O diálogo das religiões
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O diálogo das religiões - Andrés Torres Queiruga
Sumário
Capa
Rosto
Apresentação
1 - Delineamento do problema
1.1. Um problema perene sobre novos pressupostos
1.2. A nova situação
1.3. Os novos enfoques a partir da teologia
2 - As duas questões fundamentais
2.1. A particularidade
como necessidade histórica
2.2. A unicidade
da revelação plena
3 - O encontro entre as religiões
3.1. Todas as religiões são verdadeiras
3.2. Um diálogo real no qual todos aprendem
3.3. A insuficiência da linguagem
3.4. Uma pergunta fascinante: in-religionação
?
4 - Uma parábola como final
Créditos
Apresentação
Crê firmemente, confessa e prega [o concílio] que nenhum dos que existem fora da igreja católica, não somente os pagãos, mas também os judeus ou heréticos assim como os cismáticos, podem chegar a ser partícipes da vida eterna; pelo contrário, irão ao fogo eterno, ‘que está preparado para o diabo e seus anjos’, a não ser que antes do fim da vida sejam agregados a ela [à igreja].
¹
"A igreja católica nada rejeita do que nestas religiões [não cristãs] há de verdadeiro e santo. Considera com sincero respeito os modos de agir e viver, os preceitos e doutrinas que, embora discordem em muitos pontos do que ela professa e ensina, não poucas vezes refletem um brilho daquela Verdade que ilumina todos os homens. (…)
Por conseguinte, exorta a seus filhos que, com prudência e caridade, mediante o diálogo e a colaboração com os adeptos de outras religiões, dando testemunho da fé e da vida cristã, reconheçam, guardem e promovam aqueles bens espirituais e morais, assim como os valores socioculturais, que neles existem."
Estes dois textos, ainda que a priori possa parecer impossível, vêm da mesma autoridade religiosa. O primeiro pertence ao Concílio de Florença, e é de 1442; o segundo, ao Vaticano II, e é de 1965.² Cronologicamente, entre eles estão pouco mais de 500 anos. Ideologicamente, poderiam parecer milênios. E é preciso reconhecer que hoje, passados cerca de 30 anos, o segundo tornou-se até estranhamente tímido e restritivo.
Evidentemente, encontramo-nos diante de um problema profundo, de tecitura delicada e implicações transcendentais. A presença dos fundamentalismos, a instrumentalização dos credos religiosos para fins terrivelmente bélicos e — num plano mais íntimo — a inquietude espiritual que para muitos supõe a presença em paralelo, e às vezes também hostil, das religiões num mundo como o atual, que as põe de maneira irremediável em crescente contato direto… não permitem fechar os olhos diante do problema.
É urgente pensá-lo de verdade. Aqui vamos tentá-lo com clareza e honestidade (ao menos na intenção). E isso implica o reconhecimento da posição primariamente teológica da reflexão, se bem que com um discurso que busca expor-se ao diálogo com a filosofia: não poderá certamente elaborar diante dela todos os seus pressupostos, mas ao menos pressupõe em princípio o acesso a eles e não se nega à discussão da coerência crítica de seus raciocínios. Daí, igualmente, uma inevitável preocupação de radicalidade. Por isso, ainda que gostaríamos, talvez não possamos poupar ao leitor o esforço da compreensão e seguramente, em algum ponto, também a disponibilidade para romper lugares-comuns e preconceitos. Por fim, certamente a uns a proposta lhes parecerá ousada, ao passo que outros seguramente irão considerá-la muito tímida. Em todo caso, aí permanece como mão estendida ao diálogo, convite ao debate e ânimo para uma práxis renovada. Se algo disso se conseguisse, não seria pouco.
1. DS 1351; cf. também a bula Unam Sanctam, 1302: DS 870.
2. Declaração Nostra aetate
. Sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, n. 2.
1
Delineamento do problema
1.1. Um problema perene sobre novos pressupostos
Os textos citados na apresentação aludem a uma clara tensão cronológica. Durante séculos, a teologia cristã pôde passar ao lado das religiões não cristãs sem notar a monstruosidade que supunha excluir seus fiéis da revelação e salvação divinas. E não é que de algum modo não se percebesse a tensão. A convicção, praticamente interrompida ao longo da tradição eclesial, de uma vontade salvífica universal por parte de Deus e as especulações em torno do batismo de desejo
mostram-no com clareza. Porém seu enfrentamento expresso e sistemático se fez incontestável somente em nosso tempo. John Hick, um dos autores que com mais constância, profundidade e sensibilidade se têm preocupado com este problema, assinalou acertadamente que, estritamente falando, tem emergido unicamente entre pessoas ainda vivas
.³
E a verdade é que o tem feito com intensidade e vivacidade, sobretudo no mundo anglo-saxão. É óbvio porém que não está atingindo a todos, pois na realidade o que aí sucede não é mais que a ponta de um fenômeno de profunda transcendência e alcance universal: o encontro efetivo das religiões num mundo que se unifica aceleradamente. Não cabe aqui ignorá-lo nem desconhecer sua importância para a construção da humanidade. Na Espanha como em outros tantos países, com sua entranha histórica tão trabalhada pela excepcionalmente extensa, às vezes conflitiva, porém sempre fecunda convivência das três religiões do livro
, a questão não pode deixar-nos indiferentes, e talvez tenhamos nossa peculiar palavra a dizer.
Em qualquer caso, essa dialética entre a perenidade do problema e a novidade de seu (re)delinea-mento não é algo secundário: marca de modo decisivo a questão e pode inclusive dificultá-la seriamente. A reflexão se encontra provida dos conceitos de sempre, mas num contexto de dados inéditos.
Isso deve, antes de tudo, precaver-nos contra um delineamento isolado e abstrato, que se entregue ao jogo dos problemas lógicos do diálogo sem fazê-lo nascer de seu contexto vivo. De fato, nem