Mística de olhos abertos
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Mística de olhos abertos - Johann Baptist Metz
Índice
Introdução
Primeira Parte - Perspectivas teológicas
Do que se trata
A mística da justiça de Deus - O perfil messiânico da espiritualidade cristã
Tempo e temporalidade - Sobre um problema central da teologia cristã
Mística Política? - O conceito do político na nova teologia política
Teu Deus também é meu Deus
- A sobrevivência
de Deus na morte do homem
Preocupações com o perfil do cristianismo? - Um comentário sobre a liberdade de religião
Segunda Parte - A mística do face a face – tentativas de aproximação
Do que se trata
Velar, despertar, abrir os olhos...
Relances no magnetismo do mundo das imagens
Aguçando o olhar: paixão e paixões
Tantas faces, tantas perguntas
Mística política do amor ao inimigo?
Com o olhar do inimigo
Convite a todos – face a face
A vida na ordem – com os olhos abertos
Diante das faces apagadas
Eu busco sua face
- Uma conjetura sobre a Visio Dei Beatifica
Ó Salvador, escancara os céus...
Um estímulo à oração
A coragem de interromper - Teses pentecostais
A história messiânica como história do sofrimento
A Páscoa como experiência - Breves comentários aos textos do Novo Testamento
O retorno da questão da teodiceia à linguagem da oração dos cristãos
A religião traz felicidade?
Mensagem de alegria?
Etsi Deus daretur – A oração de um cético
A cristologia da sucessão e sua mística
Uma cristologia de Sábado de Aleluia
A face de um teólogo: Karl Rahner
Terceira Parte - Uma Igreja sem interesse em aprender?
O começo de um começo? - Um olhar sobre o Concílio Vaticano II
A rebelião da esperança - Lembrando o documento de um sínodo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Apêndice
NOSSA ESPERANÇA - Uma decisão do conjunto dos sínodos dos bispados da República Federal da Alemanha
INTRODUÇÃO
Oobjetivo deste livro é tratar, sob u ma perspectiva teológica, a questão atualmente tão difundida quanto indefinida da espiritualidade
e das espiritualidades
. Com minha sugestão de uma mística de olhos abertos
, pretendo não só dar voz a um perfil imprescindível da espiritualidade cristã, mas também penetrar nas discussões sobre as crises que cercam Deus, a Igreja, as religiões e os mundos seculares.
Há décadas utilizo a metáfora da mística de olhos abertos
para explicar o fundamento espiritual do meu trabalho teológico, sem poder recorrer à pesquisa específica sobre a mística e a espiritualidade. A meu ver, é muito mais importante e interessante para toda teologia fundamental o questionamento do dualismo cada vez mais aguçado entre a história da fé e a história de vida, entre o mundo da fé e o mundo da razão, entre profissão de fé e experiência – e, de certo modo, interrompê-lo teologicamente. Numa tentativa como essa, a teologia não é totalmente isenta de biografia, o que a distingue da ciência da religião e também da filosofia da religião, com seu agnosticismo metodológico. Porém de modo algum essa distinção permite à teologia utilizar sua parte biográfica para a propagação, a seu bel-prazer, de uma história privada de vida. Para isso existe um logos da teologia sensível ao tempo e ao sofrimento! A ele dedico toda a primeira parte do livro.
Nesta primeira parte, trataremos inicialmente das perspectivas teológicas, das quais se ramifica o adendo sobre uma mística de olhos abertos
. Para aqueles leitores versados em teologia e interessados em geral, quero recomendar enfaticamente que embarquem nessa viagem, e prestem atenção se as três primeiras partes se completam argumentativamente. Naturalmente, quem se sentir irritado ou desanimado com os títulos poderá saltar esta primeira parte – além da parte sobre a Mística da justiça de Deus
– e dar prioridade ao breve texto Seu Deus também é meu Deus...
e possivelmente ao Comentário sobre a liberdade de religião
, para só depois, talvez, concentrar-se na segunda parte.
É que ela trata de uma espécie de protocolo de um caminho: minhas tentativas de aproximação
a essa mística, com origens bastante diversificadas e literariamente nem um pouco uniformes. Por décadas trilhei repetidamente esse caminho da aproximação – talvez por causa da minha intensa fome de experiência
, como teólogo. A primeira parte foi reformulada completamente, porém a segunda foi documentada com textos que já haviam sido publicados numa primeira formulação, e naturalmente também com adendos até então não publicados; mesmo assim, fiz uma revisão minuciosa desses textos publicados em primeira mão e, com isso, também modifiquei ou completei-os, visando, sobretudo, a sua coerência.
Na terceira parte, pergunto se um dia, na Igreja, já não estivemos muito mais adiantados, mais do que nos mostra a situação eclesiástica contemporânea. Por isso busco vislumbrar um possível panorama através de um olhar teológico retrospectivo. Naturalmente ele me confrontou constantemente com a seguinte questão: por que a Igreja pós-conciliar sempre se apresentou quase exclusivamente como uma Igreja que educa, numa hierarquia mais elevada, e não como uma Igreja que aprende? Quo Vadis, Ecclesia?
Meu amigo e colega Johann Reikerstorfer pressionou-me para que eu concluísse este livro o mais depressa possível. Ele compartilha a minha opinião de que a espiritualidade cristã não está aqui para se esquivar beatificamente da atual discussão sobre as crises, ou para neutralizar com serenidade as decepções com as reformas eclesiásticas não realizadas. Nesse meio tempo, muitos sentiram profundamente essas decepções, que frequentemente se transformaram em indiferença pela vida eclesiástica. Será que, neste caso, uma espiritualidade teologicamente permeada não poderia ser útil para finalmente despertar
a espiritualidade e promover uma ação eclesiástica na qual a Igreja – que necessariamente passaria a aprender – não fosse obrigada só a recuperar o que perdeu, historicamente, nem apenas a repetir o que já existe? Como eu acredito nessa possibilidade, e como considero o perfil católico no cristianismo eclesiástico insubstituível – num sentido marcantemente ecumênico, quando se trata de finalmente nos colocarmos de olhos abertos
diante dos desafios de uma crise da nossa época (ou de Deus) – escrevi estes textos.
Novamente, sinto-me na obrigação de enviar meus agradecimentos mais efusivos a Johann Reikerstorfer. Sem sua disposição de reunir meus pedaços de textos já existentes e finalmente de ler todo o manuscrito com uma atenção dedicada, o livro não poderia ter sido concluído nesse prazo tão curto. Por causa disso, e tendo em vista outros trabalhos conjuntos, eu pedi a ele que editasse o livro. Agradeço, sobretudo, à senhora Michaela Feiertag pela perfeita finalização do manuscrito, e, finalmente, devo meus agradecimentos ao senhor Dr. Suchla, da Editora Herder, pela colaboração, por enquanto garantida, e o seu interesse especial pela temática deste livro.
Münster, março de 2011
Johann Baptist Metz
Primeira Parte
Perspectivas teológicas
Do que se trata
Nesse meio tempo, espiritualidade
tornou-se uma palavra da moda, com muitos sentidos. Num deles, ela é a expressão, que se tornou semanticamente indefinida, de um movimento de busca pela nova religiosidade
, no outro, é o interesse por uma espécie de função substituta
para um tempo concebido como estritamente pós-religioso. Como sempre, numa situação como essa, parece-nos importante perguntar pela essência da espiritualidade cristã.
Esta primeira parte dedica-se à questão fundamental da espiritualidade teologicamente permeada, que não se afasta, de jeito nenhum, das discussões sobre as crises atuais, mas que justamente tenta preservar-se nelas. Trata-se do perfil do cristianismo e da Igreja, e do perigo de uma atemporalidade teológica e uma privatização não dialética dos seus fundamentos bíblicos; trata-se da preservação da mística de Deus no horizonte humano, no olhar sobre os processos do Iluminismo político e a secularização em nosso mundo, e no olhar sobre o pluralismo dos mundos da religião. Não se trata de uma espiritualidade mitigadora, mas uma espiritualidade que leva ao despertar, e principalmente à abertura.¹
1 Cf. nesse contexto, a terceira parte: Uma Igreja sem interesse de aprender?
.
A mística da justiça de Deus
O perfil messiânico da espiritualidade cristã¹
Deus caritas est , Deus é amor
– enfatizava a primeira grande encíclica de Bento XVI. Porém existe outro nome bíblico de Deus, incluído na mensagem de Deus no Novo Testamento, e que por isso não deve desaparecer da memória dos cristãos: Deus et iustitia est , Deus é (também) justiça
. Este é o nome com que o chamarão... Iaweh, nossa justiça
(Jr 23,6). Para a fé cristã, a justiça não é apenas um tema político nem ético-social, mas estritamente teológico: uma mensagem da fé em Deus e seu Cristo. A justiça como um dos nomes de Deus pode parecer secundária para o discurso sobre um Deus platônico, de ideias, mas é imprescindível para o Deus da história, biblicamente testemunhado nos dois testamentos da fé cristã. Esse Deus histórico expõe a afirmação de fé Deus é amor
à visibilidade das nossas experiências históricas e à responsabilidade concreta da nossa fé, que surge delas. Por isso o discurso cristão sobre Deus precisa ser um discurso sensível ao tempo, que não só explica e ensina, mas também experimenta e aprende. É nisso que se situa uma das origens da grande necessidade de fé de muitos cristãos de hoje, uma necessidade provavelmente mais profunda do que a linguagem da fé geralmente praticada possa considerar e perceber.
Na raiz da crença bíblica de Deus sempre paira uma questão não resolvida sobre a justiça: a questão da justiça para as vítimas inocentes sofredoras da nossa história. Essa questão se refere, na linguagem erudita, sobretudo à versão teológica da assim chamada teodiceia, portanto, à questão de Deus diante da história do sofrimento no mundo, no seu
mundo. Como podemos virar as costas para todo esse sofrimento, e nos preocuparmos apenas com nossa salvação e nossa redenção? Aquele que fala de Deus no sentido de Jesus assume o questionamento das certezas religiosas pré-estabelecidas, diante da infelicidade gritante dos outros. Nenhum ser humano tem o direito de justificar essa infelicidade dos outros. A meu ver, nada poderia ter deixado mais evidente a relação indissolúvel entre a questão de Deus e da justiça do que o fato de a Igreja, no seu mais recente concílio, ter considerado a si mesma não só como uma Igreja mundial dogmática, mas também empírica, na qual as histórias sociais e culturais do sofrimento no mundo foram introduzidas na visão de mundo de uma Igreja até então eurocentricamente nivelada e tranquila. São processos que não parecem transcorrer tranquilamente em meio às turbulências atuais da globalização, mas que ameaçam se aguçar cada vez mais sob a pressão anônima dessa globalização dos mercados.
A pátria literária da relação entre a questão de Deus e a da justiça pode ser encontrada nos textos bíblicos e sua teodiceia, portanto, ali onde a história da paixão do ser humano é introduzida desde o início na mensagem de salvação da humanidade, produzida pela justiça. A linguagem dessas tradições procura dar uma memória ao grito dos seres humanos, e uma temporalidade, i.e., seu respectivo prazo, ao tempo do mundo. A introdução tardia da ideia de temporalidade nas religiões e culturas do mundo por meio do apocalipse bíblico – sustentada pelo discurso dos profetas sobre as crises e pela linguagem de sofrimento dos salmos – pode ser reconhecida, por enquanto, como válida, na totalidade da história religiosa e cultural.² Em sua essência, esses textos apocalípticos da Bíblia não são, de modo algum, fantasias levianas ou insufladas sobre o fim do mundo. São documentos literários de uma percepção de mundo em que se revelam
as faces das vítimas, são documentos de uma visão de mundo que vela
e desvela
o que realmente vem ao caso
– a tendência presente em todas as visões de mundo de se ocultar a gritante infelicidade no mundo, mítica ou metafisicamente, e toda aquela amnésia cultural que até hoje deixa invisíveis todos os sofredores do passado, e também torna seus gritos inaudíveis.
O apocalipse bíblico desvela
a trilha dos sofredores na história da humanidade. Ele pode nos estimular a formular aquela única grande narrativa, aquela única grande história
que ainda permanece – depois da crítica da religião e da ideologia do Iluminismo, depois do marxismo, de Nietzsche e da fragmentação pós-moderna da história – ou seja, a legibilidade do mundo como história da paixão dos seres humanos. Ele formula – por assim dizer, por uma via negativa, ou seja, numa dialética negativa da memoria passionis – as origens daquele universalismo histórico que obrigatoriamente faz parte do monoteísmo do discurso cristão de Deus. Portanto, esse discurso só pode ser universal – e não só um tema da Igreja, mas também da humanidade – se for, na sua essência, um discurso sensível e de busca de justiça para o sofrimento alheio. Em seu princípio transcultural, esse universalismo seria antitotalitário e aberto ao pluralismo.
Bem aventurados os que sofrem
diz Jesus no Sermão da Montanha. Bem aventurados os que esquecem
, anuncia Nietzsche, como profeta do pós-modernismo. Mas o que aconteceria se, um dia, as pessoas só pudessem defender-se da infelicidade e dos sofredores do mundo com as armas do esquecimento? Se um dia só pudessem construir a própria felicidade esquecendo-se impiedosamente das vítimas, portanto, uma amnésia cultural, na qual um tempo que se imagina ilimitado deverá curar todas as feridas? De onde, então, seria extraída a força para a revolta pelos inocentes e pelos que sofrem injustamente? O que, então, poderia inspirar uma justiça maior, uma luta por um nível mais elevado do olhar
de todos os seres humanos num mundo único? E o que aconteceria se, em nosso mundo secular, a visão de uma última grande justiça se apagasse definitivamente? Se aquilo que gostamos de chamar hoje em dia de nossa espiritualidade
não fosse mais tocado por essa visão de uma justiça de Deus (para todos, na coalizão de vivos e mortos)?
Eu sei que nesse meio tempo espiritualidade
tornou-se uma palavra da moda, quase sem conteúdo. Talvez se possa dizer que, no mundo ocidental, ela tenha se tornado um lema que designa a essência opaca de uma percepção pós-moderna de vida. Assim, ao longo do seu uso sem limites, ela perdeu quase toda a sua determinação conceitual. As confusões semânticas parecem inevitáveis. A forma como a palavra espiritualidade
é usada hoje já se afasta multiplamente de todo contexto religioso, ou semelhante à religião. Mesmo no âmbito dos mundos religiosos ela surge nas mais diversas conotações. Nessas múltiplas proposições, o que ainda podemos chamar de espiritualidade cristã
?³
Eu gostaria de apresentar duas sugestões para a sua semântica (e para uma avaliação mais minuciosa, indicar os textos que se seguem). A meu ver, nos mundos religiosos deveríamos, por um lado, fazer a distinção entre mística e espiritualidade religiosa, e restringir o uso da palavra mística
às religiões monoteístas, pois sua espiritualidade trata expressamente da experiência de uma proximidade especial com Deus. Por outro lado, eu gostaria de enfatizar que os cristãos – diante das oscilações de significado referentes à espiritualidade, predominantes no próprio cristianismo eclesiástico – deveriam levar em conta outra orientação básica. Os cristãos são sempre lembrados da característica messiânica fundamental do cristianismo e sua espiritualidade, por meio da mencionada relação indissolúvel da questão de Deus com a da justiça. Nesse sentido, estamos nos referindo ao perfil messiânico da espiritualidade cristã
. O que quer dizer isso?
O primeiro olhar de Jesus é um olhar messiânico. Ele não se destina, em primeiro lugar, aos pecados dos outros, mas aos seus sofrimentos. Essa sensibilidade messiânica ao sofrimento não renega o peso bíblico da culpa e do pecado.⁴ A ênfase nessa perspectiva messiânica da mensagem do Novo Testamento pretende ser um corretivo diante de um absolutismo unilateral do pecado, que sempre ressurge na história da Igreja (como o último, mas não menos importante sermão aos pequenos e inocentes
) e que depois, na modernidade, levou a um perigoso antagonismo entre consciência de liberdade e consciência de pecado e à deturpação do conceito de pecado
para o de culpa
. Essa sensibilidade messiânica ao sofrimento não tem nada a ver com plangência, com um culto tristonho ao sofrimento, mas tem tudo a ver com uma mística bíblica de justiça: paixão por Deus como empatia pelo sofrimento alheio, como mística prática da compaixão. Um cristianismo que se apega à sua raiz bíblica volta sempre a se deparar com isso.
Enfatizo tão expressamente essa empatia pelo sofrimento alheio derivada da paixão por Deus porque, na sua mensagem, o cristianismo já teve, desde cedo, muitas dificuldades com a sensibilidade elementar ao sofrimento. No processo teológico do cristianismo, a meu ver, a questão – profundamente inquietante para as tradições bíblicas – da justiça para os inocentes sofredores foi transformada depressa demais na questão da salvação dos culpados. A doutrina cristã da salvação dramatizou a questão do pecado e negligenciou a questão do sofrimento. Mas será que isso não paralisou a sensibilidade elementar pelo sofrimento dos outros e não obscureceu a visão bíblica da grande justiça de Deus que, segundo Jesus, deveria valer para toda e qualquer fome e sede?
Será que os cristãos não se afastaram depressa e cedo demais da questão bíblica da justiça? Será que o cristianismo – ao longo do tempo – não se considerou exclusivamente demais uma religião sensível ao pecado e muito pouco sensível ao sofrimento? Por que a Igreja encontra mais dificuldade em lidar com as vítimas inocentes do que com os malfeitores culpados? Será que não expulsamos da nossa linguagem de fé cristã, depressa e tranquilamente demais, os gritos que soam na história do insondável sofrimento humano no mundo? Essa pergunta não deve ser considerada meramente especulativa, e nem com apelo moral. Ela toca na própria concepção de direito e de constituição da nossa Igreja. Será que existe uma concepção eclesiástica de direito, colocada sob a primazia de uma justiça salvadora para as vítimas inocentes sofredoras e, finalmente, também para os malfeitores que sofrem com a culpa?⁵ Ou será que isso continua bloqueado por causa da persistente sobreposição do antigo direito romano sobre nosso direito eclesiástico? Até hoje fiquei devendo um acompanhamento mais preciso dessa questão da relação entre justiça e direito, entre a justiça escatológica de Deus e o direito eclesiástico (justamente no interesse da nova teologia política), certamente por causa da minha falta de competência jurídica, mas talvez também por causa da minha falta de coragem civil teológica.
Em todo caso, a fé cristã é uma fé que busca a justiça. Certamente por isso os cristãos também são místicos, mas não exclusivamente místicos no sentido de uma experiência espiritual pessoal, porém no sentido de uma experiência espiritual de solidariedade. Eles são, sobretudo, místicos de olhos abertos
. Sua mística não é uma mística natural, sem face. Ela é muito mais uma mística que busca essa face, que leva esses místicos ao encontro do outro, sofredor, ao encontro da face dos infelizes e vítimas do mundo. Ela obedece, em primeiro lugar, à autoridade dos sofredores. Para essa mística da justiça que busca uma face, a experiência que desabrocha dessa obediência e se define nela torna-se um modelo terreno da proximidade de Deus com seu Cristo: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome...’ Ao que lhes responderá o rei: ‘Em verdade vos digo, cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes’
(cf. Mt 25,31-46). Essa mística da compaixão não tem como objetivo exclusivo uma experiência sem olhos, direcionada ao interior, mas aquela experiência da interrupção
, introduzida pela situação face a face
, na relação com o outro. Ela é, ao mesmo tempo, mística e política.⁶ Ela é mística
na medida em que pode ser o início de uma experiência de Deus, no mínimo uma espécie de atmosfera de Deus
.⁷ Ela é e continua sendo ao mesmo tempo política
, porque nessas interrupções
interpessoais, os outros, feridos e vulneráveis, poderão ser percebidos (tornando-se visíveis) numa última invulnerabilidade, impressa por toda nossa ação política. Portanto, essa mística política não é uma mística da política ou dos políticos, assim como Jesus não foi um político. Mas essa mística é, sim, política, assim como Jesus não é, de modo algum, apolítico em sua mensagem.⁸
Essa mística política da compaixão não é um convite ao heroísmo ou a uma santidade excepcional. Ela pretende ser razoável com todos, e dar um significado de estruturação futura à virtude básica dos cristãos e às formas de comunidade marcadas pelo princípio da paróquia popular-territorial da Igreja; comunidades nas quais a história da fundação do cristianismo (no caso a comunidade dos seguidores de Jesus, reunida para lembrar e contar histórias durante a ceia eucarística) se repete diante dos olhos do mundo, e a crença nela, sempre buscando a justiça, evita que se transforme numa seita.
Com essa conotação bíblico-apocalíptica e seu pathos de justiça, o cristianismo sensível ao tempo e ao sofrimento preocupa-se também com a luta por uma autoridade reconhecida universalmente, numa sociedade mundial estritamente pluralista. Será que existe, por exemplo, uma autoridade que esteja à frente, ou na base de todos os processos de consenso, e que seja uma autoridade com a qual todos possam concordar, sem violência? Existe também, no modernismo esclarecido, algo como um direito racional universal, que leve em conta o pluralismo? A pista revelada pelas tradições judaico-cristãs diz: é a memória passionis, a lembrança do sofrimento alheio, que garante o caráter humano da nossa moderna racionalidade. Essa memória passionis, em sua dialética negativa, é a tentativa teológica de formular um direito racional universal, que leve em conta o pluralismo (inclusive tendo em vista uma fundamentação no direito humano).⁹
No final, o que impede que o mundo globalizado sucumba à eclosão de combates incontroláveis entre religiões e culturas, por exemplo, de um lado o cristianismo, de outro o Islã – de um lado o Ocidente e de outro o mundo oriental? O que poderá manter a paz neste mundo? A proposição da igualdade elementar de todos os seres humanos, essa mais forte suposição a respeito da humanidade, possui um fundamento bíblico.¹⁰ Seu lado prático, tal como aceito pelo cristianismo e anunciado pela mensagem da unidade indissolúvel do amor de Deus e ao próximo, da paixão de Deus e da compaixão, diz o seguinte: não existe sofrimento no mundo que não nos diga respeito.¹¹
Assim, essa proposição da igualdade elementar de todos os seres humanos nos remete ao reconhecimento de uma autoridade acessível e racional para todas as pessoas, uma