Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Entrevistas de Nildo Viana: Reflexões críticas sobre o cotidiano, a cultura e a sociedade
Entrevistas de Nildo Viana: Reflexões críticas sobre o cotidiano, a cultura e a sociedade
Entrevistas de Nildo Viana: Reflexões críticas sobre o cotidiano, a cultura e a sociedade
E-book363 páginas4 horas

Entrevistas de Nildo Viana: Reflexões críticas sobre o cotidiano, a cultura e a sociedade

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Nildo Viana é um filósofo e sociólogo de extensa produção intelectual, contando com mais de 40 livros publicados, bem como centenas de artigos e diversos capítulos de livros e prefácios e dezenas de obras organizadas. A presente obra reúne um conjunto de entrevistas concedidas pelo autor em diversas oportunidades, abordando variados temas. Questões do cotidiano (tais como redes sociais, modo de vestir), culturais (arte, cinema, sociologia, super-heróis), e políticas (organizações, sindicatos, revolução, crises) são tratadas de uma forma simples e, ao mesmo tempo, profunda, sem cair na superficialidade. Assim, o presente livro é um rico material para se pensar criticamente, pois é a perspectiva que acompanha o conjunto da produção intelectual de Nildo Viana, questões cotidianas, políticas e culturais. Maria Angélica Peixoto, além de organizar a obra e apresentá-la, contribui também com a realização de uma entrevista inédita sobre o processo da entrevista, o que gera um esclarecimento geral sobre o livro e essa forma de captar informações para pesquisas, reportagens, entre outros objetivos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de out. de 2020
ISBN9786586705218
Entrevistas de Nildo Viana: Reflexões críticas sobre o cotidiano, a cultura e a sociedade

Leia mais títulos de Nildo Viana

Autores relacionados

Relacionado a Entrevistas de Nildo Viana

Títulos nesta série (6)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Ciências Sociais para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Entrevistas de Nildo Viana

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Entrevistas de Nildo Viana - Nildo Viana

    PESSOAIS

    APRESENTAÇÃO

    Maria Angélica Peixoto

    A presente obra reúne entrevistas de Nildo Viana, realizadas durante longo período. Trata-se de um conjunto de entrevistas que discorrem sob perspectiva crítica temáticas variadas. Proponho, nessa breve apresentação, fazer uma digressão sobre o autor e sua produção intelectual.

    Nildo Viana iniciou seus estudos ao cursar Ciências Sociais, na Universidade Federal de Goiás, tendo, posteriormente, cursado especialização e mestrado em Filosofia e Mestrado e Doutorado em Sociologia. Assim, além de leitor de obras de Ciências Sociais – clássicos da sociologia, as escolas da antropologia, tendências da ciência política, entre outras –, ele , ainda quando estudante, aprofundou leituras sobre Karl Marx, Erich Fromm, Rosa Luxemburgo. Não parou aí... e logo a seguir, iniciou leituras sobre Lênin, Trotsky, Lukács, Gramsci, até chegar aos seus autores preferidos, os comunistas de conselhos – Karl Korsch, Anton Pannekoek, Paul Mattick, Otto Rühle, entre outros. Posto isto, sua formação inicial ocorria através de leituras obrigatórias do curso e leituras por iniciativa própria – manifestando um excepcional autodidatismo – especialmente nas áreas do marxismo, psicanálise, anarquismo e outros temas em menor quantidade e aprofundamento. Por um lado, havia o estudante e os estudos, por outro, o militante político do movimento estudantil e de embates políticos em geral. Nesse sentido, é possível separar sua formação em uma que significava adentrar no mundo acadêmico e científico e outra no mundo político, embora relacionasse ambas as coisas e suas leituras extra-acadêmicas que dissertava muito além do que geralmente se entende por política, adentrando em áreas como psicanálise, filosofia, entre outras, como destacado acima. Encerrou o curso com um trabalho sobre Os Mitos no Mundo Moderno, uma temática mais antropológica, no entanto, nesse trabalho, ainda que inicial, ficou evidenciado suas possibilidades intelectuais e seu compromisso com a verdade.

    Posteriormente, ao estudar filosofia, aprofundou leituras nessa área, com destaque para, além de Marx, Voltaire, Rousseau, Foucault, Sartre, entre outros. Na especialização em Filosofia desenvolveu trabalho sobre A Dialética do Projeto e do Inconsciente - Freud e Sartre à Luz da Teoria Marxista e no mestrado em filosofia desenvolveu dissertação sobre Marxismo e Proletariado: Uma Definição Ontológica. Também fez duas pós-graduações em Sociologia, um mestrado e um doutorado, ambos na UnB – Universidade de Brasília. No mestrado em Sociologia defendeu a dissertação sobre Inspeção do Trabalho e Trabalho Precoce e, no doutorado defendeu a tese As Representações dos Profissionais que Atuam com Medidas Socioeducativas sobre a Violência Juvenil. Desses trabalhos acadêmicos, cuja abordagem demonstra forte compromisso com a libertação humana, derivaram vários artigos e livros.

    No plano da militância política, atuou como militante de um coletivo denominado, em sua última reformulação de nome Movaut – Movimento Autogestionário. No interior deste, além da ação política, o envolvimento teórico com vários autores, a começar por Marx, referência sempre presente, passando por Karl Korsch e uma grande quantidade de outros pensadores políticos e autores marxistas ou próximos, até as concepções mais hodiernas, que ele denominou marxismo autogestionário.

    As suas pesquisas, como professor-pesquisador, atuando em algumas universidades, especialmente na Universidade Estadual de Goiás (1999-2008) e na Universidade Federal de Goiás (2009 até hoje), significam, em parte, uma retomada das leituras e pesquisas anteriores, e, um desenvolvimento que abarcava novos temas e conteúdos. No âmbito da produção intelectual independente, publicou obras sobre histórias em quadrinhos e na UFG desenvolveu pesquisa sobre o Universo Ficcional de Ferdinando, da qual resultou um livro.

    Assim, Nildo Viana se tornou um pesquisador e autor de diversos livros, pronunciando sobre temas diversificados, e por que não dizer polêmicos... Como ele mesmo coloca, se opondo ao que Marx denominou idiotismo da especialização, tal e qual às pseudossoluções da interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, sua produção é adisciplinar, embora, por razões profissionais, focalize mais a sociologia e ciências sociais, e, por razões políticas, o marxismo. Assim, alguns temas são mais desenvolvidos e trabalhados por ele, elencados logo a seguir: marxismo – englobando não apenas concepções marxistas e pensamento de Marx, mas também questões políticas –, sociologia – abarcando temas sociológicos, como o pensamento clássico, e questões sociológicas, como violência, classes sociais, burocracia, trabalho... –, psicanálise, arte – englobando literatura, cinema, histórias em quadrinhos, música –, entre outras.

    Assim, Nildo Viana produziu uma extensa obra, contando com mais de 50 livros publicados. Nesse conjunto de obras, pode-se destacar: O Capitalismo na Era da Acumulação Integral; Universo Psíquico e Reprodução do Capital, Manifesto Autogestionário; A Pesquisa em Representações Cotidianas; O Modo de Pensar Burguês; A Mercantilização das Relações Sociais; A Teoria das Classes Sociais em Karl Marx; Os Movimentos Sociais; Karl Marx: A Crítica Desapiedada do Existente.

    Esse é o autor/pesquisador que foi entrevistado por programas televisivos, radiofônicos, acadêmicos, entre outros meios de comunicação, e aqui apresento grande parte de suas entrevistas¹. Algumas se perderam no enorme arquivo do autor, mas uma grande parte se encontra aqui reunida. A pesquisa nos arquivos foi um verdadeiro exercício de garimpagem, e destaco a disciplinada colaboração por parte do autor.

    Desse modo, a sua produção explica alguns dos temas das entrevistas, pois seus livros publicados, além de artigos e outras formas de acesso e determinações – indicações, vínculos profissionais, por exemplo – de maneira que, geraram uma expressiva demanda por suas respostas para questões variadas. No entanto, alguns temas aparecem mais, o que fica evidenciado no conjunto de entrevistas reunidas na presente obra. Um tema é a sociologia e as ciências sociais. Uma das temáticas recorrentes é o mundo dos super-heróis, o que está ligado com suas obras a esse respeito². Além de temas regulares, tais como: a violência, o marxismo, os movimentos sociais, a cotidianidade e questões conjunturais.

    Excetuando essas entrevistas reunidas aqui, e como introdução a todas elas, efetivei uma entrevista especificamente sobre esse processo, ou seja, sobre a posição do entrevistador e sua percepção sobre esse fenômeno. Depois de algumas conversas e levantamento de questões importantes a serem discutidas nesse sentido, levantei perguntas que auxiliaram na compreensão do processo social de produção das entrevistas e a posição do entrevistado. O resultado é uma das melhores entrevistas da coletânea, da perspectiva teórica, que serve tanto para sociólogos e especialistas das ciências humanas, como também para todos os interessados em superar a percepção imanentista da vida cotidiana em geral e das entrevistas, em particular.

    Não cabe aqui fazer uma reflexão sobre o conjunto das entrevistas. Elas são bastante esclarecedoras sobre os temas em questão e a reflexão inicial sobre entrevistas em geral apontam para uma compreensão mais ampla do fenômeno da entrevista. Ela também contribuiu para compreender o entrevistado e sua coerência intelectual e política, mesmo em condições muitas vezes adversas e tendo que fazer algumas concessões devido ao contexto.

    Por último, resta esclarecer que optei por ordenar as entrevistas por temáticas ao invés da ordem cronológica, ou seja, pelas datas de realização e/ou publicação. Iniciei com a entrevista sobre entrevistas, como introdução e abertura da obra, e depois efetivei a seguinte divisão: 1º) temática da sociologia e da inserção e relação do autor com o mundo sociológico e questões de trajetória intelectual 2º) questões gerais (dialética); 3º) questões cotidianas (drogas, consumismo feminino, modo de vestir, redes sociais, Netflix, bancos digitais); 4º) super-heróis e histórias em quadrinhos; 5º) arte; 6º) questões urbanas e violência; 7º) marxismo; 8º) movimentos sociais e organizações da sociedade civil; 9º) lutas sociais e revolução; 10º) crise e situação brasileira.

    O leitor terá, diante de si, uma amostra de um genuíno pensamento teórico sobre a cotidianidade, a sociedade e seus dilemas, encontrará a cada leitura diversas entrevistas que expressam uma concepção desmistificadora, que elucida elementos metodológicos, teóricos, críticos, importantes no processo de compreensão da sociedade em que vivemos, e tudo isso recheado de uma abordagem crítica e comprometida com a transformação social. A leitura dessas entrevistas é um poderoso terreno que auxilia na compreensão e também na reflexão e autorreflexão sobre a realidade social e a necessidade de transformá-la, e por isso é de fundamental importância.


    1 Uma parte se perdeu, por não ser possível arquivar ou por ter perdido os arquivos. Algumas foram encontradas, mas não havia maiores informações e por isso houve a tentativa de resgatar a origem das mesmas, o que nem sempre foi possível, pois grande parte não estava publicada ou disponível (algumas ficaram disponíveis, mas depois desapareceram do mundo virtual).

    2 VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 2005; VIANA, Nildo. Quadrinhos e Crítica Social. O Universo Ficcional de Ferdinando. Col. Pensamento Brasileiro. Rio de Janeiro: Azougue, 2012; REBLIN, Iuri; VIANA, Nildo (orgs.). Super-Heróis, Cultura e Sociedade (1ª edição: São Paulo: Ideias e Letras, 2011; 2ª edição: Goiânia: Edições Redelp, 2020), além de diversos artigos publicados em Anais de Congressos e revistas acadêmicas.

    A ENTREVISTA COMO FENÔMENO SOCIAL

    Entrevista concedida à Maria Angélica Peixoto, especialmente para a publicação do presente livro e com o objetivo de refletir sobre as entrevistas com experts e contribuir com a compreensão das demais entrevistas.

    Qual é o tipo de entrevista no qual o entrevistado é considerado um especialista no assunto? É semelhante as entrevistas realizadas nas pesquisas sociais?

    As entrevistas como técnicas de pesquisa são diferentes das entrevistas com experts, bem como de outras formas de entrevista. A diferença, nesse caso, é derivada dos objetivos distintos e da forma como a entrevista é realizada. A entrevista voltada para a pesquisa social objetiva obter informações sobre os entrevistados (suas representações, memória, concepções, história de vida, etc.) ou sobre aspectos da realidade (e, nesse caso, os entrevistados são informantes). A forma da entrevista é derivada do objetivo. No caso de entrevista na qual o entrevistador é um informante, ele será indagado sobre os elementos que o entrevistador quer como informação e as perguntas vão girar em torno do tema e objetivo da pesquisa. No caso da entrevista sobre representações, memória, etc., o que se objetiva é descobrir o que os entrevistados pensam, como desenvolveram suas ideias ou representações, ou o que recorda do passado, e as questões estarão voltadas para este objetivo. A entrevista com experts pode ser voltada para receber informações e explicações do entrevistado sobre algum aspecto da realidade na qual ele é especialista ou perito ou pode ser voltada para discutir a obra, a biografia ou a produção intelectual do expert entrevistado. No primeiro caso temos a entrevista temática e no segundo a entrevista biográfica (seja a biografia intelectual ou a história de vida do indivíduo entrevistado). A diferença entre a entrevista temática e a entrevista biográfica é que nesse último caso o entrevistado, que é considerado um expert, é visto como um informante confiável, pois é especialista e perito no assunto (sendo isso real ou não), e o que ele diz não é questionável e nem precisa de explicação, já que seria, supostamente, autoexplicativo¹. As entrevistas são relações sociais e as entrevistas com experts são caracterizadas pelo fato de que o entrevistado assume uma posição de autoridade e daquele que supostamente detém um saber que o entrevistador não possui ou não pretende manifestá-lo, pois quer ouvir o expert manifestar suas concepções². Assim, há uma espécie de distinção, pois nas entrevistas como técnicas de pesquisa social o entrevistado aparece como tendencioso (são suas representações, suas memórias, suas informações), ou como algo subjetivo, enquanto que nas entrevistas com experts o entrevistado aparece como expressão do saber, ou como algo objetivo. Sem dúvida, isso é problemático, pois o expert é tão tendencioso quanto qualquer outro indivíduo ou ser humano (com as devidas variações de grau dependendo do tema/especialidade em questão, bem como dos indivíduos concretos que cedem entrevistas). Ele também vai, da mesma forma, manifestar suas crenças, valores, etc. O que difere um do outro, na verdade, é que um realiza um discurso simples e sem maior embasamento e o outro, supostamente (pois isso depende de cada caso concreto, sendo que muitos intelectuais não possuem uma competência real, mas tão somente uma competência formal expressa em títulos e diplomas), realiza um discurso complexo e fundamentado. Assim, é preciso ter em mente quem é o entrevistado para ver se essa distinção se materializa realmente. Em síntese, a entrevista com um expert assume características próprias, pois é um discurso visto como qualificado, o que pode ser verdadeiro ou não. O entrevistador, nesse caso, quer ouvir e entender e não, como no caso das entrevistas temáticas, ouvir e analisar, pois o entrevistado é uma autoridade no assunto e seu discurso, além de competente, é supostamente claro e autoexplicativo. Se isso se concretiza realmente ou não, depende de quem é o entrevistado.

    Uma entrevista tem algum significado mais amplo, seja político ou sociológico?

    Sim, sem dúvida. Uma entrevista é uma relação social e por isso tem um caráter político e social. Dependendo da forma como a entrevista é realizada, o entrevistado tem mais liberdade para expressar suas concepções políticas e sociais. Isso ocorre principalmente quando o entrevistador apenas faz perguntas e não busca fazer da pergunta uma camisa de força para o entrevistado. Porém, isso nem sempre ocorre. Me recordo de algumas entrevistas que concedi no qual a tendenciosidade nas perguntas se manifestou amplamente. Uma vez, em uma entrevista numa emissora de rádio, no bojo das manifestações de junho de 2013, a entrevistadora perguntou sobre o que eu achava dos vândalos. Eu respondi dizendo que os políticos profissionais realizam corrupção e assim depredam o patrimônio público de forma muito mais grave e intensa, prejudicando muito mais pessoas, e ninguém os chamavam de vândalos. Aqui temos um caráter político, que é a posição política da entrevistadora e a posição política do entrevistado, sendo diferentes (talvez opostas, pelo menos nesse item específico). Uma outra vez, em outra emissora de rádio, os apresentadores fizeram uma introdução de uns cinco minutos sobre o tema da entrevista (representatividade cultural, embora a informação repassada não tenha esclarecido isso, pois eu pensava que seria sobre representatividade política, ou seja, a democracia representativa) e se posicionando a favor da representatividade cultural, identidade, etc., e o meu discurso foi antagônico, sendo que depois um dos entrevistadores ainda buscou dizer que a identidade tinha importância, e a resposta foi novamente negativa e antagônica. Noutra ocasião, numa emissora de televisão, ao discutir direitos trabalhistas, num intervalo no qual se passava um comercial, a responsável pelo programa me indagou se eu não tinha nada de bom para falar dos empresários. Eu, com um sorriso irônico, disse simplesmente que não tenho nada de bom para falar dos empresários. Claro que muitas vezes esses processos são derivados de problemas de comunicação ou promovido pela incompreensão dos entrevistadores, mas, muitas vezes, expressam diferenças de concepção. É claro que nesses casos, que são entrevistas ao vivo, o entrevistado tem maior possibilidade de expressar o que realmente pensa, apesar dos limites do tempo (no caso de entrevistas para rádio e TV, embora também para jornais impressos, mas se manifestando como limite de espaço), pressão dos entrevistadores, etc., bem como interesse em ser ou não entrevistado novamente (o que pode levar a certas concessões e moderação, pois discursos mais radicais tendem a desagradar os responsáveis pelos meios de comunicação, bem como discursos complexos, que tendem a diminuir a audiência). A situação é muito pior quando a entrevista é fornecida e depois editada e, nesses casos, pode e muitas vezes ocorre a deformação das respostas do entrevistado, seja por incompreensão, seja por diferenças políticas, ou, ainda, pelas duas coisas simultaneamente. Houve um caso em que concedi uma entrevista para um jornal diário sobre violência juvenil por telefone e após explicar as múltiplas determinações da violência, o entrevistador tentou simplificar reduzindo a questão da violência juvenil a uma única causa. Ele disse: então podemos dizer que a causa é... e eu tive que esclarecer que não se poderia explicar apenas por esta causa, pois a questão é mais complexa. Aqui temos outra forma de relação social, pois o jornal visa atingir o público e considera que essa não compreende questões mais complexas e por isso precisa de explicações simples. É o público que compra o jornal e sua quantidade aponta para a existência e o valor dos anúncios. Por isso as manchetes e a ideia de tentar simplificar as considerações do entrevistado. Existem casos em que os entrevistadores ou a publicação já tem uma ideia preconcebida e quer que o expert a confirme. Ou seja, quer um discurso de uma autoridade para repassar as suas concepções sobre o assunto e assim ganhar um caráter de cientificidade, no caso do expert ser cientista. Esse foi o caso de uma entrevista que concedi para a Revista Galileu. Um ano antes me entrevistaram para falar do Homem-Aranha³ e correu tudo bem. No ano seguinte, me entrevistaram para tratar do super-heróis em geral e suas origens. A ideia preconcebida era a de que os super-heróis surgiram a partir da mitologia, especialmente a grega. As perguntas já apontavam para isso, mas minha resposta foi negativa. Em uma das perguntas, por exemplo, se afirmava que o poder de voar do Superman era inspirado em Hermes e na mitologia grega. Eu disse que não e citei uma entrevista dos criadores do Superman no qual disseram que o poder de voar foi inspirado no movimento das nuvens. Da mesma forma, também citei que a grande fonte de inspiração dos criadores do Superman era a ficção científica, inclusive o filme de Fritz Lang, Metrópolis, que é de onde tiraram o nome da cidade fictícia na qual mora tal personagem. Da mesma forma, mostrei com informações e argumentos fundamentados de que não havia inspiração na mitologia grega, a não ser em certos casos específicos (tal como no caso de Shazam – Capitão Marvel – e personagens específicos da Marvel – Thor e todos de Asgard, bem como Hércules e outros – e casos específicos da DC Comics). A entrevista de várias páginas apareceu em apenas um parágrafo da reportagem de duas ou três páginas da revista e como algo que não merecia credibilidade (tipo o professor X pensa diferente), enquanto outros entrevistados, que disseram, sem nenhuma fundamentação, o que a entrevistadora queria ouvir, ganharam todo o espaço. Esse é um tipo de entrevista com expert que é a confirmativa, na qual o que se quer é que uma autoridade confirme as representações cotidianas e ideias preconcebidas dos entrevistadores. Assim, se o entrevistado quer manter sua coerência, corre o risco de ser preterido em favor daqueles que querem apenas aparecer socialmente. É por isso que o entrevistado deve entender as relações sociais envolvidas numa entrevista e ser atento, pois, caso contrário, pode ser envolvido pelo entrevistador e dizer algo que não pensa⁴. Um outro elemento social das entrevistas são os temas das mesmas. Quando elas são entrevistas temáticas e realizadas pelos meios oligopolistas de comunicação, os temas são os da moda, os acontecimentos em evidência, questões polêmicas, etc. Quando a entrevista temática é realizada por pesquisadores, isso também aparece indiretamente, já que esses assuntos são tematizados nas pesquisas sociais. No caso das entrevistas biográficas, quando são realizadas pelos meios oligopolistas de comunicação, o foco é geralmente nas obras que tratam desses mesmos temas, embora possa, dependendo de quem é o entrevistado, focar mais na dinâmica de sua produção intelectual.

    A sua experiência com entrevistas trouxe quais lições? O que essa experiência contribui para compreender as entrevistas ou gerar um preparo para as entrevistas posteriores?

    Há uma aprendizagem com a experiência quando ela é refletida. A experiência pela experiência pode gerar uma aprendizagem limitada, mas a reflexão sobre ela permite avançar no sentido de compreensão e preparação. No caso, a minha experiência proporcionou uma reflexão sobre o processo da entrevista biográfica que embasou as minhas respostas anteriores e outros aspectos, como entender a entrevista como fenômeno social. A entrevista, tal como já coloquei num artigo sobre entrevistas em geral⁵, é uma relação social e por isso é preciso conhecer o entrevistador e o entrevistado e a relação instituída entre ambos. Quando escrevi tal artigo, que era parte de minha dissertação de mestrado e que refletia sobre entrevista temática, já havia concedido algumas entrevistas para jornais e outros veículos, mas a experiencia posterior com entrevista biográfica gerou uma percepção mais ampla sobre a sua complexidade. Entender a entrevista biográfica pressupõe entender quem é o entrevistador, quem é o entrevistado e o contexto da entrevista. O entrevistador, se for outro expert, pode promover determinado tipo de entrevista, possivelmente mais rica, já que as questões serão mais relevantes e profundas. Se for um leigo, poderá ser mais restrita ou gerar a necessidade de retificações. Isso, no entanto, depende do entrevistado. Se o entrevistado tiver apenas competência formal, então a entrevista poderá não deslanchar, no primeiro caso, ou reproduzir os equívocos do entrevistador, no segundo caso. Isso também depende do contexto. Se for para determinada publicação, então a entrevista pode assumir a forma de um debate. É o caso de uma entrevista que concedi para um jornal anarquista, cujas perguntas, embora não fossem exatamente de um expert, mas um militante, já mostravam um posicionamento e uma intenção de criticar o entrevistado por parte do entrevistador⁶. Outra lição é muitas vezes ter que redirecionar ou fazer retificações nos termos usados pelos entrevistadores. Isso pode ocorrer no caso de experts, mas é mais comum quando os entrevistadores são leigos ou iniciantes nas ciências humanas ou marxismo. Assim, o entrevistador pode ter uma determinada ideia do significado de um termo, mas pode ser equivocado ou distinto da que o entrevistado tem. Assim, em certas entrevistas, no qual os entrevistadores usam minorias⁷ ou alienação e o primeiro termo é considerado equivocado e o segundo compreendido num sentido distinto, então é necessário a retificação. Em outros casos, a entrevista pode começar perguntando justamente o que o entrevistado entende pelo termo principal a ser discutido (qualidade de vida, comunidade, etc.), o que evita esse tipo de problema. Ainda a esse respeito, muitas vezes o entrevistado é constrangido a reproduzir termos que são do entrevistador, pois no reconhecimento do contexto pode perceber que certas palavras podem dificultar a compreensão ou entra em contradição com o título da entrevista ou ideia inicial da mesma. Assim, se o entrevistador trata de indústria cultural e esse é o termo hegemônico e mais popular, fazendo parte do contexto cultural, então o entrevistado, muitas vezes, acaba reproduzindo tal palavra apesar da discordância terminológica. O entrevistado deve estar atento para o fato de que o provável público (leitor, telespectador, ouvinte) é parte do contexto e de que nada adianta expor algo verdadeiro e profundo, se não for compreendido por ele. Há também o problema da revisão que o entrevistador ou seu veículo de comunicação pode fazer na entrevista e que, ao desconhecer conceitos, termos, preferências linguísticas, alteram as palavras usadas pelo entrevistado⁸. Entender quem é o entrevistado é fundamental, especialmente para o entrevistador e qualquer um que queira analisar determinada entrevista. Para o entrevistador, saber quem é o entrevistado ajuda a elaborar as questões, evitar equívocos, saber das tendências e assim pode explorar e aprofundar mais a discussão. Para o analista, isso é fundamental, pois ajuda a compreender as respostas e a entrevista como um todo (e isso pressupõe conhecer também o entrevistador). Sem dúvida, apenas as perguntas e as respostas já apontam para determinada percepção de quem é entrevistador e o entrevistado, respectivamente, mas informações mais aprofundadas facilitam isso. Para o entrevistado, ele já se conhece, o que deve levar em consideração é o que pode dizer ou não, e aí entra autocensura, interesses, objetivos, etc. Existem entrevistados superficiais, que só querem aparecer, e por isso podem dar entrevistas ratificadoras, enquanto que outros buscam ser autênticos, mesmo em temas polêmicos e com certa autocensura ou concessões, tendem a dar entrevistas retificadoras. Claro que isso depende dos dois indivíduos em questão, pois pode haver convergência perspectival entre entrevistador e entrevistado, ou divergência perspectival. Quando há convergência perspectival, a entrevista tende a ser ratificadora do que pretendia o entrevistador. Quando há divergência perspectival, a entrevista tende a ser retificadora. Mas isso só ocorre quando o entrevistador explicita suas posições, pois há casos em que isso fica como algo residual e não há, nesse caso, nem retificação, nem ratificação. O terceiro elemento é o contexto. O contexto é fundamental para o entrevistado saber como lidar com a situação. Se o entrevistador é um iniciante, um graduando, então é bem provável que fará as questões a partir de sua formação e conjunto de influências, incluindo os modismos, as concepções hegemônicas em sua área, a pressão social, etc. Isso, obviamente, vai variar dependendo quem é esse indivíduo concreto (maior ou menor formação, maior ou menor autonomia intelectual, etc.), e por isso é uma tendência. O contexto pode ser, portanto, uma situação social e histórica, uma instituição, a situação do entrevistador e a do entrevistado, etc. O entrevistado deve saber desse contexto para entender melhor as questões e ter uma posição adequada (condescendência⁹ em certos casos, explicações mais profundas em outros, etc.). Se é uma entrevista vinculada a uma monografia ou tese de doutorado, então estará voltada para a temática da pesquisa do entrevistador e visa esclarecer elementos que ajudem este em sua pesquisa. Se é ligada a uma publicação (revista acadêmica, etc.), então estará voltado para os temas e objetivos da publicação. Para o analista, saber de certos aspectos do contexto da entrevista é mais difícil, como, por exemplo, a pressa do entrevistado em responder ou seu envolvimento com diversas atividades, o que lhe sobra pouco tempo para reflexões mais profundas e cuidado formal mais aprimorado. As entrevistas para emissoras de rádio e TV já limitam mais e quando não é ao vivo ou um programa especial, apresentam apenas fragmentos de falas que devem ser curtas e ainda são selecionadas. Em síntese, são muitas situações e a complexidade é enorme, tendo variações e da experiência refletida sobre isso há um processo de aprendizagem importante que serve para as experiências posteriores.

    Para finalizar, haveria alguma entrevista que concedeu que consideraria especial ou que se arrependeu de ter concedido?

    A princípio, as entrevistas são geralmente interessantes. O tema é o elemento fundamental e, por conseguinte, os temas que temos mais domínio ou gostamos mais torna a entrevista mais prazerosa. Da mesma forma, temas que dominamos menos ou – o que é mais problemático – cujo tema não gostamos ou não temos interesse, a torna menos prazerosa. Isso é uma questão de grau. Claro que as entrevistas para jornais e revistas que posteriormente vão ser editadas, com trechos, afirmações selecionadas (e muitas vezes modificadas, desde termos até as afirmações no geral), pode gerar certa insatisfação a partir do que é efetivamente publicado. Mas, retirando casos mais exagerados, isso é aceitável, pois depende da compreensão do entrevistador e outros aspectos. Isso é mais grave quando entrevistadores sem ética visam usar a entrevista para desqualificar

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1