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Ensaios: teoria, história & ciências sociais
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Ensaios: teoria, história & ciências sociais
E-book327 páginas5 horas

Ensaios: teoria, história & ciências sociais

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Sobre este e-book

Este livro aborda os problemas do conhecimento histórico no século XX, analisa os temas cruciais do pensamento histórico contemporâneo: "história e ficção", "história e memória", os conceitos de "acontecimento", "estrutura", "narrativa", "processo", "representações" e "historiografia". A crise atual da história a colocou entre a ciência social e a ficção, entre os Annales e Hayden White, obrigando-a a rever e a ressignificar os seus conceitos e valores. A obra oferece ao profissional e estudante de história um panorama riquíssimo, com análises múltiplas e aprofundadas de quase toda a historiografia contemporânea.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento18 de dez. de 2015
ISBN9788572167727
Ensaios: teoria, história & ciências sociais

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    Ensaios - Jurandir Malerba

    years.

    Agradecimentos

    Meu reconhecimento aos dois consultores ad hoc da EDUEL, cuja leitura crítica e profissional muito proveito teve para a revisão final deste livro, que começou a ser escrito há quinze anos e tanto se beneficiou da generosidade alheia. Certamente estarei cometendo omissões imperdoáveis, mas não poderia deixar de expressar minha gratidão àqueles que, de diversas maneiras, ajudaram a pavimentar minha construção no campo da teoria: Ciro Flamarion Cardoso, Francisco Falcon, Vânia Fróes, Ismênia Martins, Leandro Konder, José Carlos Reis, Ronald Polito, Carlos Fico, Ronaldo Pereira, Paulo Parucker, Claudia Pas, Plínio Freire Gomes, Alcir Pécora, Silvia Zanirato, Sidnei Munhoz, Raimundo Cordeiro, Hélio Rebello, Helenice Rodrigues, Luiz Geraldo Silva, Astor Diehl, Lilia Schwarcz, o pessoal do Seminário Nacional de História da Historiogerafia (UFOP), Georg Iggers, Jörn Rüsen, Masayuki Sato, Lerina Repina, Massimo Mastrogregori, François Dosse, Allan Megill et al...

    Sumário

    Agradecimentos

    Prefácio

    Nota introdutória

    ficções: ensaio de imaginação histórica

    memória: entre história e a historiografia

    acontecimentos: definições e propriedades

    estruturas: estruturalismo e história estrutural

    narrativa: história e discurso

    historiografia: conceito e prática

    processos: Elias

    representações: Elias e Bourdieu

    Prefácio

    Qual seria o valor e o alcance científico do debate epistemológico? A discussão teórico-metodológica é relevante? Para Weber, ela só se torna incontornável quando uma ciência entra em crise.

    Ora, se for assim, a epistemologia da história deve ser a oração matinal de todo historiador, pois, há cerca de 2500 anos, a história existe em constante e saudável crise. Surgiu nos séculos V/IV AC como obra escrita em prosa e assinada, opondo-se ao mito, à lenda, ao poeta. Era um olhar novo, que buscava a verdade das mudanças humanas no tempo. Heródoto acreditava ser possível falar das coisas humanas, temporais, com verdade. Depois, a história se confundiu com a mitologia política, o historiador investigava e pesquisava para legitimar o poder romano. Depois, a história fundiu-se com a fé cristã, tornando-se o levantamento dos casos em que a Vontade de Deus se expressou. No século XVIII, apesar da busca da história perfeita dos séculos XVI/XVII, deixou-se dominar pela especulação filosófica e tornou-se uma metanarrativa especulativa, teleológica, utópica. No século XIX, quis outra vez romper com a intuição poética, com a retórica política, com a inspiração artística, com a fé, com a especulação filosófica, e inventou uma nova identidade, ciência, rendendo-se ao sucesso das ciências naturais, buscando fatos concretos, documentos, e procurando estabelecer impossíveis leis de desenvolvimento histórico. Nos séculos XIX e XX, a história deixou-se fascinar por Marx, Weber, Durkheim, e pretendeu tornar-se uma ciência social. No início do século XXI, essa identidade não a satisfaz plenamente e ela volta a se relacionar mais intimamente com a literatura, com a poesia, a psicanálise, o cinema, a publicidade, enfim, retorna a Homero. E tudo indica que, em futuro breve, ela vai se envolver com problemas genéticos, físico-químicos, neurocientíficos, ambientais e da eletrônica virtual.

    Portanto, sempre em crise, a historiografia exige do historiador uma reflexividade radical. Para Bourdieu, não há oposição entre teoria e metodologia, pois as opções técnicas mais empíricas são inseparáveis das opções teóricas de construção do objeto. É em função de uma certa construção do objeto que tal método, tal técnica, se impõe; é em função de uma teoria/hipótese que um dado pode funcionar como evidência. As fontes primárias não são provas em si mesmas, são construídas teoricamente por uma história-problema. Por um lado, a historiografia é feita de modo prático, não explícito, inspirada nos clássicos: faça como eu. O risco desta historiografia prática é tornar-se instrumento da sociedade para se legitimar, uma historiografia oficial, que faz o que todos fazem. Por outro lado, a historiografia é crítica, desafia os critérios correntes do rigor científico, desvencilha-se de encomendas burocráticas, dos problemas oficiais, o historiador torna-se sujeito dos seus problemas, o construtor da sua teoria. Ele pratica a dúvida radical e, de certa forma, põe-se fora da lei. O pré-construído está em toda parte, mas a construção do objeto exige a ruptura epistemológica com as representações compartilhadas. Para Bourdieu, o historiador deve praticar a dúvida radical, por em suspensão tudo que interiorizou como membro da sociedade e como historiador, para manter uma reflexividade obsessiva, porque uma prática científica que se esquece de se por a si mesma em causa não sabe o que faz.

    Um dos historiadores que mais se destaca nessa importante área da pesquisa teórica e historiográfica, que mais pratica essa reflexividade radical, que mais problematiza a operação historiográfica, no Brasil, é Jurandir Malerba. Neste livro, Ensaios: Teoria, História & Ciências Sociais, aborda os problemas do conhecimento histórico no século XX, analisa os temas cruciais do pensamento histórico contemporâneo: história e ficção, história e memória, os conceitos de acontecimento, estrutura, narrativa, processo, representações e historiografia. A crise atual da história a colocou entre a ciência social e a ficção, entre os Annales e Hayden White, obrigando-a a rever e a ressignificar os seus conceitos e valores. Jurandir Malebra, depois de organizar Lições de História (FGV/2010), que cobre a historiografia do longo século XIX, pré-Annales, agora, oferece estudos sobre a historiografia dos Annales e pós-Annales, indo da história estrutural às querelas pós-estruturalistas. As duas obras oferecem ao profissional e estudante de história um panorama riquíssimo, com análises múltiplas e aprofundadas de quase toda a historiografia contemporânea.

    José Carlos Reis

    Departamento de História/UFMG

    Nota introdutória

    Para além de seu propósito acadêmico precípuo, este livro cumpre para mim a função existencial de um acerto de contas, um balanço de trajetória. O conjunto de ensaios aqui reunidos reflete os territórios por onde tenho caminhado nos últimos três lustros, pouco mais. A docência de disciplinas teóricas, desde meu ingresso no magistério superior em 1993, acabou induzindo a um deslizamento natural de minhas atividades de pesquisa da área de Brasil para o estudo sistemático no campo da mesma teoria, que até muito recentemente caminharam paralelamente.

    Revolvendo pastas e arquivos, físicos e digitais, percebi que havia acumulado significativo montante de material sobre esses temas com os quais venho ocupando meu tempo de trabalho desde meu ingresso na carreira docente.

    O conjunto ora reunido constitui-se, em sua maior parte, de artigos publicados em revistas acadêmicas brasileiras, eventualmente de difícil acesso. Para harmonizar o conjunto na obra, alterei-lhes os títulos originais, depurando-se seu sentido ou problema mais central numa única palavra, que agora nomeia cada ensaio, acrescida de um subtítulo. A articulação do conjunto também se evidenciou com maior clareza mercê dessa operação. O título da obra dá exatamente o tom do que consiste o trabalho da reflexão teórica, essa atividade permanente de construção e reconstrução, esse talhar dos conceitos, a moldagem das ideias, enfim, o livre exercício do pensamento; tentativa (como, a propósito, Carlo Ginzburg nomeou um belo livro de ensaios¹), mas também, como definem alguns dicionários: exame, análise , experiência para ver se uma coisa convém ao fim a que se destina, ou ainda, apre­sentação de um assunto filosófico, científico, histórico ou de teoria literária, que se caracteriza pela visão de síntese e tratamento crítico. Reunir este conjunto significa também pô-lo à prova, testá-lo, para ir além na reflexão sobre os temas abordados.

    Abre-se o volume com um texto de juventude, escrito em 1994.² Tomando de empréstimo o conceitual de Heyden White, talvez não soe exagerado dizer que esse texto foi construído numa modulação irônica. Trata-se, sem dúvida, de um texto juvenil, mas que, com liberdade, apresenta uma série de questões teóricas que estarão presentes em meus estudos posteriores, como o atestará a sequência dos ensaios ora compilados. Seu ponto de partida é a questão que divide historiadores narrativistas e científicos no cenário contemporâneo, a partir do postulado dos primeiros de que nenhuma diferença essencial há entre a narrativa ficcional e a histórica (científica): qual o limite – ético – do uso da imaginação no trabalho de investigação histórica?

    As relações amiúde tensas entre história e memória, e em particular a reflexão sobre a historiografia como forma de expressão da memória, constituem a matéria do segundo capítulo, inédito até esta oportunidade.

    Pensar o acontecimento foi sempre um imperativo, determinado pelas exigências de minhas pesquisas em história do Brasil. Se entendermos a vinda da corte joanina para o Brasil em 1808 e sua permanência aqui como um fato histórico;³ se me defronto com a necessidade de pensar a independência brasileira,⁴ então não há como deixar de encarar o desafio de pensar esse conceito fatídico de fato ou acontecimento histórico, objeto do terceiro capítulo desta obra.⁵

    Na grande impugnação que se fez ao conceito de acontecimento, associado à concepção metódica (dita positivista) de história, a historiografia renovadora do século XX, inaugurada por Febvre e Bloch na França dos anos 1920, opunha a essa história episódica, factual, événementielle, uma história diversa, não narrativa, mas explicativa, científica e, a partir da geração de Braudel, estrutural. O impacto do estruturalismo fundido por Levis-Strauss primeiramente na antropologia, metastasiado logo por todas as ciências sociais, ainda hoje é fortemente sentido.⁶ Procuro recuperar, até didaticamente, o contexto de surgimento do fenômeno estruturalista e seu primeiro impacto na história, na desaceleração do tempo histórico e no descentramento do homem em favor das estruturas, quando da afirmação da história estrutural, particularmente no seio da segunda geração dos Annales. Essa matéria do quarto capítulo é preparatória para a discussão desenvolvida no capítulo seguinte, sobre narrativa histórica, o qual, de alguma maneira, alinhava os outros dois anteriores e constitui um conjunto à parte dentro deste volume. O ensaio sobre narrativa começou a ser pensado para um colóquio sobre história da historiografia e teoria da história, realizado em agosto de 2006 na Universidade Federal de Juiz de Fora.⁷ A riqueza dos debates impeliu-me a ampliar as discussões e assumir uma posição mais clara em relação aos desdobramentos radicais da epistemologia pós-estruturalista, convertidos numa historiografia pós-modernista (será que existe uma? Ou será ela não mais que um efeito falaz de linguagem?), eminentemente antirrealista e narrativista.

    Ao esforço no aprimoramento da construção e do uso prático do conceito de historiografia, venho procurando me dedicar já há algum tempo.⁸ As reflexões anteriores sobre o estatuto teórico de acontecimento, estrutura, narrativa, sobre o diálogo da história com as ciências sociais, culminam naturalmente, obedecidos os cânones da metodização histórica, na produção de textos de história. Assim, como ensina Rüsen, ao cumprir a função de racionalizadora da pragmática textual, a teoria regula a atividade historiográfica. A historiografia passa a ser parte integrante da pesquisa histórica, cujos resultados se enunciam na forma de um saber redigido. (RÜSEN, 2001, p. 45).

    Os dois últimos capítulos revelam investimentos de estudo em duas matrizes das ciências sociais em que tive que mergulhar, em diferentes momentos, por várias razões, a diversas profundidades.

    Os capítulos sobre Norbert Elias, tanto quanto o seguinte, que busca pensar possíveis conexões entre Elias e Bourdieu em prol de uma teoria simbólica diversa da estruturalista, foram os únicos já publicados em livros que, porém, encontram-se esgotados e sem sinal de reedição.⁹ Se os livros esgotaram-se, seus assuntos estão longe disso. No primeiro, faço uma aproximação à obra de Norbert Elias, criticando sua apropriação instrumental pela comunidade acadêmica brasileira, que descartou sua concepção totalizante de evolução social, sua ênfase na ideia de processo, para recuperá-lo apenas como precursor de uma história de minudências. A comparação dessa matriz com Bourdieu, reflexão que estofou teoricamente minha pesquisa sobre a corte no exílio, inseriu-se num momento de reflexão sobre a reverência panaceica da historiografia brasileira face ao conceito de representação, quando da sangria da nova história cultural por aqui na década de 1990. Acredito que ambos ainda não perderam sua pertinência vis-à-vis o debate atual.

    Este volume é a expressão do resultado de um trabalho permanente de reflexão que venho desenvolvendo há anos e que, espero, contribua para animar o debate em nossa área de atividade profissional.


    ¹ Ginzburg, Carlo. Tentativas. Morelia, Mx: Universidad Michoacana San Nicolas Hidalgo, 2003.

    ² Originalmente intitulado Mortes nas gerais pós-mineração: Escolástica, Hermenêutica, Interdisciplinaridade e Acaso num ensaio de imaginação histórica, publicado com o mesmo título na Revista do Ifac. Ouro Preto (MG), v.4, p.44-50, 1997.

    ³ Como foi objeto de minha pesquisa de doutorado que resultou no livro A corte no exílio; civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; e também de outros trabalhos: MALERBA, J. Dramaturgia do poder: o teatro da política do Brasil as vésperas da independência. In: Veronica Salles Reese (ed). Repensando el pasado, recuperando el futuro: Nuevos aportes interdisciplinarios para el estudio de la América colonial. Bogotá: Editorial Pontificia Universidad Javeriana, 2005; MALERBA, J. Une société de cour sous les tropiques. In: Sophie Chevalier, Jean-Marie Privat (ed). Norbert Elias et l’anthropologie. Paris: CNRS Editions, 2004.

    ⁴ MALERBA, J. Independence-Brazil. In: Encyclopedia of Iberian American Relations. Santa Barbara (CA): ABC-CLIO, J. Michael Francis editor, 2005, p. 564-568; A independência brasileira: novas dimensões. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2006; As independências do Brasil; ponderações teóricas em perspectiva historiográfica, História, São Paulo, v. 24, n. 1, 2005, p. 99-126; Para uma História da Independência – apontamentos iniciais de pesquisa. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 165, n. 422, p.59-86, 2004.

    ⁵ Originalmente publicado como Pensar o Acontecimento, História Revista - Revista do Departamento de História e do Programa de Mestrado em História das Sociedades Agrárias/ Universidade Federal de Goiás - Goiânia: Ed. do Mestrado em História, v.7, n. 1/2, p. 117-149, jan/dez. 2002.

    ⁶ Principalmente naqueles autores egressos do campo da teoria e da crítica literária. Cf. Lima, 1973; Lima, 2006.

    ⁷ Este ensaio foi recentemente publicado no Brasil e no México. Cf. Malerba (2007a, p. 41-78); Malerba (2007b, p. 63-80).

    ⁸ Este ensaio foi originalmente publicado como Em busca de um conceito de historiografia: elementos para uma discussão, Revista Vária História, Belo Horizonte, v. 17, p. 23-56, 2003. Avancei nessa discussão em Malerba (2006).

    ⁹ Sobre Norbert Elias In: Malerba, J. (ed.) A velha História. Campinas: Papirus, 1996. Para uma teoria simbólica: conexões entre Elias e Bourdieu. Cardoso, Ciro F.; Malerba, J. (org). Representações; contribuição a um debate transdiciplinar. Campinas: Papirus, 2000.

    I

    ficções: ensaio de imaginação histórica

    Tinha aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim.

    Suspeito, contudo, que não fosse capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair.

    Borges. Funes, o memorioso. Ficções.

    1. Esforço-me por recordar; porém, para além de lembranças e esquecimento, há inúmeros registros. O desafio fora lançado no final da década de 1960 pelos pós-estruturalistas franceses. Desde as impugnações às versões tradicionais e realistas da história feitas por autores como Roland Barthes e, radicalmente, Michel Foucault, o grande nó conceitual da teoria da história passara a ser a construção do discurso histórico.¹ Hayden White, nos Estados Unidos, assenhoreara-se do pansemiotismo francês para elaborar sua sofisticada tese narrativista. Desde então, um número imenso de teóricos, sobretudo na França e nos Estados Unidos, a maior parte advindos da crítica literária, frequentemente identificados como pós-modernos, passaram a questionar ferozmente a possível existência de qualquer distinção entre fato e ficção, história e poesia (literatura). De acordo com essa visão, a história não teria qualquer realidade subjacente como substrato para as afirmações dos historiadores, ou seja, a história não teria qualquer ligação com uma suposta realidade extratextual. Mas não me satisfaz ter-me como um personagem de um texto e admitir que minha vida estivesse já prefigurada antes mesmo de eu ser no mundo. Soa-me demasiado metafísico, senão teológico. Insisto em manter os pés fincados no chão.

    A tese narrativista, que discutiremos em outro capítulo, afirma aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu uso linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas. De acordo com essa tese, as estórias ficcionais inventadas por Borges e as narrações históricas de Sérgio Buarque de Holanda não diferem uma da outra em nenhum aspecto essencial porque ambas são constituídas pela linguagem e igualmente submetidas às suas regras na prática da retórica e da construção das narrativas. Deste ponto de vista, as narrativas históricas possuem o mesmo status epistemológico que discursos ficcionais produzidos por escritores ficcionistas, como os autores de romance, de modo tal que seria impossível distinguir entre história e ficção.

    A prudência recomendaria não pender para os extremos. Conforme procurarei argumentar nos capítulos deste livro, não é possível prescindir do realismo histórico. Porém, num momento como este em que vivemos, quando, em função de uma pulverização dos temas de investigação histórica, decorrente de um novo conceito de totalidade traçado a rés do chão de cada objeto, o debate teórico volatiliza-se, enfrentar a discussão teórica da relação entre ficção e história torna-se um imperativo.² Meu objetivo, neste ensaio, é o de, enquanto ilumino alguns topoi fundamentais da teoria da história – que serão retomados nos capítulos subsequentes –, pensar as possibilidades ilimitadas do uso da imaginação na prática historiográfica, sem, contudo, sentir-me coagido a prescindir do metier de historiador para ter inexoravelmente que me tornar um ficcionista.

    O ritual acadêmico prescreve, em nome se não de uma objetividade científica, ao menos da delimitação de códigos mínimos para a eficiência intersubjetiva, a clara demarcação de um campo investigativo. De modo que a linha de raciocínio que pretendo desenvolver se limitará a algumas interfaces da história com as outras ciências sociais, excluindo-se dessa forma, o inesgotável debate sobre interdisciplinaridade no âmbito epistemológico geral. Nem mesmo as interseções entre história e demais ciências da natureza, como a física ou a biologia – se bem que já exploradas desde há algum tempo – serão aqui contempladas.

    Pode-se partir da afirmação de que, pelo menos desde os historiadores cientificistas, da virada para o século XX, o problema da interdisciplinaridade já estava posto, se bem que de um modo bastante imperialista: certas ciências auxiliares, como entre outras epigrafia, paleografia, diplomática, heráldica, numismática e arqueologia deveriam servir à investigação histórica no momento da crítica das fontes. Alguns, com o descrédito até de Langlois e Seignobos (1946, p. 32), reduziam outros campos do conhecimento a bases propedêuticas para a escrita da história, como a filosofia, direito, finanças, etnografia, geografia, antropologia, ciências naturais etc. A obsessão por se eliminar qualquer resíduo subjetivo, qualquer marca do sujeito cognoscente do produto de seu trabalho intelectual fundava-se num entendimento muito peculiar de ciência histórica, segundo o qual seus objetos seriam fatos únicos, singulares, sendo irredutíveis, portanto, à formulação de leis. Deveria então a história contentar-se, em nome de uma insuspeita objetividade do conhecimento, com a compilação de suas unidades causais, os fatos residentes nos arquivos, para que ciências mais inteligentes, como a sociologia - e depois a antropologia - providenciassem a síntese. Mas, desde já o problema da interdisciplinaridade estava posto.

    Se esta página do pensamento contemporâneo pode ser mapeada historicamente (DOSSE, 1992), fazê-lo não implica automaticamente equacionar com êxito determinadas pendências teóricas inerentes à questão da interdisciplinaridade dentro das ciências sociais. A crise de paradigmas das ciências, de que nos informa Arno Wehling (1992, p. 147-169), com a superação da epistemologia newtoniana desde a relatividade, incidiu diretamente e com gradações diversas nas humanidades. Afirmaríamos que essa seria apenas uma causa dentre outras que explicam o desenvolvimento das ciências do homem tal como transcorreu no século XX; mas que esse movimento deve inserir-se nas transformações mais latas da humanidade - sobretudo após a Segunda Grande Guerra. Cairíamos então, inevitavelmente, no novo éter redentor que a tudo esclarece: a condição pós-moderna. Não seguirei por essa trilha labiríntica, que parece sempre conduzir a si mesma.

    Disse afirmaríamos inculcando propositalmente na assertiva uma das posições em que ainda, por mais que se insista no contrário, polariza-se o pensamento ocidental, ancestralmente maniqueísta. Falei em causa que explica o desenvolvimento... como poderia ter aludido a dados por meio dos quais se interpreta uma manifestação do espírito humano ou experiência vivida - e aí tornar-se-ia patente o polo cognitivo oposto, restando apenas ponderar que todas as demais posturas teóricas quanto à epistemologia em geral, e da história em particular, oscila em grau dentro desses extremos. Assim, toda uma geração aprendeu em História e verdade, de Adam Schaff (1983). Todo o problema do conhecimento é ainda esse: se existe uma materialidade, ordenada ou não, e em qualquer caso exterior a um eu que busco compreendê-la em sua lógica interna -, real ou criada por meus instrumentos cognitivos. Conforme a crença e a miopia de cada um, essa lógica material é mais ou menos apreensível, mais ou menos redutível a conceitos, ou meramente um arbítrio da criação mental. Voltarei a este ponto.

    2. Concordo com Roger Chartier (1991, p. 175) para quem toda reflexão metodológica enraíza-se, com efeito, numa prática histórica particular, num espaço de trabalho específico. A especulação teórica não deve ser jamais abandonada, nem constituída como um fim em si mesmo. Assim, foi providencial ter caído em minhas mãos uma documentação curiosíssima, em torno da qual testarei umas poucas possibilidades, dentro das múltiplas práticas interdisciplinares operadas pela historiografia atual.

    O acaso remete, por um lado, a uma concepção de história a que Isaiah Berlin (1959) convencionou chamar naturalista: aquela que remonta ao racionalismo cartesiano, passando pelo jusnaturalismo, pelo iluminismo do XVIII, pelas teorias evolucionistas do século XIX (Marx, Comte, Mills) e XX (Toynbee e Spengler), ainda que ressalvadas todas as discrepâncias entre essas matrizes. Mas o que as aproximaria é justamente a crença numa linearidade evolucional, segundo cada qual a humanidade partiu de um ponto zero e caminha inexoravelmente para outro (do estado de natureza para o estado civil nos jusnaturalistas; para a superação da sociedade de classes em Marx; para o estágio positivo em Comte, ou para o cataclismo nas versões niilistas de Spengler ou Toynbee). Nessa marcha, situa-se outra aporia ainda não superada: a do voluntarismo versus determinismo. Também aqui, as diferentes posições definem-se por gradações sobre uma mesma matéria: o homem tem maior ou menor capacidade de fazer seu destino. As posições extremistas deterministas, que se encontram tanto em idealistas (Hegel) como em materialistas (ortodoxia marxista), postulam a impotência dos homens diante de forças subliminares, sejam elas divinas providências, astúcias da razão, mãos invisíveis ou dialéticas entre bases e superestruturas. Em qualquer caso, o acaso consiste na explicação lógica para o não previsto, ainda que esse imprevisto retire o curso preestabelecido da história de seu curso. Não é desse acaso que trato aqui.

    3. A prática de historiador vem me ensinando que o acaso existe antes da busca da explicação, ou mesmo antes da feitura de um recorte temático, muitas vezes presidindo a essa operação. Mesmo os historiadores racionalistas mais sérios já mostraram como o nosso trabalho implica seleção, preferência, recorte, manipulação. (CARDOSO, 1989). Não é outra a problemática de Engagement et distanciation, na qual Norbert Elias demonstra como não há possibilidade de "distanciation" nas Ciências Sociais, uma vez que os recortes e interesses de uns e outros organizam não somente o peso das posições ideológicas declaradas, mas ainda as práticas científicas as mais neutras e as decisões as mais técnicas, as quais buscam creditar aos enunciados do saber um caráter de absoluta objetividade. Assim, a escolha e a definição dos objetos, seu modo de tratamento,

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