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Sándor Ferenczi e as Perspectivas da Psicanálise: Elementos para uma Metapsicologia Freudo-Ferencziana
Sándor Ferenczi e as Perspectivas da Psicanálise: Elementos para uma Metapsicologia Freudo-Ferencziana
Sándor Ferenczi e as Perspectivas da Psicanálise: Elementos para uma Metapsicologia Freudo-Ferencziana
E-book442 páginas6 horas

Sándor Ferenczi e as Perspectivas da Psicanálise: Elementos para uma Metapsicologia Freudo-Ferencziana

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Sobre este e-book

O livro Sándor Ferenczi e as perspectivas da psicanálise: elementos para uma metapsicologia freudo-ferencziana apresenta uma leitura metodológica do projeto psicanalítico de Ferenczi, cujas ideias vêm sendo retomadas pela psicanálise atual. Por um lado, atribui-se aos experimentos técnicos desenvolvidos por Ferenczi no período inicial de sua obra contribuição decisiva ao introduzir alternativas de manejo na técnica, algumas das quais integram a prática psicanalítica como a conhecemos hoje. Por outro, as proposições teóricas tardias sobre uma traumatogênese das perturbações mentais teriam sido importantes para o questionamento das bases da metapsicologia, então ainda assentadas sobre as concepções de Freud. Por tudo isso, as ideias de Ferenczi teriam servido de fonte de inspiração para grandes psicanalistas pós-freudianos, não apenas no desenvolvimento de novas modalidades de tratamento, como no avanço do conhecimento psicanalítico de casos de transtornos graves da personalidade. Contudo suas contribuições para a teoria e para a técnica parecem ser vistas como pouco integradas ou mesmo dissociadas, podendo sugerir a falsa ideia de uma prática clínica desprovida ou distanciada da metapsicologia, como uma clínica do trauma, apenas. Este livro procura mostrar como a consideração das ideias metodológicas de Ferenczi, talvez eclipsadas pela valorização de suas contribuições à técnica e à traumatogênese, são decisivas para alcançarmos uma compreensão mais justa do sentido de sua obra, na qual técnica e teoria, clínica e metapsicologia revelam-se entrelaçadas em um circulus benignus de mútua interação. Assim, a partir de uma discussão preliminar de suas ideias metodológicas, o livro examina alguns dos experimentos com a técnica, a fim de mostrar não apenas como tais ensaios são orientados por teorias, mas também como uma metodologia virtuosa o conduz desde os avanços no domínio da técnica ao aprofundamento de suas reflexões teóricas, culminando na proposição de uma traumatogênese que abalaria os alicerces da psicanálise. Não menos importante, dado que desde o início é nas ideias de Freud que Ferenczi busca os recursos conceituais necessários para prosseguir em suas reflexões, o prolongamento desses desenvolvimentos o levaria a propor uma ampliação e um aprofundamento da própria metapsicologia, daí as perspectivas de uma metapsicologia freudo-ferencziana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mar. de 2020
ISBN9788547319502
Sándor Ferenczi e as Perspectivas da Psicanálise: Elementos para uma Metapsicologia Freudo-Ferencziana

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    Sándor Ferenczi e as Perspectivas da Psicanálise - Helio Honda

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    AGRADECIMENTOS

    A escrita deste livro não teria sido possível sem o financiamento concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para a realização de uma pesquisa de pós-doutoramento na França (PROC. BEX 0608/11-4). Por isso, registro aqui meu agradecimento a essa instituição de fomento, cujo papel é fundamental para a formação de pesquisadores, a manutenção da qualidade dos programas de pós-graduação e o desenvolvimento científico de nosso país.

    Agradeço igualmente à Universidade Estadual de Maringá (UEM), ao Departamento de Psicologia (DPI) e ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPI), pela concessão de afastamento das atividades docentes para a realização da pesquisa de pós-doc.

    Agradecimento especial ao psicanalista e professor doutor Luiz Eduardo Prado de Oliveira, pelo acolhimento e auxílio no período de adaptação no estrangeiro, por me apresentar Ferenczi autrement e pela amizade.

    Como este livro encontra-se no prolongamento de uma trajetória de reflexões acadêmicas e existenciais, registro aqui igualmente meu agradecimento aos professores e orientadores que tive a sorte de ter como exemplos e de quem recebi os ensinamentos e a inspiração que possibilitaram prosseguir com dedicação em meus estudos e docência; aos meus analistas, em diferentes momentos dessa trajetória, pela escuta continente e calorosa com que acolheram minhas angústias e me ajudaram a reconhecer nisso tudo o sentido próprio da experiência do viver; aos amigos e às amigas acadêmicos e não acadêmicos, aos alunos e às alunas de graduação e de pós-graduação, pela oportunidade do diálogo, aprendizado e pela presença em minha vida.

    À minha família, com gratidão e amor.

    APRESENTAÇÃO

    O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi (1873–1933) é conhecido no meio psicanalítico principalmente por suas contribuições à clínica e ao aprimoramento da técnica da psicanálise como a conhecemos hoje. De senso clínico dos mais refinados, ele próprio admitia ser reconhecido entre seus pares como um especialista em casos considerados difíceis. Além de contribuir para o aprimoramento do manejo da técnica psicanalítica, proviria igualmente da clínica ferencziana algumas hipóteses tardias sobre a traumatogênese, hipóteses que teriam imposto novos desafios ao corpo teórico da psicanálise da época, baseada principalmente na obra de Freud.

    Seu legado e influência sobre os rumos da psicanálise ultrapassam, porém, o campo da clínica e da teoria psicanalíticas. Pouco exploradas nesse aspecto, este livro procura mostrar como as ideias de Ferenczi são igualmente ricas em sugestões metodológicas, cuja explicitação pode contribuir para uma compreensão mais justa do que consideramos o projeto ferencziano para uma psicanálise teoricamente mais abrangente e aprofundada e de maior alcance terapêutico. Com esse pano de fundo, o livro apresenta uma leitura metodológica que acreditamos poder contribuir para uma compreensão mais justa sobre o sentido do projeto psicanalítico de Ferenczi, em particular, e sobre as perspectivas da psicanálise, de modo geral. Segundo essa leitura, as inovações propostas pelo autor no campo da técnica psicanalítica precisam ser consideradas como necessariamente articuladas às proposições teóricas tidas como mais radicais, como as hipóteses sobre o trauma e a clivagem primordiais, pois em Ferenczi técnica e teoria, clínica e metapsicologia, encontrar-se-iam subsumidas aos pressupostos metodológicos que organizam suas reflexões e sua atividade como psicanalista.

    Dado que desde o início de suas reflexões Ferenczi compartilha com Freud os pressupostos da metapsicologia, na qual encontra os recursos conceituais necessários para prosseguir em suas reflexões no campo da técnica como no da teoria, o prolongamento de seus desenvolvimentos o levaria a defender a necessidade de uma ampliação e aprofundamento dos próprios fundamentos da psicanálise. Daí a apresentação neste livro de alguns elementos para uma metapsicologia freudo-ferencziana.

    O autor

    PREFÁCIO

    Palavras improváveis, brincadeiras e psicanálise

    Utraquismo parece-nos hoje uma palavra de difícil compreensão. Essa palavra bárbara que nos parece tão estranha foi de uso bastante frequente em certas regiões da Europa do leste. Os utraquistas foram talvez um dos primeiros a reivindicar o emprego litúrgico de uma língua diferente do latim: queriam dizer a missa em tcheco. Para evitar uma guerra entre a Turquia e a Hungria, e sobretudo para evitar uma guerra entre cristãos e islamistas, os que queriam criar uma confederação reunindo os dois países e as duas religiões eram Utraquistas. Essa confederação e a coexistência das duas religiões implicavam o princípio da dupla inscrição da mesma forma que a coexistência judeo-cristã. Havia um sério debate para decidir se a convivência entre judeus, cristãos e islamistas se construiria sobre duas duplas inscrições, judeo-cristã e islamo-cristã ou sobre uma tripla inscrição. Não devemos esquecer que o islamismo surgiu para evitar as incessantes e terríveis guerras e massacres entre judeus e cristãos.¹

    O Império Austro-húngaro foi evidentemente, e por definição, utraquista, pois reunia pelo menos duas grandes nações: a Áustria e a Hungria. Tampouco podemos esquecer que o húngaro é uma língua fino-altaica, tanto quanto o finlandês e o turco. Por derivação, as inscrições biopsíquicas ou psicosomáticas eram utraquistas, tanto quanto os debates políticos com o objetivo de reunir teoria e prática. Era utraquista todo o movimento do romantismo classificando o mundo em termos de polaridades – corpo e alma, vida e morte, amor e ódio, expulsão e retenção, poesia e prosa, princípio do prazer e princípio de realidade. Claro está que a realidade não admite polaridades e gradações existem em permanência.

    A psicanálise inspira-se amplamente desta paixão por palavras improváveis. Ferenczi inventa, ainda: anfimixia, para designar a mistura de todos os erotismos, a partir de palavras latinas. Balint, um de seus discípulos, descobre ocnofilia e filobatismo; Lacan, que escreve em carta a Balint — Saiba que faço sempre um grande espaço em meu ensino a Ferenczi² — e que é um dos psicanalistas que mais neologismos criou, junto a Sullivan, outro aluno de Ferenczi nos Estados Unidos, que inventou stomix, para designar sexo oral, ou synstomix, para indicar felação mútua, falodotico ou stomodotico, cujo sentido lhes deixo descobrir.³ Porém, para ocnófilo e filobático, solicito o linguista desconhecido, que explica:

    Os ocnófilos (etimologicamente que amam se agarrar) temem a solidão como a peste, colecionam fotos de família, jamais saem sozinhos, preferem mil vezes noitadas diante de suas chaminés a viagens distantes; se penduram a seus empregos ou a seus cônjuges mesmo sofrendo mil mortes, não vivem nunca longe de onde nasceram, sonham em voltar a morar na casa de sua infância, passam seus fins de semana no mesmo lugar, são tão fiéis em amizade quanto no amor, sentem-se abandonados caso seus próximos se afastem deles mais do que algumas horas […].

    E prossegue, pouco além:

    Os filóbatos (etimologicamente que amam os extremos) adoram montanhas russas, paraquedismo […], viagens não planificadas às regiões mais perigosas do mundo. […] Leem romances policiais, veem filmes de horror, adoram perder-se em cidades desconhecidas, passear em florestas sem mapas, sem provisões e sem sapatos apropriados. Saem sem guarda-chuva quando ameaça chover, não suportam muito longas noites de intimidade, são ávidos de conhecer sempre novas pessoas.

    Balint, colado à sua clínica, lembra que foi observando parques de diversão que chegou a estabelecer esses dois tipos de regressão, que reaparecem em todas as análises, segundo ele, nas dos ocnófilos tanto quanto nas dos filóbatas, nas análises "dos que buscam frissons e daí tiram uma espécie de gozo, e nas dos que os rejeitam, sentindo até uma espécie de desgosto em relação a eles".

    Frissons e regressão seria o título adequado para ficarmos próximos do original.⁵ O British Medical Journal, em data de 25 de julho de 1959, não apreciou o humor húngaro do autor e considerou seu livro como dificilmente aceitável como uma contribuição séria à medicina ou à ciência, incapaz de manter um pensamento coerente.

    Não devemos esquecer uma outra possibilidade: o psicanalista pode brincar com seu paciente e uma das possíveis brincadeiras é a de criar palavras. Criá-las faz parte de sua criatividade geral, da invenção de uma clínica singular. Freud não hesitou a engatinhar em sua cozinha, brincando com seus cachorrinhos, diante de Hilda Doolittle, que ele queria que adotasse um deles.⁶ Ferenczi brincou de ser o paciente de Alice Lowell e deitou em seu divã, deixando para ela sua poltrona;⁷ Alexander, Balint ou Lacan brincaram com o tempo das sessões, encurtando-as ou alongando-as; Winnicott brincava com a pequena Piggle enquanto a analisava e o squiggle, que inventou, é uma brincadeira analítica. A criatividade clínica é uma das partes mais ricas da herança de Ferenczi, das quais todos se beneficiaram, desde Melanie Klein até Lacan, passando por Winnicott. Agradeçamos a Helio Honda pela possibilidade que nos dá de redescobri-la.

    Prof. Dr. Luiz Eduardo Prado de Oliveira

    Professor emérito de Psicopatologia e diretor de pesquisa,

    Centro de Pesquisas em Psicanálise, Medicina e Sociedade (CRPMS),

    Escola doutoral Recherches en psychanalyse, Universidade de Paris 7 – Denis Diderot.

    Psicanalista, membro do Espace Analytique.

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO

    priMEIRA parte

    METODOLOGIA

    1

    UTRAQUISMO e METAPSICOLOGIA:

    em torno de algumas ideias metodológicas de ferenczi

    1.1 | Sentidos do utraquismo de Ferenczi: definições, problemas, esclarecimentos 

    1.2 | As origens freudianas do utraquismo de ferenczi e o caráter metodológico

    da metapsicologia

    1.3 | Ferenczi e os impasses de uma metodologia utraquista 

    1.4 | O utraquismo de Ferenczi e os cânones da ciência 

    2

    a metodologia utraquista de FERENCZI E A PROBLEMÁTICA

    DA RELAÇÃO ENTRE técnica e teoria em psicanálise

    2.1 | Possíveis obstáculos à compreensão da relação entre técnica e teoria

    sob a ótica do utraquismo de Ferenczi 

    2.2 | Uma relação virtuosa entre técnica e teoria 

    2.3 | Técnica e teoria psicanalíticas segundo a fórmula ferencziana

    do circulus benignus 

    2.4 | Algumas proposições sobre o processo psicanalítico e seus níveis epistêmicos 

    segunda parte

    TÉCNICA

    3

    A questão dA técnica (ativa) em ferenczi:

    considerações contextuais

    3.1 | Justificativas para uma avaliação crítica da técnica analítica 

    3.2 | O problema da sobrevalorização da teoria na prática clínica

    3.3 | Outras falhas técnicas típicas identificadas por Ferenczi 

    4

    Ferenczi e a técnica ativa I: Primeiros ensaios de intervençãO

    4.1 | Freud, o princípio da abstinência e o protótipo de uma técnica ativa em

    psicanálise 

    4.2 | Ferenczi e os ensaios iniciais de intervenção ativa, 1918-1920

    4.3 | Uma compreensão inicial sobre a implicação do analista na situação clínica:

    o controle da contratransferência 

    5

    FERENCZI E A TÉCNICA ATIVA II:

    A REPRODUÇÃO afetiva (repetição) NA ANÁLISE, 1921-1926

    5.1 | O papel da técnica ativa na clínica de Ferenczi 

    5.2 | Justificativas teóricas da técnica ativa I: o ponto de vista econômico 

    5.3 | Justificativas teóricas da técnica ativa II: o inconsciente

    e a reprodução afetiva (repetição) na análise 

    5.4 | Justificativas teóricas da técnica ativa III: a reprodução afetiva

    (repetição) e a abreação (catarse) 

    6

    ferenczi e a IMPLICAÇÃO DO ANALISTA na situação clínica I:

    a elaboração psíquica e a credibilidade do analista

    6.1 | O caráter infantil do paciente e a sinceridade do analista 

    6.2 | O trabalho de elaboração [Durcharbeitung] e as possibilidades

    de fim de análise 

    6.3 | A credibilidade do analista como propulsora do tratamento analítico 

    7

    ferenczi e A IMPLICAÇÃO DO ANALISTA NA SITUAÇÃO CLÍNICA II:

    tato, elasticidade, relaxaÇÃO

    7.1 | O tato do analista e a segunda regra fundamental da psicanálise 

    7.2 | A elasticidade da técnica e a nova compreensão de Ferenczi sobre o

    sentido do processo analítico 

    7.3 | O princípio de relaxação [Relaxationsprinzip] e suas perspectivas

    terapêutico-teóricas 

    TERCEIRA PARTe

    METAPSICOLOGIA

    8

    o retorno a freud de ferenczi, a neocatarse

    e o advento da hipótese de uma traumatogênese

    8.1 | Breve síntese da trajetória das investigações de Ferenczi 

    8.2 | Sentido do retorno a Freud de Ferenczi (ou Ferenczi com Freud) 

    8.3 | Algumas notas sobre a teoria freudiana do trauma de sedução na infância 

    8.4 | Ferenczi, a neocatarse e o advento da hipótese de uma traumatogênese 

    9

    trauma e clivagem primordiais na psicanálise

    (ou ferenczi por ele mesmo)

    9.1 | Implicações metapsicológicas de uma traumatogênese 

    9.2 | Sobre o sentido do trauma primordial [Urtrauma] em Ferenczi 

    9.3 | O mecanismo psíquico do trauma primordial e suas fases 

    9.3.1 | O choque traumático 

    9.3.2 | A comoção psíquica e as reações aloplásticas e autoplásticas 

    9.3.3 | As identificações e a introjeção do objeto hostil

    9.3.4 | A clivagem psíquica primordial [Urspaltung

    9.4 | Autoclivagem narcísica, progressão traumática e fragmentação

    10

    elementos para uma metapsicologia do trauma

    e da CLIVAGEM PRIMORDIAis (ou freud com ferenczi)

    10.1 | Uma breve contextualização metapsicológica 

    10.2 | Vivência de dor, choque traumático e clivagem psíquica 

    10.3 | Vivência de satisfação, abandono e autoclivagem narcísica 

    10.4 | O papel do Eu nas reações ao trauma primordial:

    algumas hipóteses metapsicológicas 

    10.4.1 | Alguns esclarecimentos sobre as funções do Eu 

    10.4.2 | O Eu, a autoclivagem narcísica e a identificação na

    progressão traumática 

    10.4.3 | A identificação com o agressor e a agressividade autodirecionada 

    10.5 | Perspectivas para uma metapsicologia freudo-ferencziana 

    conclusão

    referências

    INTRODUÇÃO

    Este livro reúne alguns dos resultados obtidos em pesquisa realizada na França, durante um estágio em nível de pós-doutoramento, junto ao CRPMS (Centre de Recherches Psychanalyse, Médecine et Société), da Université Diderot–Paris 7. A partir da consideração de algumas das críticas endereçadas por Sándor Ferenczi (1873–1933) à maneira freudiana de pensar e praticar psicanálise, buscamos analisar em que medida os desenvolvimentos sobre a técnica e a teoria psicanalíticas conduzidos pelo psicanalista húngaro podem ter contribuído para a ampliação do campo da psicanálise. A hipótese é a de que os trabalhos de Ferenczi são imprescindíveis para uma compreensão mais justa dos rumos desde então tomados pela psicanálise até a atualidade.

    A fim de justificar a hipótese de trabalho, vale esclarecer que na sequência de estudos sobre a obra de Freud, um contato mais regular com a obra do psicanalista húngaro, além de chamar nossa atenção para a postura crítica de Ferenczi com relação aos rumos do movimento psicanalítico, possibilitou-nos discernir nele sobretudo uma prática e um pensamento psicanalíticos comprometidos com pressupostos metodológicos claros. A análise de alguns textos ferenczianos de caráter metodológico, presentes na obra publicada em conjunto com Otto Rank, intitulada Perspectivas da psicanálise,⁸ levou-nos a constatar uma preocupação comum com algumas das questões que norteiam nossa própria reflexão sobre a psicanálise, a saber: a problemática da relação entre técnica e teoria.⁹

    Paralelamente, o acesso a obras de outros autores trouxe-nos outra constatação: a de uma proliferação de estudos sobre a obra de Ferenczi, não apenas em língua francesa,¹⁰ mas igualmente em inglês, alemão, italiano e espanhol.¹¹ A mesma abundância de estudos pode ser verificada em periódicos especializados em psicanálise, em particular em língua inglesa. Verificamos que investigações acerca da contribuição de Ferenczi para a psicanálise intensificaram-se, sobretudo, a partir da década de 1990, quando parece ter ocorrido um boom de trabalhos em torno de sua obra. A esse respeito, Berman,¹² por exemplo, refere-se a um renascimento de Ferenczi. Mas é Eros,¹³ retomando as raízes históricas e políticas desse interesse, quem vai se referir a um verdadeiro culto a Ferenczi. A despeito dessa abundância bibliográfica, ao menos até onde pudemos chegar no levantamento dos textos, notamos que raros eram aqueles que analisavam certas questões de ordem metodológica postas por Ferenczi e que vinham ao encontro de nosso interesse.

    À medida que avançávamos no estudo dos textos do autor, verificávamos que apesar da postura crítica com relação ao estado da psicanálise da época, o encontro de suas ideias com as de Freud não se dava apenas pelo interesse de ambos pelo conhecido projeto Lamarck,¹⁴ nem por quaisquer outros pontos de vista envolvidos com o movimento psicanalítico. A convergência que vislumbrávamos dizia respeito aos próprios fundamentos da psicanálise. Em outras palavras, notamos nos textos de Ferenczi uma preocupação constante não apenas com a coerência entre técnica e teoria na prática clínica, mas sobretudo a preocupação com o aprofundamento e ampliação da base conceitual da psicanálise.

    Procuraremos demonstrar que a partir de uma crítica interna rigorosa, longe de encaminhar-se para a dissidência, Ferenczi esforça-se por superar certos impasses epistemológicos com que se deparava a psicanálise de sua época, cujas implicações incidiam diretamente no plano da terapêutica. É com essa intenção que se envereda por experimentações e proposições inovadoras no domínio da técnica psicanalítica, desenvolvimentos esses que teriam lhe custado a reputação entre seus pares.¹⁵ Apesar do fracasso dos esforços envidados nos experimentos com a técnica, fracasso este reconhecido pelo próprio autor,¹⁶ nossa leitura dos textos do psicanalista húngaro, como assinalamos acima, foi-nos revelando um outro aspecto de seu pensamento, o seu compromisso com os fundamentos da psicanálise.

    A atenção a certos detalhes no reestudo dos textos técnicos de Ferenczi mostrava-nos que tais esforços de inovação técnica não estavam dissociados de uma preocupação teórica. Dito de outro modo, constatávamos que os experimentos técnicos conduzidos por Ferenczi eram orientados e legitimados por pressupostos metapsicológicos claros. Assim, começávamos a ver no psicanalista húngaro um praticante e pensador psicanalítico engajado com os princípios da metapsicologia freudiana. Longe, portanto, de abrir caminho a desenvolvimentos psicanalíticos unilaterais que pudessem justificar privilégios concedidos à técnica e à prática clínica em detrimento da teoria, no limite, uma clínica sem metapsicologia, conforme questionada por Gabbi Jr.,¹⁷ o engajamento de Ferenczi orienta-se claramente na direção de uma práxis na qual, em psicanálise, técnica e teoria, clínica e metapsicologia precisam ser compreendidas como indissociáveis.

    Mais do que isso, porém, a sequência de estudo dos textos do autor revelou-nos outros aspectos de suas ideias, que vinham ao encontro de outras questões por nós consideradas chave para uma compreensão mais justa do sentido do projeto psicanalítico iniciado por Freud. Uma dessas questões, aquela que mais chamou nossa atenção, refere-se a certas exigências metodológicas que Ferenczi, assim como Freud, leva em conta na abordagem de todo fenômeno psíquico, quer dizer, verificamos entre ambos os autores uma convergência no plano metodológico.

    Na perspectiva de Ferenczi, tratar-se-ia do método por ele denominado utraquista, a partir do qual nunca deixam de ser considerados aspectos distintos, invariavelmente interdependentes, envolvidos num fenômeno em estudo. Além da articulação necessária entre técnica e teoria, a título de ilustração, vale mencionar que em Thalassa, ao tematizar os processos ligados ao erotismo anal, em sua abordagem utraquista Ferenczi¹⁸ não deixa de considerar os processos uretrais, não apenas devido à contiguidade entre eles, mas sobretudo devido a um fator erótico comum. Nesse sentido, os processos anais dificilmente chegariam a ser correta e suficientemente esclarecidos sem a consideração de sua interação com os processos uretrais e vice-versa. E é exatamente essa metodologia utraquista que Ferenczi reconhece na maneira freudiana de abordar os fenômenos psíquicos. Tomemos, por exemplo, o conceito freudiano de pulsão (Trieb). Dentre outras razões, não teria este conceito sido formulado na tentativa de dar conta do problema da interdependência entre fatores somáticos e fatores psíquicos?¹⁹ Em outras palavras, se além de designar a base teórica que sustenta o edifício da psicanálise,²⁰ a metapsicologia freudiana consiste, conforme explicita Delrieu,²¹ em um método de investigação para abordar os fenômenos psíquicos em suas dimensões tópica, dinâmica e econômica,²² então poder-se-ia dizer com Ferenczi²³ que se trata aí de um método utraquista.

    Eis, portanto, entre os diferentes aspectos da obra de Ferenczi que vislumbramos como convergentes com o pensamento do fundador da psicanálise, a convergência metodológica que consideramos a mais significativa. A importância decorreria do fato deste encontro se dar no plano da metapsicologia, isto é, no plano próprio aos pressupostos teóricos, princípios e conceitos fundamentais que constituem o cimento da psicanálise. Justamente por isso é que assinalamos acima que não se trataria de uma convergência transitória baseada em interesses ocasionais, mas que, a despeito das críticas e de certas divergências entre ambos, a articulação entre o pensamento de Ferenczi e o de Freud se daria, conforme nos ensina Waelder²⁴ e Schmidt-Hellerau,²⁵ emuma camada mais profunda do discurso psicanalítico.

    Com efeito, na medida em que consigamos penetrar e demonstrar a convergência efetiva das ideias desses dois autores nesse estrato mais profundo do discurso, o nível de pressupostos e proposições de maior grau de abstração e generalidade, obviamente, as conclusões daí extraídas devem ser portadoras de uma validade mais ampla. Dito de outro modo, na medida em que seja possível demonstrar a convergência entre as ideias desses dois autores no plano dos pressupostos e das proposições básicas, e, adicionalmente, na medida em que consigamos demonstrar como algumas das contribuições de Ferenczi integram-se às de Freud, talvez possamos explicitar alguns elementos para pensarmos uma base conceitual comum de maior alcance para a psicanálise atual.

    A hipótese de uma metapsicologia ampliada resulta de algumas constatações. Uma delas indicava que para além da busca por um aprimoramento na técnica psicanalítica, o projeto ferencziano alcançava dimensões que pareciam ultrapassar inclusive os limites das preocupações de Freud e da sistematização conceitual alcançada pela psicanálise freudiana d’então. Vale atentar para a época da produção intelectual de Ferenczi, pois este morre em 1933, legando um questionamento e alguns escritos que, seria necessário examinar, podem ter servido de material ou ao menos estimulado certas proposições de Freud, lançadas ao longo dos seis últimos anos de sua atividade intelectual, já que este morre em 1939.

    Do ponto de vista do projeto de Ferenczi, a partir de 1918, verifica-se uma série de tentativas de inovação na técnica da psicanálise. Apesar do insucesso desses esforços, o aprendizado extraído de tais experimentos e o horizonte teórico-clínico aberto a partir deles, levam-no, a partir de 1929, a radicalizar em seus esforços. E dado que os resultados de seu trabalho psicanalítico apontavam para um esboço novo sobre a configuração do psiquismo, configuração esta que escapava ao modelo mais atualizado vigente na psicanálise, a segunda tópica do aparelho psíquico, proposta por Freud em 1923,²⁶ não é de se estranhar que Ferenczi tenha não apenas alimentado um desejo secreto de revisar a metapsicologia freudiana, em pontos particulares como, por exemplo, a teoria das pulsões, a sexualidade feminina e o complexo de édipo, mas igualmente produzido um volume razoável de anotações de ideias para desenvolvimentos posteriores.²⁷

    Subjacente ao desejo de revisar a metapsicologia freudiana, verificamos que há nos textos de Ferenczi intuições teóricas que ajudam, senão a pensar um modelo reformulado, a aprofundar nossa compreensão dos modelos de aparelho psíquico propostos por Freud. Tal hipótese encontraria amparo nos princípios que ordenam as reformulações realizadas pelo próprio fundador da psicanálise ao longo de sua obra. Mas, acima de tudo, a possibilidade de pensar um aprofundamento da concepção freudiana de psiquismo a partir das contribuições de Ferenczi pareceu-nos justificada, como indicamos acima, pela convergência das ideias desses dois autores no plano do método e dos pressupostos metapsicológicos.

    Passemos, então, ainda que no âmbito desta introdução, a algumas considerações mais específicas. Como se sabe, ao longo de sua obra, à medida que certa ordenação de novos dados clínicos apontavam para as limitações do modelo teórico vigente, Freud não deixava de revisá-lo e, quando necessário e possível, reformulá-lo. Reformulação desse gênero teria sido aquela efetuada sobre o modelo de aparelho psíquico formulado em 1900, em A interpretação dos sonhos, conhecido como primeira tópica,²⁸ levando-o a propor em 1923 um segundo modelo, a denominada segunda tópica do aparelho psíquico.²⁹

    Embora tenha sido formulada para explicar o fenômeno onírico, a primeira tópica, em que o aparelho psíquico é concebido como composto de sistemas psíquicos (Inconsciente e Pré-consciente/Consciente), passou a fundamentar os desenvolvimentos subsequentes na clínica psicanalítica. Porém, como se costuma encontrar relatado por alguns autores,³⁰ a psicanálise praticada sob a vigência desse modelo de aparelho psíquico teria se deparado com dificuldades que apontariam não só para os limites da teoria vigente, mas colocava em xeque o processo de cura psicanalítica. Tudo teria se passado como se novos fatos clínicos trazidos à baila, sobretudo os acumulados ao longo de dificuldades e fracassos no processo analítico, cujo exemplo maior na literatura psicanalítica do período parece ser o caso do homem dos lobos,³¹ tivessem paulatinamente convencido Freud acerca da necessidade de rever e reformular o modelo teórico vigente. Tal reformulação seria levada a cabo na tentativa não apenas de explicar fatos não explicados pelo modelo anterior, mas na medida em que vem orientar a prática clínica subsequente, o novo modelo tenderia a estimular a produção de conhecimentos novos sobre a realidade fenomenal envolvida. E, de fato, como se constata pela análise dos textos freudianos desse período de reviravolta clínico-teórica, Freud não formula apenas um novo modelo de aparelho psíquico, agora concebido estruturalmente como formado por Id, Eu e Super-eu, uma segunda tópica,³² mas, antes dele, um modelo teórico igualmente novo para as pulsões é trazido à luz em Além do Princípio do Prazer.³³

    Dentre outras coisas, essa reviravolta nos fundamentos da psicanálise ensina-nos como a metapsicologia freudiana precisa ser compreendida como uma estrutura teórica na qual os conceitos que a compõem encontram-se mutuamente articulados de forma lógica, não sendo possível abrir mão de um deles sem que a rede conceitual como um todo ou parte considerável dela se veja desarticulada, seus nós desatados. É o caso da articulação entre o novo dualismo pulsional, proposto em 1920, e a nova tópica do aparelho psíquico, de 1923. Ou seja, o fato de a partir de 1915, motivado pelos fracassos clínicos acumulados, Freud ter sido levado a repensar o modelo de aparelho psíquico da primeira tópica, teria trazido consigo a necessidade de repensar igualmente outros componentes conceituais diretamente envolvidos, como a concepção sobre as pulsões.³⁴

    Ao sugerirmos uma certa progressão teórica ao longo das reformulações efetuadas por Freud sobre o modelo de psiquismo, não queremos com isso fazer entender que vemos a psicanálise freudiana, e em particular a metapsicologia, como um bloco de conceitos absolutamente integrados, como se o simples fato de seu autor fiar-se pelo critério da coerência lógica proporcionasse à obra uma amarração conceitual livre de contradições. Pelo contrário, a despeito dos esforços de Freud para reduzir as contradições mais aparentes, tais reelaborações, necessárias para tornar a teoria coerente com fatos clínicos novos, podem mostrar-se logo insuficientes, exigindo esforços contínuos rumo a uma estabilidade conceitual cada vez mais duradoura e heuristicamente virtuosa. Por outro lado, na medida em que os pressupostos sejam considerados razoáveis, a persistência de contradições ou o surgimento de novas incoerências, após a redução das mais evidentes, pode constituir-se em motivação para avançar nas pesquisas, como nos parece ser o caso da evolução relativa do conhecimento sobre o psiquismo resultante do trabalho de Freud e, tentaremos mostrar, igualmente dos esforços de Ferenczi. Obviamente, críticas às contradições apresentadas pela psicanálise, em particular à obra de Freud, são inúmeras, e não se trata aqui de ignorá-las, como não ignoramos as críticas internas formuladas pelo próprio Ferenczi. Pelo contrário, neste livro, conhecer melhor o sentido das críticas do psicanalista húngaro à teoria freudiana constitui-se em motivação.

    Assim, embora nos orientemos por certos critérios epistemológicos, estamos afastados da crença num ideal de ciência ou da expectativa em se chegar a um conhecimento sobre o psiquismo humano livre de contradições, cujos conceitos pudessem desembocar em uma teorização acabada, como um sistema filosófico, por exemplo. A perspectiva da análise apresentada neste livro é a de averiguar, no caso da psicanálise de Ferenczi e Freud, a produtividade heurística da metapsicologia, na mesma medida em que, a despeito das reformulações conceituais a que Freud se viu obrigado a efetuar ao longo de sua obra, uma estabilidade relativa no sentido dos conceitos permaneceria garantida pela sua subsunção a certos pressupostos e princípios gerais.

    Nesse sentido, vale reforçar a compreensão de que nenhum conceito componente da teoria psicanalítica teria sido formulado, desde o começo, em sua forma acabada. Analogamente a outras disciplinas científicas, o exame da evolução da teoria psicanalítica revela que seus conceitos centrais nasceram de uma intuição inicialmente vaga sobre o fenômeno investigado, guiada por algum pressuposto geral, sendo paulatinamente enriquecidos pelos fatos clínicos, corrigidos e retrabalhados em diferentes níveis teóricos, adquirindo só mais tarde o estatuto de um conceito propriamente dito.³⁵ Compreendemos, assim, que os desenvolvimentos realizados por Freud acerca dos modelos de aparelho psíquico inserem-se num movimento próprio ao pensamento de um autor fiel a certos pressupostos gerais e a princípios deles derivados. É desse modo que nos referimos a uma certa estabilidade de sentido subjacente às reformulações promovidas por Freud ao longo de sua obra; e é nesse sentido que compreendemos a convergência entre Ferenczi e Freud, e buscaremos examinar as contribuições do primeiro e as possibilidades de uma metapsicologia ampliada.

    Além de encontrarmos nos textos do próprio Freud asserções coerentes com esse tipo de visão epistemológica interacionista entre ideias iniciais e resultados de procedimentos técnicos improvisados, como as apresentadas nos parágrafos iniciais do texto sobre as pulsões,³⁶ esse tipo de aprimoramento na compreensão teórica, mediante sua articulação no manejo prático, é bem ilustrado desde os primórdios da psicanálise pelo advento da regra fundamental da livre associação. Afinal, o longo exercício de ensaio e erro iniciado

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