Apenas o que importa: Um convite a um modo elevado de viver
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Apenas o que importa - Raphael Gerst
"Àqueles que buscaram refúgio em nada menos
que a Verdade."
Introdução
Segundo o filósofo Henri-Frédéric Amiel, ordem significa luz e paz, liberdade interior e domínio livre sobre si mesmo
. A busca dessa benfazeja e auspiciosa ordem e plenitude não nos vem de graça, mas é fruto de um processo ininterrupto de aprimoramento da alma. Na contramão dessa persecução, experimentamos uma palpável sensação de que o mundo atual vem engenhosamente irradiando uma potente força dissociante de natureza multifacetada e multiforme, cujo resultado se manifesta em um ambiente cada vez mais caótico e aflitivo.
Engana-se quem pensa que as grandes questões do homem moderno têm como objeto os temas dominantes da atualidade, tais como a salvação do planeta e a busca pela liberdade individual. Essas são meras exteriorizações de algo mais profundo, que as permeia e fundamenta. A verdadeira luta contemporânea é pelo domínio total da consciência humana e de sua autonomia de pensamento. Nesse sentido, a produção em larga escala de elementos que estimulam a divisão, o rancor e o tribalismo, cuidadosamente disseminados pelas onipresentes redes sociais e mídias em geral, somada a um meio social e artístico cada vez mais empobrecido de ideias, porém rico em entretenimento alienante, transformaram-se em obstáculos formidáveis para uma vida em paz e harmonia, plena de potencialidades construtivas e cujas ações encontrem sentido e repouso no sumo Bem.
Mas se o horizonte de possibilidades humanas tivesse se amesquinhado a ponto de não retorno ante a banalidade reinante, não haveria por que estendermos essa discussão, poderíamos simplesmente parar por aqui e nos entregar com resignação à alienação geral. Não é o caso. Nossa civilização também produziu uma farta gama de recursos que nos auxiliam a buscar uma vida mais significativa, seja por meio da vida intelectual consistente, do aprimoramento de nosso senso de ordem e harmonia, da reordenação de hábitos, busca espiritual e assim por diante. Todos eles trazem aspectos fundamentais ao desenvolvimento humano e têm sido, alguns por milênios, fonte de estudos e inspiração para a busca do Sublime. Uma dificuldade compreensível é encontrar esses pontos de vista direcionados aos tipos de desafios que enfrentamos hoje, pois não são necessariamente os mesmos que atormentavam o Homem no passado.
A proposta deste singelo trabalho, portanto, é lembrar que (ainda) nos são disponíveis e prontamente acessíveis todos os meios necessários para pôr ordem no caos pós-moderno, abrindo caminho para uma realidade mais plena de sentido e direcionada para querer o Bem e conhecer a Verdade, nossa vocação essencial. Foi evitado aqui o pedantismo de infundir respostas prontas, mas trazer reflexões necessárias para uma investigação aprofundada dos grandes temas da vida. Parte-se aqui da seguinte premissa: se ainda temos a capacidade de escolher livremente, precisamos aceitar todo o ônus do projeto de vida que escolhemos viver, passando ao largo de conceitos de sucesso maceteados dos onipresentes manuais de felicidade modernos.
Mas se é na fragmentação do ser e na corrupção intelectual que atuam os principais vetores modernos, a sua nêmesis, sob a forma de uma unidade existencial coerente e coesa, é o campo onde se faz a contraposição dessas forças dissociantes. Sob essa égide, entram em cena nessa discussão quatro elementos, a saber: o aprimoramento do intelecto, a busca da ordem, a ação virtuosa e a vida contemplativa, que trabalham em uníssono na persecução da autonomia pensante e da elevação humana. Nessa proposta não estão contempladas quaisquer artimanhas, mas a construção de um projeto de vida que visa a uma realidade mais significativa e plena de sentido, independentemente do status social, financeiro ou estágio de vida de cada um.
Porém, é oportuno questionar por que esses quatro eixos temáticos e não outra coisa. Baseado no que os grandes pensadores nos deixaram de legado, fica claro que uma vida plena de verdade é aquela que orbita em torno de um centro virtuoso, o qual ordena nossos pensamentos e nossas ações rumo a um Bem não fragmentário, pois simplesmente não pode haver uma vida plena sem uma Unidade ordenadora. Esses temas exercem um papel preceptoral e edificante em nossa alma, trazendo-nos de volta às coisas que são, de fato, importantes, dificultando nossa dispersão para um mundo cheio de distrações e bestialidade, que drenam nossas energias e nos contaminam a mente. Esse centro vital é a alma em seu sentido primevo.
É fundamental não nos esquecermos de que a vida humana tem a peculiaridade de ser a única que não alcança sua plenitude naturalmente, mas por um longo processo de aperfeiçoamento, que nos permite alcançar tudo aquilo que podemos ser ou de tornarmos aquilo que somos
, nas palavras de Píndaro. Portanto, a vida que nos é dada é realmente uma oportunidade singular e devemos trabalhar com intensidade em busca de aprimoramento e elevação. E essa tarefa nunca se dá por terminada.
Contudo, antes de discutirmos os eixos construtivos, é necessário entendermos com bastante clareza e sem meias-palavras a situação na qual nos encontramos atualmente e suas peculiaridades, e isso será trazido à tona ao longo deste livro. É preciso entender os principais vetores que movem o homem de hoje, como ele se percebe neste mundo e quais são suas mazelas principais. O diagnóstico da conjuntura atual é o fator determinante para a escolha dos temas a serem trabalhados, portanto é de valia nos debruçarmos sobre isso de maneira que os pontos não pareçam desconexos e aleatórios, mas tenham fundamento.
Esta singela contribuição foi cuidadosamente preparada nos seus aspectos teóricos e aplicados, com base em experiência pessoal e apoiada sobre um vasto material baseado tanto na tradição filosófica ocidental como oriental, que tem como objetivo nada menos que o estímulo à apuração do intelecto e do discernimento, o aprimoramento estético e o desenvolvimento das virtudes, com vistas a uma vida contemplativa, inclinada à fruição dos verdadeiros bens. A entrada dessas luzes permite a dispersão das obscuridades de nosso tempo, que aprisionam o pensamento, embrutecem a alma, nos paralisam perante as dificuldades, nos fecham para novas perspectivas de vida e obscurecem nossa visão espiritual. Basicamente, nos animalizam e escravizam. Sim, os obstáculos modernos são formidáveis, mas as portas de uma vida plena nunca se fecham por completo.
Este franco e despretensioso trabalho foi pensado nos incomodados, aqueles irresignados que compreenderam que o mundo parece desvairado e estão em busca de uma visão mais alumiada da realidade. Mas não apenas isso, buscam saídas e opções desse ambiente tóxico geral e, acima de tudo, uma elevação do espírito para além de fórmulas e frases de efeito. O começo é mais que a metade do caminho, já dizia Aristóteles. Portanto, algo desadormeceu dentro de nós e já se encontra em marcha. É oportuno, antes de tudo, pedir perdão aos amigos pelos equívocos porventura cometidos. A meu favor, são todos ex ignorantia. E sigamos em frente.
Parte I
O mundo
Um breve panorama da situação que nos encontramos
Vivemos em uma época não apenas indiferente, mas fortemente anti-intelectual e, por continuidade, em uma profunda crise existencial. As grandes questões metafísicas e teológicas foram sendo substituídas por preocupações eminentemente prosaicas, corporificadas num amontoado de ideias e ações desarticuladas e voltadas in toto para o imanente. Para ratificar esse argumento, não é necessário nos debruçarmos em profundas especulações metafísicas, bastando apenas atentar para o nosso círculo imediato: a qualidade dos meios de comunicação, o padrão do entretenimento das pessoas, a maneira como se expressam, seus modos e suas preferências pessoais, como usam seu tempo livre, a qualidade das discussões de interesse geral, o nível da produção artística, e assim por diante. Vivemos em uma era alienante, cuja influência entorpecente, associada a uma sensação um tanto nebulosa de mal-estar geral, vai nos estreitando o horizonte de possibilidades.
Nesta era, o apreço pela excelência é subvalorizado como mero preciosismo ou capricho pessoal. Como brilhantemente descrito por Ortega Y Gasset, mas também pelas crônicas de Nelson Rodrigues, vivemos na era do Triunfo do Idiota. São as massas que determinam e impõem seu modo de vida, e que não mais se acabrunham por expressar um gosto duvidoso, sua falta de inclinação intelectual, moral e estética, mas justamente parecem exaltar tais atributos como forma de autoafirmação orgulhosa da própria insipiência. Nesse ambiente, a única constância é a volubilidade, a oscilação, a absorção total e imediata da novidade, junto a seus novos jargões e regras pré-fabricadas, onde tudo é novidade, mas com data a expirar. Não existem