O brasileiro: A formação da identidade nacional e a questão racial
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O brasileiro - Iara Andrade Senra
p.39.
CAPÍTULO 1: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA NO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX
O povo brasileiro seria ainda um por vir a ser, sempre colocado no futuro, um projeto.
Darcy Ribeiro
O que nos une? O que cria em nós um sentimento de pertencimento? O que nos faz brasileiros? Por que e para que fazer parte de uma nação? O que nos leva a matar ou morrer por nossa pátria? Essas são indagações com que vários autores que se propuseram a estudar a identidade nacional se deparam e discutem até hoje.
Serão analisadas as propostas de identidades formuladas por autores com inúmeras concepções no que tange às conceituações, aos critérios de construção da nacionalidade, aos interesses, visões e conflitos que permearam as obras de diversos intelectuais que discutiram e pensaram a identidade nacional.
Apesar do significado do termo identidade nacional apresentar divergências entre diversos autores, tanto Benedict Anderson quanto Maria Stella Martins Bresciani concordam com as concepções subjetivas do termo. Para Bresciani, a identidade nacional seria lugares comuns, ou seja, um fundo compartilhado de idéias, noções teorias, crenças e preconceitos, permitindo a troca de palavras, argumentos e opiniões sobre uma comunidade política efetiva
.¹ Já para Benedict Anderson, as identidades seriam discursos construídos, imaginados. Dizer que a identidade nacional é uma construção, uma narrativa inventada, não quer dizer que ela seja irreal. Segundo José Carlos Reis, ela é uma realidade tão profunda que envolve as mais viscerais paixões de um indivíduo
.² Foi essa fraternidade construída que, segundo Anderson, tornou possível nestes dois séculos, tantos milhões de pessoas tenham-se dado não tanto a matar, mas, sobretudo a morrer por criações imaginárias limitadas
.³
Admitindo a sua importância, a sua utilização com interesses ambíguos e a complexidade em se discutir identidade nacional, autores como Maria Stella Martins Bresciani, José Carlos Reis e Renato Ortiz se propuseram a desenvolver pesquisas sobre os diversos modelos de identidades nacionais criadas no Brasil, identificando os interesses contidos na formulação de cada modelo de identidade, assim como algumas consequências que tais modelos poderiam acarretar.
Segundo José Carlos Reis⁴, é preciso que o povo se conheça para que se veja como capaz de realizações grandiosas. Por isso, para o autor, a construção da identidade nacional embasada na figura de um povo vitorioso seria de extrema importância para o futuro da nação.
Os grupos que conseguem se ver no espelho da cultura, que conseguem construir a própria figura, em uma linguagem própria, identificam-se isto é, criticam-se, reconhecem o próprio desejo e tornam-se competentes até na ação econômico-social. [...] aquele que manipula os sinais de uma identidade vencedora para obter vantagens, manipulará a identidade daquele que o reconhece e se deixa manipular.⁵
Para se entender tais conflitos e interesses, gerados pela questão da identidade nacional brasileira, precisaremos antes analisar o conceito de representações, visto que a identidade nacional, a nosso ver, é uma representação, sendo, portanto, construída por grupos que pretendem impor seus interesses. Segundo Chartier, as representações não são discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas
. ⁶
As representações são variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão sempre presentes.⁷
Uma das características de identidade nacional analisada, aqui como representação, trata dos interesses presentes nos modelos de identidades propostos. No Brasil, o Estado foi um dos grandes formuladores da identidade, e, para isso, cooptou vários intelectuais para desenvolverem propostas que unissem o povo, tendo como base, por conseguinte, os interesses da elite governamental.
Outra característica da representação é seu nível de abrangência: ao contrário do folclore que se apresenta vivo em determinada comunidade, com costumes e hábitos restritos, a identidade nacional, sendo uma representação, tende a ser universalista, expandindo-se por toda a população, para que seja legitimada pelo povo em geral. Se as propostas de identidade não forem assimiladas pela população, não exercerá influência sobre os seus sentimentos e atos, invalida-se, portanto, uma das funções da representação, que é a legitimação de uma ordem pelo consentimento e não pela violência⁸.
O termo identidade nacional tem gerado várias divergências entre os estudiosos da área. Alguns advogarão a sua objetividade, ou seja, definirão, identidade nacional como um elemento imutável, integrador; outros, pelo viés subjetivo, a destacarão como algo construído, transformado, podendo um mesmo indivíduo se sentir parte de diversas identidades e, a qualquer momento, se desvincular de uma delas– é por esta concepção subjetiva de identidade, que podemos situá-la como uma representação.
A concepção objetiva da identidade mostra-se demasiadamente fechada, primeiro porque vários foram os modelos de identidades presentes em um mesmo país, o que demonstra transformação de ideias e não imutabilidade, segundo porque não existe nada que nos torne iguais. Por isso mesmo, tal homogeneização tem que ser construída. Estes são alguns dos problemas que encontramos ao conceituar identidade nacional de modo restrito: a mesma, seria, então, uma representação, um discurso construído.⁹
O fato de a identidade nacional ser uma representação não quer dizer que ela seja irreal. Segundo Sandra Jatahy Pesavento, representações são:
[...] matizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva [...].Tal pressuposto implica eliminar do campo de análise a tradicional clivagem entre o real e o não-real, uma vez que a representação tem a capacidade de substituir a realidade que representa, construindo um mundo paralelo de sinais no qual as pessoas vivem.¹⁰
Benedict Anderson, dissertando sobre o caráter real ou irreal das comunidades imaginadas, afirma: As comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas
.¹¹ Portanto, em certos lugares a identidade nacional poderá ter como base a língua, o passado; em outros, a raça
, os hábitos ou o temperamento do povo. Ou seja, cada país, grupo ou classe imaginou uma proposta de identidade que se transformou no tempo e no espaço.
Já Renato Ortiz, analisando as várias divergências entre os autores causadas pela ideia da falsidade ou autenticidade da identidade nacional, afirma:
[...] a procura de uma identidade brasileira
ou de uma memória
brasileira que seja sua essência verdadeira é um falso problema. [...] a pergunta fundamental seria: quem é o artífice desta identidade e desta memória que se querem nacionais? A que grupos sociais ela se vinculam e a que interesses elas servem?¹²
Para Ortiz, o termo identidade nacional, apesar de gerar várias divergências entre estudiosos,¹³ oferece um caminho para entender aquilo que o autor afirmou estar em primeiro plano: os agentes que constroem a interpretações sobre a realidade. São eles os intelectuais que desempenharão o papel de mediadores simbólicos entre o nacional e o popular.
Os intelectuais serão os responsáveis pela formulação de modelos de identidade, e esta, vista agora como uma representação, expressa por meio de discursos de imposições de visões e interesses destes intelectuais, gerará também vários conflitos ideológicos, ou lutas de representações, nos quais cada intelectual buscará legitimar a sua concepção de identidade nacional.
Tanto Noberto Bobbio quanto Jeans-François Sirinelli dissertam sobre o caráter polissêmico do termo intelectual, atribuindo a esta palavra dois sentidos principais, um mais geral e outro mais restrito. De acordo com o primeiro sentido, intelectual seria todo aquele que transmitiria cultura e se distinguiria dos demais pela instrução. Sirinelli então afirma que [...] no primeiro caso, estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário como o erudito
.¹⁴
Já Bobbio designa o intelectual como [...] uma categoria ou classe social particular, que se distingue pela instrução e competência, científica técnica e administrativa, superior à média, e que compreende aqueles que exercem atividades ou profissões especializadas
.¹⁵
O caráter mais restrito do termo intelectual também foi discutido por estes dois autores, identificando os intelectuais como indivíduos engajados
que, através da cultura e da autoridade, influenciariam os debates públicos. Contudo, Bobbio identifica este segundo sentido como vulgar, encontrando-se frequentemente nos ensaios de caráter sociológico e econômico. Sirinelli explicita [...] que o historiador do político deve partir da definição ampla, e em determinados momentos, fechar a lente, no sentido fotográfico do termo
,¹⁶ isto porque os dois sentidos estão ligados e são fenômenos socioculturais - a sociedade reconhece a especialização do intelectual. Além disso, esta especialização legitima sua intervenção nos debates públicos, nos quais defende sua causa.
Apesar deste segundo sentido do termo intelectual não ser tão preciso quanto o primeiro, é ele que desperta mais curiosidade e problemas a serem pesquisados. Segundo Bobbio:
[...] esta acepção é também a mais interessante a ser aprofundada, porque como essa se relaciona o discutido problema do comportamento político dos intelectuais e de sua atitude crítica e problematizante, que os inclinaria para a oposição de esquerda, e não, raramente, também para o apoio militante de movimentos revolucionários.¹⁷
Apesar da duplicidade do termo e das dificuldades de conceituação, para análise mais condigna a ser desenvolvida aqui, a definição de Noberto Bobbio explica, por enquanto, o sentido com que pretende-se trabalhar o termo intelectual: Ainda hoje de fato, indicar uma pessoa como intelectual não designa somente uma condição social ou profissional, mas subtende a opção polêmica de uma posição ou alinhamento ideológico [...]
.¹⁸
1. Estado sem nação
As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto.
Eric J. Hobsbawn
Antes de discutirmos a construção da identidade nacional brasileira, os critérios imaginados para a formulação da nacionalidade e as divergências entre os diversos autores em relação à sua formação é necessário entender o que é a nação.
Em primeiro lugar, o termo nação sofreu várias modificações em relação ao seu significado. Hobsbawn, dissertando sobre essas transformações, afirma que o sentido moderno de nações que compartilhamos atualmente é totalmente diferente daquele estabelecido antes de 1884. Nação, como o próprio nome já diz, indicava origem e, por isso, o seu significado estava estritamente ligado ao território. Através do critério territorial, os grupos eram separados dos habitantes de outros lugares e unidos aos que pertenciam ao mesmo local. É por isso que Hobsbawn afirma: Antes de 1884 a palavra nación significava simplesmente o agregado de habitantes de uma província, de um reino e também de um estrangeiro
.¹⁹
A partir de 1884, a nação passou a se reportar à figura do Estado Nacional, mas agora era dada com um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de um governo comum e também o território constituído por esse Estado e seus habitantes como um todo
.²⁰
Em 1925, o patriotismo moderno²¹ é vinculado à nação, antes de 1925 [...] não ouvimos nota emocional do patriotismo moderno, que define pátria como a nossa própria nação [...] que gozam de amável lealdade dos patriotas
.²²
No Brasil, em 1958, a Enciclopédia Brasileira Mérito definia nação como
uma comunidade de cidadãos vivendo sob o mesmo regime de governo e tendo em comunhão de interesses, a coletividade de habitantes de um território com tradições, aspirações e interesses comuns, subordinados a um poder central que se encarrega de manter a unidade do grupo [...].²³
Em O que é uma nação,²⁴ Ernest Renan lista diversos critérios que poderiam validar o direito nacional: a raça, o território, a língua e a religião. Contudo, descarta todos estes itens no final de seu documento, enfatizando as vontades comuns, solidariedades construídas, pois, estas, sim, seriam as responsáveis pela fundação de nações.
Uma nação é, então, uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento dos sacrifícios que fizeram e daqueles que estão dispostos a fazer ainda. Ela supõe um passado; ela se resume, portanto, no presente por um fato tangível: o consentimento, o desejo claramente exprimido de continuar a vida comum. A existência de uma nação é (perdoem-me esta metáfora) um plebiscito de todos os dias [...].²⁵
Compartilhando ideias, que em alguns pontos guardavam semelhanças com as de Renan, Benedict Anderson afirma que nações seriam comunidades imaginadas que construiriam solidariedades segundo interesses e estilos diversos. Anderson conceitua nação como uma comunidade politicamente imaginada, quase uma questão de parentesco ou religião
.²⁶ Nesse sentido, para Anderson, a nação, além de ser imaginada, é também limitada e soberana. Limitada porque o critério territorial ainda é um fator muito forte, as fronteiras existem e nenhuma delas se imagina como extensão única da humanidade
.²⁷ E soberana, devido ao surgimento do nacionalismo em um momento em que a legitimidade dos reinos dinásticos e divinos estava sendo destruída pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. Além disso, a liberdade, motivo pelo qual muitos países lutavam, era um dos pressupostos do Estado Soberano.
Partindo, portanto, do conceito de Anderson de nação como comunidades imaginadas, analisaremos agora a construção da nação brasileira, tendo em mente, por conseguinte, que o fato de ser imaginada gerará divergências entre os critérios e estilos de construções, ou seja, se para alguns autores o fator territorial encerrava todos os pressupostos de nossa identidade, para outros, à raça
deveria ser reservada mais atenção. Critérios como língua, passado histórico e outros serão defendidos, mesclados ou rechaçados por estudiosos, cada um imaginará e construirá o seu modelo de nação, segundo interesses e singularidades inventadas e muitas vezes divergentes.
Muitos historiadores da América Latina deparam-se com o conflito ocasionado pela divergência entre os três eixos que advogam a construção da nação brasileira. Segundo Richard Graham²⁸ o primeiro eixo de pensamento diz respeito à crença de que a consciência nacional já existia no povo brasileiro, antes mesmo da fundação do Estado. O segundo eixo advoga que o Estado brasileiro foi o responsável pela formação da identidade nacional e este Estado, por conseguinte, foi criação de uma classe dominante. O último eixo de pensamento que Graham considera ser o mais implausível afirma que o Estado era autônomo e o imperador encerrava todos os poderes. Tal afirmação é logo descartada pelo autor por ignorar a questão dos conflitos sociais.
De acordo com o primeiro eixo, a nação precederia o Estado. Sobre isso, José Honório Rodrigues afirma que, antes mesmo da Independência, o sentimento nacional já estava presente no povo. Edward Bradford Burns, escrevendo sobre o nacionalismo brasileiro, também segue a mesma linha. Ele afirma:
O crescimento da consciência nacional (...) teve seu triunfo inevitável na proclamação da independência do Brasil (...) o Brasil apareceu e cresceu como uma nação unificada graças, pelo menos em parte, ao nativismo viril ou nacionalismo precoce.²⁹
Segundo este eixo de pensamento, um dos fatores da não desintegração territorial brasileira seria esse sentimento de amor e pertencimento do povo por sua terra, visto que o Brasil, em meio a muitas áreas administrativas da América Espanhola, foi a única região que não se fragmentou. Tal situação só poderia ter acontecido devido à consciência nacional precoce do brasileiro. Contudo, estar de acordo com essa afirmação seria invalidar os esforços do Império para evitar a fragmentação do território nacional. Além disso, Graham ainda analisa