha se aposentado há algum tempo. A união entre as duas persistia com tranquilidade até o momento em que Leandro apareceu.

    Agora, no auge dos seus 16 anos recém-completados, as meninas estavam descobrindo as divergências de uma longa amizade, quando uma terceira pessoa entra na história.

    - Enxergue o óbvio, Lena! – insiste Carolina, abaixando o tom de voz –

    Esse cara está te traindo! Só você não percebe! Quando foi que você simplesmente parou de enxergar as coisas? Meu Deus, às vezes eu nem te reconheço, sério!

    As discussões estavam mais frequentes nos últimos tempos.

    Carolina, sempre preocupada com a amiga, tinha medo de vê-la magoada. O sentimento por Helena era o mais intenso e o mais

    verdadeiro do que qualquer outro já vivenciado. Em compensação, a raiva por Leandro era o pior tipo de sensação que ela já tinha experimentado. Só de ficar perto dele ela já se irritava.

    Helena também gostava muito de Carolina. Com ela é que vivera os melhores momentos de sua infância e as melhores experiências de sua adolescência. Mas com Leandro ela parecia se sentir mais completa – arriscaria até mesmo a dizer mais normal. No fundo, sabia que ele não era tudo o que pensava, e sua fama de galinha era conhecida por toda a região. A atração que sentia pelo rapaz, porém, tinha o mágico poder de bloquear qualquer pensamento ruim que se atrevesse penetrar em sua mente. E a magia que enlaçava sua amizade com Carolina também se ofuscava.

    - Eu já sei cuidar de mim! E já sei também o que quero para a minha vida! – finaliza Helena, dando as costas à amiga – Vamos Lê. Quero ir embora. Já está muito tarde.

    Leandro olha para Carolina com ares de vitória. Nunca havia sentido vontade de conversar com a garota, e os boatos que corriam a respeito das duas o desanimava ainda mais. Carolina era sem dúvida mais bonita que sua namorada. E tinha o dobro de esperteza também.

    Quase sempre ele imaginava o que faria caso as fofocas se confirmassem um dia. Sempre que pensava nisso seu rosto se contraía, sem que ele percebesse.

    Apesar de não ter o costume de ter apenas uma namorada, e nunca ter conseguido ser fiel, a doçura de Helena o encantava e ele queria estar com ela cada vez mais, sinceramente. E faria tudo para conseguir – mesmo que para isso tivesse que encerrar de vez a proximidade entre aquelas duas.

    - Eu não vou deixar você ir sozinha no carro com esse cara! Ele está bêbado! – insiste Carolina, seguindo Helena até o carro, estacionado sob um poste de luz.

    - Cau, por favor! Eu já sou grandinha, já sei me cuidar! – ela pede, segurando com força as mãos da amiga – Eu amo o Leandro! É com ele que eu quero ficar, entende?

    - Não entendo... Mas respeito! – ela responde, acelerando as palavras ao sentir que suas mãos se afrouxavam – Na dúvida eu só vou com vocês até a sua casa, apenas para me certificar de que você chegou bem. Você não pode me negar isso.

    - Alguém já te disse que você é insuportável? – pergunta Leandro, ao ver Carolina entrar no carro e bater a porta com força – Acabou, Ana Carolina, acabou! A Helena é minha namorada, sacou?

    - Deixa ela, Lê. Depois a gente conversa e se entende – pede Helena sentindo mais uma vez seu coração partido.

    - Mas acontece, bonitinha, que a sua amiga já me irritou mais do que deveria! – diz, dando partida no carro – Só ela não percebeu que sua praia é outra!

    - Por acaso você se sente ameaçado comigo por perto? – sorri Carolina, no escuro – Se tem tanta certeza do que ela quer, não sinta medo, ué!

    - Não me sinto ameaçado. Me sinto irritado! – ele berra, dando dois socos no volante.

    Carolina adorava tirá-lo do sério. Amava perceber que ele perdia as estribeiras por sua causa. Gostava da sensação que vinha acompanhada por aquela explosão, tão típica. Ah, como ele era frágil.

    De propósito, passou a perguntar sobre Angélica, uma antiga namorada de Leandro que ainda não o havia perdoado pelo recente abandono. A pergunta faz Helena se arrepiar e ela percebe pela acelerada no carro que Carolina havia conseguido o que queria: seu namorado estava transtornado.

    Leandro aproveitara bons momentos em companhia de seu antigo caso. Mas ela fazia sons ao mastigar, então terminar nem foi tão difícil. E quando ele percebeu que com Helena seu pote de ouro poderia ser ainda mais reluzente, não pensou duas vezes. Nunca admirou o estilo de vida que levava, sempre sem dinheiro e sob o duro olhar de seu avô, um militar aposentado. Helena acabou servindo como sua válvula de escape e, de quebra, sua nova fonte de renda.

    Nem mesmo a falta de gasolina em seu carro o preocupava: ela vivia munida de seu cartão de crédito. E não tinha dó de gastar.

    Também com pouco dinheiro e com mais três irmãos para os pais sustentarem, Carolina, ao contrário de Leandro, nunca havia tido o menor interesse na conta bancária da amiga. Gostava mesmo era de sua companhia, seu sorriso, seu coração lindo.

    Quando tinham 13 anos as duas experimentaram o beijo das novelas. Depois daquele dia, sempre que podia Carolina insistia para a amiga beijar-lhe. E apesar de os motivos serem cada vez mais ridículos, Helena cedia aos pedidos acreditando nas primeiras vezes que o objetivo era somente fortalecer a amizade. Porém, com o tempo, percebeu as reais intenções de Carolina e sempre que podia se deixava à sua mercê. Porque era gostoso. Secretamente, uma pertencia à outra.

    Não levou muito tempo para desejarem juntas o prazer da masturbação. Gostavam muito de falar sobre o assunto, Carolina sempre tinha dicas incríveis, com formas variadas de se dar prazer. E

    apesar da inexistente sabedoria no assunto, soube fazer Helena sentir essa felicidade plena apenas com mãos, dedos, língua, seu próprio corpo e alguns objetos inusitados. E as duas sentiram juntas aquela deliciosa sensação inúmeras vezes, e quanto mais faziam, mais queriam.

    Um dia, por insistência de Carolina, as duas deixaram o quarto de Helena e caminharam juntas rumo à festa da cidade. Todos estariam lá, era um grande evento. E então apareceu Leandro.

    À princípio Carolina não se importou em ver um estranho beijar o amor de sua vida – era, no fundo, até que um pouquinho excitante. Mas com o passar dos dias percebeu que cada vez mais Helena deixava de ser sua. Escorria por entre seus dedos, e parecia que quanto mais ela tentava evitar, mais Helena lhe escapava. Num ato de desespero, resolveu bolar um plano e resgatar sua amada. Fingiu estar doente e insistiu para que Pedro, seu irmão mais novo, chamasse por ela.

    Preocupada, assim que soube ela correu até a casa da amiga.

    Ao chegar se deparou com Carolina apenas de calcinha, e o seu quarto estava repleto de velas. Primeiro ela calculou se havia algum risco eminente de incêndio. Depois sorriu e se entregou ao sorriso de Carolina (sempre a rendia). Despiu-se também e juntas iniciaram uma dança imaginária, embalada por excitação e êxtase. Tão delas.

    Os corpos estavam ainda unidos, ofegantes, quando Pedro entrou no quarto.

    - Leandro... Por favor, vai mais devagar! – pede Helena, trazendo Carolina de volta à realidade. O desespero foi substituído pela segurança ao sentir a mão dela em seu ombro.

    Tudo aconteceu muito rápido. Enquanto Carolina se esforçava para colocar o cinto de segurança com a mão desocupada, viu surgir, do nada, uma luz forte. E em segundos tudo ficou muito escuro, e estranhamente quieto, depois que um barulho alto a assustou.

    Carolina abre os olhos umedecidos, que davam a impressão de estar grudados. Notou que era difícil fazer este simples movimento. A vida parecia estar num ritmo alterado. Suas percepções, pelo menos,

    estavam. Demorou alguns instantes para perceber que seu cabelo ainda estava molhado e que ainda chovia – aquela chuva fininha, que quase faz cócegas. Sentiu uma dor aguda, que parecia se irradiar por todo o corpo, ao tentar se mover. Confusa, ao olhar para baixo tentou entender o porquê de sua perna estar esmagada em meio às ferragens de carro. Vagarosamente, e com muita dificuldade, virou um pouco o pescoço e se assustou ao ver um caminhão, chiando alto (ou aquele som era dentro da sua cabeça?), colado à lateral do carro.

    Sentiu a mão de Helena ainda sobre a sua e isso a deixou mais confiante. Procurou então por Leandro e viu muito sangue; ele parecia um morto. A cabeça pendia para fora do automóvel, dando uma expressão bastante mórbida ao seu rosto de traços tão fortes. Viu mais ao fundo, naquela mesma direção, algumas pessoas que chegavam atraídas pelo acidente. Pareciam formiguinhas – quase urubus.

    Desesperada, tentou se inclinar para cochichar para Helena.

    - Lena? Lena, querida... Você está bem?

    - Meu Deus, Cau! – balbucia a menina, com nítida dificuldade.

    - Foi só um acidente. Mas não é nada grave, não fica nervosa – mente, olhando mais uma vez para o caminhão azul, que parecia imenso - O

    Leandro está legal – Carolina fala, sem pensar direito. Estava segurando o choro, sentia muita dor, mas não queria transpassar.

    Aquela posição era incômoda e a ânsia de vômito estava prestes a dominá-la – Como você está? Como você se sente?

    - Dor. Tem vidro dentro de mim? – geme Helena – Vou morrer, Cau.

    - Você não vai morrer – implora Carolina, se esforçando para apertar sua mão, tentando minimamente ficar ainda mais próxima do ouvido de Helena – Você não pode me deixar aqui sozinha! Isso é só parte de um sonho ruim e quando a gente acordar vamos estar juntas, na sua cama. Tá bom, meu amor? Está ouvindo esse barulho? É a ambulância!

    A gente vai ficar bem, eu prometo! Fica comigo, Lena.

    Um

    Carolina acorda com o despertador. O som alto e irritante contagia todo o quarto mal iluminado e dá a impressão de ecoar dentro de sua cabeça. Sentando-se na cama, coloca os óculos de armação fina (que por um milagre estavam ali ao seu lado, e não perdidos pela casa) e observa as gotas de chuva escorrerem pelo vidro da janela. Era tão triste quando o dia começava assim!

    Deixou de olhar o mundo que existia fora da janela para observar, mais uma vez entre tantas outras, as inúmeras cicatrizes que tinha em suas pernas. Havia enfrentado algumas cirurgias, anos atrás, mas algumas marcas ainda faziam parte de seu corpo. Quase 20 anos haviam se passado, mas milésimos de segundos sempre a transportavam de volta para aquela pequena cidade do interior.

    Olhando mais uma vez para a chuva ela sente que algumas lágrimas começam a desabar de seus olhos, como se competissem com as gotas de chuva que corriam em direção ao parapeito da janela.

    Estava com 30 e poucos anos e se sentia realizada em muitos sentidos de sua vida, mas a chuva, e as lágrimas, sempre a lembravam de que o rumo das coisas pode sempre mudar, de um segundo para o outro. E ela lutava para não ser desapegada demais, por isso.

    Na verdade, vivia um eterno embate entre se desapegar e não parecer egoísta. Entre amar e deixar livre.

    Antes de criar coragem para se levantar e se preparar para mais um dia de trabalho, Camila entra em seu quarto. Nem percebeu que a mãe estava chorando.

    - O que foi, meu amor? Não dormiu bem? – pergunta Carolina, passando a mão nos cabelos da menina, que se aninhava rapidamente em seu colo – Será que você está com febre de novo? Vou ter que pedir

    para o seu pai te levar ao médico... A mamãe tem muita coisa para fazer hoje no trabalho e não vai poder te levar.

    Carolina se levanta com a filha aninhada em seus braços e quase no mesmo instante sente seu corpo esquentar. Camila tinha apenas seis anos e se adoentava facilmente, desde pequena. O motivo, ninguém sabia, e cada hora era uma coisa diferente.

    - Também quero um abraço! – berra Gabriel, demonstrando seu bom humor ao entrar no quarto – Mãe, já que está chovendo, eu poderia...

    - Não, não poderia. Dentro da sua escola não chove – interrompe Carolina vendo a careta que o menino fazia – Não começa, Gabriel.

    Ainda é muito cedo para a gente se aborrecer.

    - Eu não gosto de estudar – resmunga o menino vendo que a mãe se afastava – E o papai disse que você também não gostava, por isso não terminou sua faculdade!

    - O que seu pai diz não se escreve. Da próxima vez que ele falar isso pergunte se ele se formou com louvores... – e continua, resmungando baixinho – ... aquele ingrato.

    - Bom dia, mamãe. Já são seis horas? – pergunta Diego, bocejando, vendo a mãe entrar em seu quarto.

    - Bom dia, meu querido. Já são quase oito. Estamos todos atrasados.

    Caminhando até a cozinha, ainda com a filha no colo, Carolina desvia de Alfredo, o cachorro.

    - Quem deixou o Fred dormir dentro de casa, hein? – pergunta, mesmo sabendo que não obteria respostas. Se dirigindo então para o animal, indaga: quem deixou você entrar, hã?.

    - Mamãe, posso ficar em casa hoje? – pergunta Camila, vendo Alfredo abanar o rabo e se dirigir para o sofá da sala.

    - Eu vou te deixar na casa da vovó, meu anjo. Lá você tira um cochilo depois de ir ao médico. E aí descansa um pouquinho.

    - Posso ficar na vovó também? – pergunta Gabriel, com a escova de dente enterrada na boca.

    - Não. E também não pode escovar os dentes na cozinha. Gabriel, meu amor, ajuda a mamãe.

    - Meu uniforme foi sequestrado! – relata Diego, desespero na voz.

    Carolina, surpresa, sorri sem querer para a cara que o menino fazia.

    Cerrou um pouco os olhos, como quem diz como você é bonitinho.

    - Ai, filho! Esqueci de pedir para a Fátima passar! – diz, sentando a menina na cadeira da cozinha – Liga a cafeteira e põe manteiga na torrada enquanto eu cuido disso, ok?

    - Ah, mãe! Isso é tarefa de adulto! Eu só tenho 11 anos!

    - Cuidado, Di! – alerta Carolina, caminhando pelo corredor – Se continuar assim vai ficar igual ao teu pai, que nem um ovo sabe fritar.

    Meia hora mais tarde ela entra no seu carro observada por Gabriel. Ao contrário do irmão mais velho, a escola era um verdadeiro pesadelo para ele.

    - Aonde você vai? – pergunta Diego, vendo que o trajeto feito diariamente estava diferente – Está errado! A gente está atrasado!

    - Vou deixar sua irmã na casa da sua avó. Ela ainda está doente –

    responde, pegando um cigarro, sem pensar no que fazia.

    - Argh! Não! – resmunga Gabriel – Mamãe, por favor! Não acende isso!

    Eu imploro! Isso fede demais! Você vai nos matar!

    - Mamãe, não nos faça fumantes passivos! Não fume perto dos seus filhos! – reforça Diego, que falava sério, apesar de estar sorrindo.

    - Você tem que parar com isso, mamãe – aconselha Camila, tampando o nariz – Você vai morrer cedo! Cigarro dá câncer.

    - Eu vou parar, queridos. Vocês são ótimos no convencimento, eu agradeço – ela diz, estacionando o carro e pegando mais uma vez a criança no colo – O papai vai te levar ao médico, tá? Você vai sarar logo, loguinho! E bem rápido, você vai ver!

    - O que aconteceu? – pergunta Paulo, extremamente mal-humorado, após ouvir a campainha tocar duas vezes.

    - Bom dia para você também! – ela suspira, impaciente – Nossa filha está com febre desde ontem. Ela tem que ir ao médico. Talvez seja essa nova virose que está na moda, mas isso só o especialista pode dizer.

    - E onde eu entro nisso?

    - Como assim? Você precisa levá-la ao médico, Paulo!

    - Por que eu? – ele pergunta, pegando o cigarro que ela colocara atrás da orelha, e cumprimentando os meninos dentro do carro – Isso aqui vai te matar, hein! E vai matar as crianças, se fumar perto delas!

    - Eu tenho muita coisa para fazer na loja hoje – ela diz, como se não tivesse escutado – Esqueceu? Esqueceu que você ontem me atazanou o dia inteiro para resolver aquele problema das notas fiscais?

    - Ah, é verdade – concorda Paulo, bocejando e lhe entregando o cigarro de volta, meio amassado – Venha.

    - Tchau para você também – diz Carolina, ríspida. Ao ver que a filha a observava enquanto era puxada pela mão do pai para dentro da casa, ela sorri – Tchau, meu amor! A mamãe vem te buscar mais tarde, tá?

    - Por que vocês brigam tanto? – pergunta Gabriel, a caminho da escola.

    - Porque... seu pai, ou melhor, eu... A gente tem...

    - Já se acostumaram a brigar, né? – interrompe Diego – Eu acho que tem gente que se acostuma, sei lá. Até com o que é ruim.

    Ela preferiu não falar mais nada até chegarem na frente da escola. Nunca de fato sabia responder o porquê de tantas brigas com o ex-marido. As discussões simplesmente aconteciam, como se já fizessem parte da rotina. Na verdade era até estranho quando nenhum

    atrito acontecia. Uma eterna brincadeira de gato e rato. No fundo, ambos se divertiam, mesmo que não assumissem nem para si mesmos.

    Os dois eram sócios, desde o início do casamento tumultuado, em uma loja de ferragens e ferramentas, que agora passava por uma fase de ampliação, a Casa Mais. Após o divórcio tinham concordado em manter o negócio na intenção de evitar problemas burocráticos, e porque o negócio ia bem, eles gostavam dos seus trabalhos. Mas os desentendimentos, além de mais incômodos que a burocracia, eram constantes e contagiavam também os outros três funcionários da loja.

    Carolina havia decidido se casar no minuto em que resolvera sair de casa, muitos anos atrás. Sabia o que era, quem era, mas tinha resolvido se envolver somente com homens como maneira de provar para os pais (e a quem mais quisesse saber) que ela era, sim, uma pessoa decente, normal. Não que precisasse provar nada, mas acreditava que sim. Mesmo que isso significasse se anular de alguma forma. Se camuflar. Se sufocar.

    Sua união com Paulo, porém, era conturbada praticamente desde o início. O fato é que ele era muito inseguro, e ela

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1