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Alma Indomável
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E-book358 páginas6 horas

Alma Indomável

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Sobre este e-book

LIVRO ALMA INDOMÁVEL

Alma Indomável é um romance e aventura, que retrata os últimos suspiros da Era dos sonhos encantados, quando a simplicidade de viver estava perdendo seu espaço, no limiar da industrialização no Rio Grande do Sul.

Ao contar a história de um peão lendário, o autor promove uma verdadeira mostragem através do Universo Rural, trazendo à luz a pujança cultural da gente campeira, no linguajar próprio, na mística, nas crendices, no jeito ser e de viver dos campesinos.

Numa narrativa envolvente, repleta de segredos, mistérios, conflitos e preconceito, a trama se desenrola em seis capítulos, e cada um deles tem seu próprio desfecho, deixando sempre um gancho para a continuação da história.

No desfecho final, quando acontecimentos inusitados esclarecem questões que atormentavam a alma dos protagonistas, o lado místico da vida revela todo seu poder, ao mostrar no plano terreno que, por mais vaqueana que a pessoa seja no ato de viver, não é ela que determina o roteiro da sua vivência... e que a compensação, pelo vazio da morte, é a renovação da vida.

Raimundo José
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de set. de 2023
ISBN9786553555624
Alma Indomável

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    Alma Indomável - Raimundo José

    Capítulo I Nas mãos do próprio Destino

    Pra começo de conversa, eu quero lhes apresentar o homem que será o nosso guia nessa jornada…ele conhece a Pampa Gaúcha como conhece a palma da sua mão.

    Aos oitenta anos Xirú Mandalete é um mestiço alto, forte, que parece não se dar conta da idade que tem, tanto na energia física da sua postura, quanto no rompante da sua fala. No rosto e no corpo as evidências da vida chucra que levou, nos lampaços que sararam, mas deixaram as cicatrizes como lembrança.

    Um Xirú irreverente, de olhar desafiador, que no jeito de olhar parece querer ver nos olhos da pessoa que está falando, o que existe por trás do que ela está dizendo.

    Mas apesar da estampa impressionante e do ar irreverente, ele se revela no desenvolver da prosa, um homem educado e prestativo, que mesmo sem ter ido a escola, domina as palavras com a mesma hhabilidade, que um músico talentoso domina os acordes ao desenvolver uma harmonia musical.

    Eu tive o privilégio de conhecê-lo em oitenta e oito, quando realizava uma verdadeira peregrinação pelo interior gaúcho, a procura de fatos relevantes para mídia jornalística.

    A bem da verdade, eu era só mais um desses jovens jornalistas recém-formados, em busca de afirmação profissional, que ao empreender aquela jornada pelo Rio Grande, sonhava com uma carreira brilhante e promissora.

    Porém ao me inserir no universo Rural, fui seduzido pelas histórias e lendas que os campesinos contavam e acabei desviando o foco dos meus objetivos, em nome da minha curiosidade pessoal.

    Entre as histórias que ouvi dos campesinos, uma em especial mexia demais com a minha imaginação. Foram comentários que escutei aqui e ali por onde passei, alusivos a episódios tão surpreendentes sobre a vida de um peão e de sua gente, que a princípio imaginei tratar-se de uma lenda...mas ao ficar sabendo quase por acaso, que na região dos campos, ali perto de Vila Buena onde eu estava de passagem, vivia um tal Xirú Mandalete, que poderia ter conhecido os protagonistas dessa história, decidi procurá-lo. Quando já estava a caminho da casa dele, eu ia me questionando, se não estaria perdendo meu tempo, afinal, tudo poderia não passar de um engano, de um boato ou coisa parecida.

    Porém ao chegar naquela morada, que batia com as informações que havia recebido lá em Vila Buena, e ao ficar diante daquele homem e ouvir seus questionamentos ao meu jeito urbano de ser, logo percebi que não tinha viajado em vão…

    E mesmo que já tenham se passado muitos anos daquele meu encontro com o Xirú Mandalete, eu ainda posso ouvir as palavras dele ecoando na minha mente ao me dizer:

    - Se eu conheci os Venturas? Mas que conversa é essa Paisano? Posso até lhe garantir, que a minha vivência, esteve sempre meio atrelada a vicência dos Ventura!

    Mas se o moço veio até aqui, querendo que eu separe o joio do trigo, desses causos que essa gente anda contando por aí, está desperdiçando seu tempo! Pra seu governo moço, não sou tropeiro de palavras desgarradas, soltas ao vento... muito menos de causos mal contados…

    Agora se o moço de fala mansa e olhos passarinhero, tivé interessado em saber, como foi que o destino preparou suas armadilhas para envolver os Ventura, os Mendonça e mais um mundaréo de gente numa verdadeira teia de amor e ódio, ai o moço veio ao lugar certo...porque eu estava lá quando os causos estavam acontecendo e o que não vi com os meus próprios olhos, ouvi da boca dos próprios enredados naqueles causos acontecido…

    E então seu moço o que vai ser... vai dar meia volta e vai fugir da raia, levando no seu caderninho de jornalista apenas o zum-zum povoeiro, ou vai topar a parada e vai ficar para ouvir uma história chucra de causos acontecidos enquanto mateamos?

    Eu tinha sido surpreendido pela desenvoltura verbal do Xirú Mandalete…pelas informações que havia recebido sobre ele, lá em Vila Buena, imaginava encontrar uma pessoa esquisita, limitada culturalmente, e de repente ali estava eu, diante de um homem misterioso, carismático, possuidor de uma incrível capacidade por expressar-se!

    E o clima misterioso criado por suas palavras, havia aguçado ainda mais a minha curiosidade. Então disse a ele que aceitava o seu desafio...que não era de fugir da raia e não tinha nenhuma intenção de sair dali de mãos abanando. Estávamos diante da morada e ao ouvir minhas considerações, enquanto balançava a cabeça aprovando a minha decisão ele foi dizendo:

    Então vamos entrando...a aragem fria da boca-da-noite já está mostrando a cara...além disso não podemos ficar prozeando aqui em pé ao relento! Não é mesmo Paisano?

    Tive que concordar com ele, até mesmo quanto a tal aragem fria, porque apesar de ser um fim de tarde de verão, um ventinho frio começava soprar naquela recosta de campo...Equanto andávamos em direção a casa, Xirú Mandalete ia me pedindo que não reparasse a simplicidade do seu rancho, que segundo ele não possuía a boniteza do casario da cidade, mas além da serventia que tinha para abrigá-lo do frio e da chuva, ainda se prestava, para ele receber os amigos e os passantes.

    O que ele chamava de rancho, era na verdade uma pequena casa de madeira, de construção precária e sem nenhum acabamento de pintura. Assim que entramos, mesmo ele tendo me pedido, que não reparasse a simplicidade do rancho, não pude evitar de ver a singeleza do interior da moradia. A pequena casa tinha sido dividida em três compartimentos...uma cozinha, que foi onde entramos, que era de chão batido e ocupava mais ou menos a metade da área do corpo da casa...uma espécie de varanda, bem destacada por ser assoalhada e por estar um degrau acima do nível do chão da cozinha...e um quarto, resultante do fechamento daquele canto que sobrou da cozinha e da varanda. Enquanto o Xirú Mandalete providenciava o chimarrão, eu corria os olhos vistoriando tudo ao meu redor, fazendo justiça a minha fama de bisbilhoteiro incorrigível. Ali na cozinha a mobília, não passava de uma mesa de aspecto rudimentar, por causa da madeira crua e do feitio grosseiro...alguns banquinhos do mesmo gênero...um balcão de pia, que se destacava de tudo, pelo simples fato de ter um bom acabamento de pintura e por estar ali numa cozinha de chão batido e de paredes enfumaçada. Num dos cantos da cozinha o responsável pelo enfumaçamento das paredes... um fogão de campanha cuspindo labaredas de fogo pela boca...sobre a chapa do fogão, além da chaleira esmaltada, na qual o Mandalete aquecia a água para o mate, algumas panelas de ferro e um bules…

    Na varanda algumas cadeiras de madeira com assento de palha, rodeavam uma mesa um pouco menos grosseira do que a mesa da cozinha...e logo acima da mesa, preso na parede, seguramente, a peça mais inusitada pra se ver ali naquela tosca moradia, um expositor em vidro e madeira, que pelo seu visual modernista, parecia um objeto do futuro, perdido em um ambiente primitivo. Dentro do expositor, uma Bíblia, um livro e uma caixinha de madeira rica em detalhes artesanais, que ao meu juízo devia guardar coisas muito valiosas... por estar ali num expositor tão estiloso e por sua própria ostentação de luxo, em um ambiente tão pobre. No mais o acesso ao quarto se dava pela varanda onde uma cortina, fazia as vezes de porta. De onde estava sentado ali na cozinha, quando o vento deslocava a cortina, eu podia ver a cabeceira da cama e boa parte de um rosário pendurado na parede acima da cabeceira, o que dava a entender que além de ser bom com as palavras, Xirú Mandalete, devia ser também um homem muito religioso…

    Eu não tinha vindo ali para fazer um inventário da casa, muito menos para traçar um perfil do proprietário mas por força do hábito acabei me distraindo nas minhas observações visuais, tanto que quando me dei conta o Mandalete já havia terminado a sua tarefa e estava sentando-se, num daqueles banquinhos grosseiros ao lado da mesa. Durante o tempo que estava envolvido no preparo do chimarrão ele tinha permanecido em silêncio, mas tão logo sentou-se ali diante de mim, enquanto me alcançava o mate, foi me dizendo:

    - Sabe moço, eu não posso lhe falar apenas nos arremates dos causos que se deram com os Ventura e tudo mais, porque ai seria o mesmo, que rezar um terço, rezando somente as rezas das contas maiores! E isso nunca seria um terço! E do mesmo jeito que temos que rezar todas as rezas do rosário para que um terço seja um terço...para que um causo seja um causo, tem que ser contado do começo ao fim, sem deixar nenhuma ponta solta para trás! Para que que o moço possa saber quem foi na verdade Andejo Ventura, eu terei que esmiuçar a vida dele, da família dele, e de mais um mundaréo de viventes que cruzaram o caminho deles… e para o moço ficar sabendo, como foi que eu me meti nessa pendenga toda, antes de tudo, vou ter que falar uma nezguinha de palavras sobre a minha pessoa…

    Como pode ver moço, é uma longa história, envolve a vida de muitos viventes! Mas se o moço falava sério, quando chegou aqui, dizendo que anda atrás da verdade, vai gostar de ouvir o que eu tenho pra contar.

    Porque por trás dos arremedos que essa gente anda contando por ai, existe uma história verdadeira que não precisa ser aumentada para ser emocionante...mas isso o moço vai poder ver por si mesmo durante a nossa jornada. E no arremate final da história, eu vou mostrar pro moço as provas que tenho que vão comprovar a veracidade dos causos acontecidos… E como eu já percebi que o moço é mais curioso do que um filhote de zôrro em noite de lua, vou lhe dar um pequeno adiantamento sobre a existência dessas provas e o que elas representam.

    O moço já deve ter reparado, a Redoma de vidro ali na parede da varanda e nos apetrechos que nela estão guardados...pois essa Redoma de vidro moço e tudo mais que está com ela, na verdade não me pertencem...sou apenas um guardião temporário...e quanto as provas moço, está vendo aquele estojo de madeira dentro da Redoma?

    Depois que acenei afirmativamente, ele continuou:

    - Pois dentro daquele estojo estão as provas que lhe falei… e quando o moço puser os olhos nelas vai ver por si mesmo, que são testemunhas silenciosas da história que eu vou contar...como pode ver moço eu acabei de lhe dar uma nezga de luz, sobre o que se esconde por trás dessas relíquias que eu guardo comigo, para que o moço vá remoendo no pensamento, durante a nossa jornada.

    E por falar em jornada, não vamos mais perder tempo, vamos ao causo!

    Xirú Mandalete sabia mesmo prender a atenção das pessoas...do jeito que ele falava, coisas inertes de repente se tornavam tão intrigantes que pareciam ter assumido vida própria...e coisas simples, banais, do cotidiano da vida, assumiam dimensões surpreendentes… E assim seduzido pelas palavras do Mandalete eu me deixei levar naquela viagem, pelos caminhos misteriosos da sua lembrança...e já na largada, suas palavras se organizaram de forma misteriosa, me dando uma mostra do que eu iria encontrar pela frente, ao me dizer:

    -Às vezes , moço, o destino é como se fosse um caminho desenhado pelo próprio vivente enquanto vive...mas em outras, mais se parece com uma trilha invisível, pré-estabelecia por Deus, por onde o vivente é obrigado a seguir, para cumprir uma determinada missão nesse mundo…

    Mas talvez o moço , nem sequer acredita em destino! Mas só o que aconteceu com o moço já dá o que pensá! Um mocinho da cidade que numa encruzilhada da vida é atraído para esse fim de mundo para se encontrar com um velho, que até onde se sabe, nem era para estar no seu caminho! Eu mesmo moço, só estou aqui hoje pelas mãos de Deus! Porque do jeito destrambelhado que a minha vida começou, eu já não era nem para estar mais nesse mundo! Sabe moço, eu sou um desses viventes, que bendizê nascem sem pai nem mãe...o meu pai um negro encrequeiro, morreu numa briga por jogo, alguns dias antes do meu nascimento...e a minha mãe, uma mulher branca, discriminada por todos por ter se amasiado com um negro, se mandou mundo a fora, logo depois da morte do meu pai...não sem antes me entregar para uma família de origem alemã me criar...e se para a minha própria mãe eu tinha representado um fardo pesado demais pra ela carregar, para os alemães eu só representei um jeito fácil de possuir um mestiço para trabalhar pra eles, como escravo… Para o causo moço, essa família alemã era dona de uma boa área de terra onde criavam gado e praticavam a agricultura… e para ajudar na lida, os alemães mantinham alguns serviçais, morando ali em cima da propriedade.

    Tendo sido criado por esses serviçais, rolando pelos galpões, quando me reconheci por gente eu já era mandado de um lado para o outro, como ajudante, fazendo trabalho até de gente grande...Como se não bastasse ajudar nas lidas da propriedade, com seis para sete anos, volta e meia eu tinha que ir sozinho ao povoado, que ficava a mais ou menos meia hora de caminhada, para buscar algum alimento ou ferramenta, que tivesse faltando na despensa da cozinha ou lá na lida dos galpões.

    Quando aquela gente do povoado me via chegando, eu ouvia os comentários que faziam a meu respeito...

    Olha só quem vem lá, se não é o filho rejeitado daquela sirigaita do finado Bastião, que agora já serve de mandalete para os estrangeiros!

    Mas assim como eu sei e o moço também sabe, a ingenuidade de uma criança não deixa ela perceber as coisas como elas realmente são.

    Por isso, nem a discriminação, nem os maus tratos que sofria, diminuíam a minha vontade de viver…

    E mesmo que os serviçais dissessem que mestiços nasciam só para o serviço pesado, eu sonhava acordado em poder aprender a ler e escrever...e aquela gente que me criou, mesmo sem querer já tinha feito de mim, um mestiço bilíngue... por ter sido criado no meio de brasileiros e alemães, aos sete anos eu já falava duas línguas…

    Sabe moço, esse casal de alemães, tinha uma filha pequena, que se chamava Noêmia, que todas as manhãs ia estudar lá no povoado...pois eu ficava de olho cumprido, assistindo a saída dela pra escola...sentindo inveja dela por não poder ir também…

    Mas tem coisa que não tem como evitar! Mesmo que aquela gente fizesse de tudo para que eu não aprendesse a ler e a escrever, ali debaixo das fuças deles, num galpãozinho, a menina Noêmia me ensinou a manejar as letras para formar as palavras…

    E dali por diante eu fui aprendendo por mim mesmo...Mas não foi tão simples assim! O meu aprendizado com a alemoazinha, me custou uma galinhazinha-de-barro, que eu havia ganhado da Dona Feliciana lá da budéga e era como se fosse um talismã pra mim... a Noêmia se interessou pelo meu presentinho e me disse que me daria por ela, o livro de contos em alemão e ainda me ensinaria a ler e escrever...ai moço, nem bem ela fechou a matraca e eu já estava lhe entregando a galinhazinha de barro.

    E o final do aprendizado, foi um causo sério! O pai da Noêmia pegou a gente lá no galpãozinho e nos deu uma surra, dessas de ter que botar salmôra pra não arruinar! Enquanto batia na menina, ele ordenava que ela lhe contasse o que estávamos fazendo ali, mas a pobrezinha mostrando muita fibra, não disse água e nem sal... e como eu tinha conseguido esconder o livro antes dele entrar, aquele nosso câmbio permaneceu em segredo…

    Hoje eu ainda fico pensando moço...eu já tinha o lombo curtido, e uma surra a mais ou a menos não fazia diferença...mas a pobrezinha da Noêmia, apanhar daquele jeito, sem ter feito nada errado, foi uma injustiça muito grande! E aquilo foi só uma mostra do que ainda vinha pela frente. Acho que os alemães maliciaram que a gente andava se encontrando pra fazer alguma malcriação porque dali por diante, as coisas pioraram ainda mais pro meu lado… fui proibido até de chegar perto da Noêmia e passei a apanhar mais do que boi-ladrão…

    Mas por mais que me castigassem, o estrago já estava feito… a menina Noêmia tinha me mostrado o fio-da-meada, do enleio das letras e das palavras e com o tempo eu iria desenliar o novelo todo por mim mesmo…

    Aquela gente moço, tinha me subestimado ao imaginar que podiam manear meu pensamento, para que eu achasse que era normal viver escravizado por eles… Mas não conseguiram. A medida que o tempo foi passando, comecei a pensar que devia existir um lugar melhor pra se viver… onde as pessoas não fossem tão ruins. E como água mole em pedra dura, tanto bole até que fura, aos dez anos de idade, eu escapei lá da propriedade dos alemães. Só com a roupinha do corpo e uma sacolinha de couro que eu mesmo havia feito. Onde eu levava algumas coisinhas de estimação...entre elas um pequeno punhal e aquele livro da língua alemã. E pelo que representei aos olhos do povo por ser ajudante dos estrangeiro, aquele que seria meu nome de guerra, Xirú Mandalete. Nessa feita moço, tudo que eu sabia sobre o que havia além dos limites daquele vilarejo onde eu morava, era de ouvir falar… que o Rio Grande era lugar imenso com muitas propriedades como aquelas dos alemães e povoações e mais povoações perdidas na imensidão da terra. E naquela escapada meio às cegas, sem saber para onde estava indo, a única certeza que eu tinha, era que precisava ir para o mais longe que desse e o mais rápido que pudesse, porque os alemães não iam ficar de braços cruzados enquanto eu fugia… e se eles me alcançassem a minha vida ficaria mais estreita do que já era. Mas o moço deve estar se perguntando : que chance teria uma criança numa empleitada dessas, ao se largar a esmo no mundo sobre o qual nada sabia... pois eu lhe digo moço! A vivência as vezes, prepara o vivente, para cumprir seu destino! E no meu caso moço, por ter sido criado no desmanzêlo, a vida tinha me apurado tanto, que aos dez anos eu já estava pronto para enfrentar o rigor do tempo e da vivência, como gente grande. Eu me lembro que tive que fugir à noite, que era quando os serviçais me davam algum sossego...e naquela escapada, feito uma prêsa, tentando ir pra bem longe dos caçadores, eu andei a noite inteira...varando matas, brejos e banhados. Eu não vou mentir pro moço que não senti mêdo! O mêdo que senti aquela noite por andar teatino, quase pôs em risco a minha fuga! Mas no fim a minha capacidade de vencer os medos acabou falando mais alto e acabei vencendo aquela parada. Porque os alemães jamais me encontraram. Mas eu só fiquei sabendo como foi que os alemães reagiram a minha fuga, muitos anos depois, quando já era homem feito… eu tinha acabado de entrar numa dessas bodegas de beira de estrada e enquanto tomava uma cachacinha, pra livrar a goela da poeira da estrada, alguns homens prozeavam, escorados no balcão de atender...e numa dessas um deles começou a contar um causo de um gurí mestiço, que havia fugido lá do lugar onde ele morava...e para minha surpresa o causo que o homem contava, era sobre a minha fuga lá dos alemães! E aí moço, sem saber que eu era o gurí do causo que ele contava, ele me deixou a par do reboliço que o meu desaparecimento provocou nas pessoas que deixei para traz na minha fuga...segundo as palavras dele, os alemães botaram até os cachorros no meu rastro e só desistiram de procurar depois de vários dias de busca… fiquei sabendo até mesmo do falatório que se deu a respeito do acontecido… que davam conta, de que boa parte das pessoas, achavam que por ter desaparecido sem deixar rastro, devia ser coisa do demônio… outros achavam que eu tinha me enrabichado com os tropeiros que volta e meia cruzavam por lá. Mas ele do alto da sua sabedoria, desdanhava do que o povo dizia… afirmando que para ele não era nada disso, que o gurí mestiço, se não tinha se afogado ao tentar atravessar o rio, tinha sido devorado por alguma fera por andar perdido no mato. Sabe moço! Naquela feita ao ouvir aquele linguarudo, eu senti vontade de esfregar na cara dele, o quanto ele e o povo tinham se enganado nas suas adivinhações… mas aí achei melhor, ficar com a vantagem do silêncio e a garantia do segredo Mas voltando ao causo moço...naquela feita, quando me larguei no mundo, eu tinha dois objetivos em mente… fugir pra bem longe e arrumar um trabalhinho pra ganhar a vida… e no meu jeito de ver as coisas eu achava que a parte mais difícil da minha empleitada era escapar dos alemães e se eu conseguisse a minha liberdade encontraria um bom lugar pra viver. Mas eu ainda tinha muito que aprender sobre o mundo e as pessoas que viviam nele moço! E me livrar dos alemães, mesmo que a duras penas eu consegui… já quanto a encontrar um lugar melhor pra viver, não foi bem assim . Depois de uma longa jornada, onde andei me esquivando de tudo e de todos, quando tentei voltar ao convívio das pessoas, comecei a perceber que o preconceito e a maldade, não era exclusividade daquela gente que me criou...e que para um gurí mestiço como eu, só havia dois tipos de pessoas, as que falseavam dizendo que gostariam de ajudar mas não podiam e aquelas que sem nenhum rodeio já deixavam bem claro que não ajudavam porque não queriam. Sabe moço! Muitas pessoas me atropelavam da frente das suas casas, quando eu ainda nem tinha feito menção de chegar! Como se eu fosse um cãozinho sarnento ou coisa parecida. Eu sei e o moço também sabe, que aquele que tece elogios a si mesmo, corre o risco de ficar desacreditado, mas não vejo como não dizer ao moço, que até aquele ponto da minha vida eu era um menino bom! Que mesmo tendo sido criado no desmanzêlo, eu tinha aprendido a andar na linha… mas me destratando daquele jeito, aquela gente acabou mudando o rumo da minha vida ...ao ser rejeitado no convívio das pessoas, passei a viver a sombra delas e sem encontrar outra saída, tive que roubar para sobreviver. No começo eram só coisinhas de comer pra matar a fome...e ainda que fosse por extrema necessidade, eu me sentia envergonhado depois de cada feito...mas quando um vivente comete um erro seguidamente, daqui a pouco esse erro já não parece tão errado assim! E de tanto roubar alimento pra matar a fome moço, fui perdendo a vergonha de roubar. E passei a roubar tudo que desse no jeito. E com o passar do tempo moço, que Deus me perdoe pelo que vou lhe dizer! Eu comecei a gostar de viver daquele jeito...roubar tinha se tornado como se fosse, um jogo para mim...um toma lá-da cá. As pessoas me escorraçavam e no troco eu roubava tudo que podia delas. Mas tudo na vida tem seu preço e viver no erro mesmo para um gurí, pode lhe custar a alma. Sabe moço! Eu vejo o bem e o mal, como se fossem dois caminhos. Quando o vivente anda sempre pelo caminho do bem, o caminho do mal vai ficando largado, atirado e acaba se tornando intransitável… mas se o vivente se envereda pelo caminho do mal, aí é o caminho do bem que vai caindo em desuso e acaba se tornando intransitável para ele. Comigo não foi diferente moço… a medida que fui me enveredando, pelo caminho do mal, o meu lado bom foi caindo em desuso e a maldade foi tomando conta de mim...e aos quatorze anos, eu já era o mau elemento, que as pessoas achavam que eu era, quando andava apenas atrás de um trabalhinho pra ganhar a vida… o gurí bom que eu era quando fugi lá dos alemães, tinha dado lugar a um gurizote atrevido e desordeiro. Andava teatino sobre a terra, criando confusão por onde eu passava. E mesmo que naquela época os acontecimentos só se alastrassem de bôca em bôca, logo a minha má fama, tinha se espalhado por toda parte… com isso passei a viver cada vez mais a margem das pessoas...me precavendo de possíveis embocadas que pudessem armar para mim. Como pode ver moço, minha vida já não valia um vintém! O meu destino parecia irremediavelmente selado...porque o meu fim numa emboscada, ou no ato de um roubo, era só uma questão de tempo. Mas vou lhe dizer uma coisa moço ...não tem nada mais imprevisível que o destino! E as vezêz as dificuldades que surgem na jornada da vivência não são para decretar o fim da linha e sim para provocar uma mudança de rumo. E naquele dia quando tive que fugir para não ser massacrado pela gente de um vilarejo, imaginando que tinha chegado ao fim da linha, moço, eu só estava sendo forçado pelo senhor do destino a mudar o rumo da minha existência… para que eu encontrasse a trilha do meu próprio destino. Eu tinha me arriscado demais ao entrar naquele vilarejo, durante o dia, na esperança de que ninguém me reconhecesse… e quando estava passando por alguns homens, que estavam concertando uma espécie de barreira na curva de um rio que havia sido avariada pela enchente, um deles me chamou e perguntou quem eu era. Sabe moço! Eu já tinha apanhado muito da vida e não tinha nenhuma intenção de voltar a ser bom...mas ao ser questionado por aquele homem, disse a ele que eu era apenas um gurizote, que andava atrás de um trabalho pra ganhar a vida…aí nem bem terminei de falar e ele foi dizendo: então tu veio ao lugar certo! Estamos precisando de ajuda, pra concertar esse estrago que a enchente causou. E então gurí, vai aceitar o trabalho ou não? Aí moço, fiquei embretado e tive que me misturar com eles no conserto da tal barreira… Quando terminamos o conserto, perguntei ao homem que me contratou, quanto eu iria receber pelo serviço...aí moço, eu percebi na enrascada que havia me metido...porque aquele desgraçado, ostentando um risinho de deboche foi me dizendo: tá vendo aquele gentaréu que tá vindo ali! Entre eles está uma autoridade da polícia, que vai te dar o que tu merece seu ladrãozinho vagabundo! Eu tinha sido pego de surpresa moço, e não tinha pra onde escapar...eu estava cercado, entre os talaveiras e o Rio. O Rio não estava mais transbordando, mas ainda urrava feito louco arrastando tudo que ousasse ficar no seu caminho...se me atirasse nele, seria quase um suicídio...mas aí moço eu não pensei duas vêzes! Entre morrer nas mãos daquela gente, cuspindo ódio contra mim, eu preferia morrer afogado...e me joguei no Rio. Mas eu tinha muita hhabilidade na água...e foi o que me tirou das mãos da morte aquele dia… em vêz de lutar contra a correnteza, me deixei levar por ela. E a bem da verdade moço, acho que não era o meu dia de morrer, porque naquela embalada que eu fui levado pelas águas, acabei esbarrando na galhadada de uma arvore que havia caído para dentro do Rio...e aí me agarrando nos galhos da árvore acabei escapando da morte. Mas aquela gente estava determinada a me pegar de qualquer jeito. Eles devem ter encontrado meu rastro, lá onde eu saí do Rio e saíram na minha perseguição. E quando eu achava que eles tinham desistido, daqui a pouco, escutava o fraguido deles se aproximando. Nessa feita moço, só consegui despistar os homens que me perseguiam, depois de vários dias me escondendo pelos matos. Mas o meu destino já estava traçado! E não seria aquela gente daquele vilarejo, nem a tal autoridade da polícia, que iriam atrapalhar a minha jornada nesse mundo. Naquela feita quando me livrei dos meus perseguidores, saí dos matos e entrei num descampado. E quando corri os olhos para ver o que havia naquele lugar, avistei uma carreta parada, no êrmo de uma estrada. Durante a fuga eu só tinha comido algumas frutinhas do mato e é interessante moço, como a fome pode desnortear o pensamento do vivente. Eu mal tinha acabado de me livrar daquela gente que pretendia acabar com a minha raça e já estava indo na direção da carreta, na esperança de conseguir alguma coisa pra comer. Quando cheguei perto, vi que a carreta, que era puxada por duas parelhas de cavalos, tinha atolado num trecho barrento da estrada. E junto a carreta, para minha surpreza, só havia um gurí, mais ou menos do meu porte, descarregando as sacas de mantimentos, para que os cavalos pudessem desatolar a carreta. E com a fome que eu estava, e no traste que eu tinha me tornado, ver aquele gurí, ali sozinho, com uma carreta cheia de mantimentos, foi como encontrar uma mina de ouro! Imaginei que assaltar aquele carreterinho, seria como se fosse roubar balas de uma criança. Afinal moço, eu era um maleva, acostumado a pelear e além disso o carreterinho era mais franzino do que eu. portanto tudo estava a meu favor...eu poderia roubar um cavalo e levar mantimentos pra me garantir por um bom tempo e quem sabe conseguir até algum dinheiro, se por acaso o carreterinho estivesse portando. E foi com essas intenções paisano, que me aproximei sorrateiramente e antes que o carreterinho percebesse a minha presença, saltei nele, com a certeza de que era só pegar e dominar! Mas nem tudo que reluz é ouro paisano! E aquele carreterimho, devia ter parte com o curisco! E o danado como que pressentindo o meu ataque, se esquivou da minha investida e no relancim ainda me passou uma rasteira, que se eu também não fosse ligeiro, já teria me dado mal no primeiro puaço… e se aquela primeira escaramuça, já colocava em dúvida a minha superioridade, no andamento da peleja, eu tive certeza de que havia me metido numa parada torta...apesar de franzino ele tinha tanta força quanto eu...e o seu aguerrimento na peleja, só não era maior do que a sua destreza. Por mais que eu me esforçasse paisano, não conseguia acertá-lo com meus punhos e como se não bastasse, volta e meia era atingido por seus contra-golpes.e a coisa foi se complicando cada vez mais. E então moço, sentindo a parada perdida, tive que usar meu último recurso…aquele pequeno punhal que trazia comigo desde que fugira lá dos alemães. Sabe moço! Mesmo tendo me tornado um maleva, nunca havia usado o punhal contra ninguém! Mas ali acuado pela eminência da derrota, empunhei o punhal e estoquei com gana contra a barriga do carreterinho! Mas acho que fui com muita sede ao pote ...porque além de se defender da minha estocada ele acertou a rasteira que vinha tentando desde o primeiro puaço...e na queda, bati com a cabeça na caixa da carreta e não vi mais nada. Quando recobrei os sentidos paisano, tenho até vergonha de contar! Estava sentado no chão da estrada, recostado contra a roda da carreta, amarrado pela cintura contra a raiadura da roda...e com os pés e mãos atados, mal podia me mexer. E quanto ao carreterinho, estava lá desatrelando os cavalos, dando a entender que tinha desistido de desatolar a carreta. Eu me lembro que a noite vinha chegando e depois de soltar os animais para que fossem se virar por conta própria, nos pastos da beira da estrada, ele foi providenciar a janta num fogãozinho improvisado, com duas pedra… Enquanto ele realizava suas tarefas, eu fiquei ali, fazendo um balanço da minha desgraça...havia me livrado de tantas enrascadas brabas, e por um ato de bobeira, estava ali num brete sem saída...maneado feito um novilho, pronto pra marcação...e como o meu carrasco ainda não tinha pronunciado a minha sentença moço, eu fiquei torturando a mim mesmo, tentando antever qual seria a minha pena. E Aí muitas coisas ruins, agoniaram meu pensamento. Imaginei que talvez o carreterinho, estivesse arquitetando, me levar atado na roda da carreta, quando reiniciasse a jornada...ou pior ainda, me levar dentro da carreta, maneado feito um porco, para me entregar pra alguma autoridade...sabe paisano! Até ali, eu nunca tinha possuído nada de meu...a não ser aquelas coisinhas que eu trazia na minha sacolinha de couro... e depois que virei um traste, até a comida e a roupa eu tinha que roubar...mas ao escapar dos alemães, bem ou mal, eu tinha ganhado a liberdade e ali naquela desgracera que eu havia me metido, eu preferia morrer atado a roda da carreta, do que viver sem liberdade. Mas enquanto eu estava ali tentando antever o desfecho da minha desgraça, o carreterinho aquentou uma panela de bóia e como num deboche a minha fome, comeu duas pratadas do seu requentado… e quando acabou de comer, para minha surpresa, veio até onde eu estava trazendo um prato de comida. Depois de colocar o prato sobre as minhas pernas e desatar as amarras das minhas mãos ordenou que eu comesse...eu não sabia o que pensar sobre o que estava setecendo! Talvez ele estivesse me oferecendo a última refeição antes de acabar com a minha raça. Mas eu estava com tanta fome que nem questionei o motivo daquela oferenda toda! Comi aquele requentado de arroz com charque, feito um cão esfomiado! E aí, quando limpei o prato ele foi me dizendo: parece que tu não enxergava comida a um ano! Mas desembucha vivente! O que deu em ti, pra se botar em mim feito louco? E aí, se deu uma coisa muito estranha comigo… sabe paisano! Eu nunca tinha falado a ninguém sobre a minha vida e não seria para um carreterinho, que tinha me amarrado na roda da sua carreta que eu ia abrir o bico! Mas alguma coisa dentro de mim me fustigava para que falasse. E aí, acabei derramando a história da minha vida… tim-tim por tim-tim! Eu me lembro que depois de me ouvir em silêncio, ele foi até o fogãozinho e quando voltou, trouxe com ele a panela e enquanto despejava o resto do requentado, no meu prato, foi me dizendo: se a tua história é verdadeira mundano, não precisava ter feito o que fêz ! Bastava ter me pedido! Eu jamais negaria um

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