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Conformismo e resistência: Escritos de Marilena Chaui, vol. 4
Conformismo e resistência: Escritos de Marilena Chaui, vol. 4
Conformismo e resistência: Escritos de Marilena Chaui, vol. 4
E-book417 páginas7 horas

Conformismo e resistência: Escritos de Marilena Chaui, vol. 4

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Sobre este e-book

Como todos sabemos, Marilena Chaui é uma filósofa, e uma das maiores do país. O que nem todos sabem é que em sua trajetória ela jamais se contentou em manter a filosofia no panteão da busca da verdade universal e desinteressada. Pelo contrário. Seguindo muito do ensinamento da filosofia do século XX, sua obra manteve intenso diálogo com o que o francês Maurice Merleau-Ponty chamava de "não-filosofia", ou seja, tudo aquilo que não sendo primordialmente filosofia pode fornecer conteúdos ao filósofo e lhe inspirar o pensamento.

Este volume apresenta um caso paradigmático do rico diálogo travado pela obra de Marilena com as ciências sociais brasileiras a partir de uma questão fundamental: o que é a cultura popular e qual forma específica ela assume em nosso país? O ponto mais alto dessa incursão foi Conformismo e
resistência. Aspectos da cultura popular no Brasil, aqui republicado junto a diversos ensaios, depoimentos, conferências e artigos de jornal produzidos nas décadas de 1970 e 1980. No conjunto, o material, especialmente revisto para esta edição, reconstitui uma investigação aprofundada em que a filósofa se esforça em apreender a originalidade da cultura popular como uma lógica ou um saber particulares, que, ao mesmo tempo em que adere ao status quo e reproduz o autoritarismo das elites, também é capaz de opor-se ao sistema e expressa o desejo de liberdade próprio das classes populares.

Pela primeira vez, esses textos aparecem reunidos num único volume, o que permite aos leitores descobrir (ou redescobrir em toda a sua envergadura) o quanto o trabalho da filósofa Marilena Chaui pôde propor uma interpretação original de um dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira: a sua cultura popular, tal como se apresenta com suas peculiaridades.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de set. de 2017
ISBN9788582178980
Conformismo e resistência: Escritos de Marilena Chaui, vol. 4

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    Conformismo e resistência - Marilena Chaui

    Marilena Chaui

    Conformismo e resistência

    ESCRITOS DE MARILENA CHAUI

    Volume 4

    ORGANIZADOR

    Homero Santiago

    Apresentação

    Homero Santiago¹

    A ambiguidade tem péssima reputação. O ideal é que tudo seja nítido e unívoco, sem margem a ambivalências. Os ditos populares o decretam: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa; tudo tem de ser preto no branco porque, no final das contas, é 8 ou 80 e ou vai ou racha. Mesmo quando ambiguidades teimam em persistir, é de bom tom empenhar-se em suprimi-las logo, pois, no fundo, nada seria realmente ambíguo. É até possível que de noite todos os gatos sejam pardos, mas convém saber que isso resulta apenas da confusão ocasionada pelas trevas. Feita a luz, dissolvido o breu, devem clareza e univocidade, de direito, imperar.

    Ora, esse horror ao ambíguo é contrabalançado de uma ponta a outra pela reflexão filosófica de Marilena Chaui. Um de seus aspectos mais notáveis, ao invés, é a capacidade de apreender ambiguidades, levá-las a sério e, assim, renovar a compreensão de certos objetos ou assuntos que antes, sob o peso da consideração unilateral, frequentemente negativa, não chegavam a revelar-se em sua inteireza, em sua positividade. Arriscaríamos dizer que está aí, nesse procedimento contumaz, um dos mais ricos ensinamentos que a filósofa colheu da aliança entre dois pensadores de sua predileção. Na escola de Espinosa, ela aprendeu o respeito estrito aos objetos sobre que se debruça, a exigência de distinguir camadas de preconceitos que se costumam sedimentar sobres eles, com vistas a uma consideração rigorosa que nada ceda à tentação de medir o objeto pelo que ele deveria ser mas não é, isto é, negativamente. Já de Merleau-Ponty terá vindo o destemor de que esse entendimento total desemboque na identificação de ambiguidades reais, a coragem de dá-las por incontornáveis na medida em que constitutivas do próprio objeto, cuja apreensão passa a cobrar um alargamento da própria racionalidade em ação.

    Por que isso tudo nos interessa aqui? Porque muito provavelmente com relação a nenhum outro tópico abordado por Marilena em sua obra essa lição de método tenha sido seguida tão à risca e a categoria da ambiguidade tenha atuado de modo tão decisivo e inovador quanto na investigação - por ela empreendida nas décadas de 1970 e 1980, para ficarmos no âmbito dos textos aqui apresentados - sobre a cultura popular e seu ambiente natural (a luta de classes). As tortuosidades necessárias à definição do objeto, as escusas relações entre saber e poder, as escaramuças da mistificação interesseira, os preconceitos disseminados, as violências perpetradas, tradições e inovações – em suma, o enigma de uma cultura ou um saber que tanto resiste quanto se conforma; ora faz um, ora faz o outro, às vezes faz um exatamente para fazer o outro, sempre ambiguamente. Eis a própria condição de apreensão positiva do objeto e portanto de sua verdade: conformismo e resistência. E daí nos ter parecido natural atribuir esse título genérico, emprestado a um já clássico estudo publicado em 1986, ao conjunto dos textos aqui pela primeira vez reunidos e que busca reconstituir um longo trabalho de investigação que se inicia na primeira metade dos anos 1970 e adentra os anos 1980, e cuja extensão serão os inúmeros trabalhos dedicados à política cultural (tema a que se dedicará um volume futuro dos Escritos de Marilena Chaui) e, noutro terreno, a atuação de Marilena à frente da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo entre 1989 e 1992.

    Retomemos brevemente essas etapas.

    Terminado seu itinerário de formação em filosofia, se assim podemos dizer tomando por parâmetro as balizas formais, e vivendo os anos mais sombrios da noite ditatorial, a recém-doutora Marilena Chaui entende que sua contribuição a um futuro que se pretendesse democrático necessitava ir além da delimitação das causas da violência política que ensaiara na tese de doutoramento sobre Espinosa defendida em 1971. Que será isto – este país afetuoso e de povo afável e trigueiro, paraíso tropical das raças, em que curiosamente no dia a dia se espezinham os subalternos sem cerimônia, em que se torturam e se matam os opositores sem nenhum pudor –, o Brasil? Era preciso ir além. Nesse período, ela estreita o diálogo com as ciências sociais e, filósofa, ocupa-se sobretudo da crítica à ideologia, indo do nem um pouco saudoso integralismo à mistificação da brasilidade cordial (ver o volume 2 desta coleção, Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro). Com o tempo, quiçá amparada pelo Espinosa que lhe ensinava ser a ideologia menos um discurso intencionalmente falso que um discurso lacunar (aquele que faz da ignorância, isto é, da incompletude, um saber completo e arroga-se todos os direitos de tanto), Marilena renova no tema ao afirmar que a ideologia, tal como se apresenta no capitalismo tardio brasileiro, é justamente um discurso que se exibe como eficaz, detentor da cientificidade, e que ao mesmo tempo, com base nesses atributos, outorga-se o direto de desqualificar os adversários e escamotear o que bem lhe convém. Uma forma de dominação cuja arma prioritária, por conseguinte, é o saber; um discurso competente, uma ideologia da competência (ver o volume 3 desta coleção, A ideologia da competência).

    Às voltas com um problema clássico (desde Platão as relações entre saber e poder são um ponto nodal para a questão da democracia), a filósofa vê nascer uma interrogação paralela e que logo se torna central. É certo que o saber serve à ideologia e ao poder, mas será que todo saber se presta a isso? Em alternativa à cultura e ao saber dominantes, não haverá outros? Daí lhe parecer necessário aventurar-se, mais uma vez, pelo usitado tema da cultura popular. Entretanto, sob uma perspectiva renovada, ela busca inspiração maiormente em alguns historiadores ingleses (Christopher Hill, E. P. Thompson e outros) que desde a década de 1960 se empenhavam em reconsiderar a história e a cultura das classes populares e livrá-las das esquematizações tradicionais e geralmente redutoras – aquelas mesmas com que Marilena se confrontará: os ilustrados que tomam a cultura popular à guisa de etapa atrasada a ser superada pela razão; os românticos que nela identificam uma matriz a ser preservada, como numa redoma, a título de alma da nacionalidade; os esquerdistas épicos que concebem o povo como classe que se erguerá revolucionariamente em busca da redenção. Passando longe disso, de modo crítico, o que Marilena descobre é que as classes populares têm seu saber; um saber, uma lógica que, embora não agrade a ninguém, não satisfaça a expectativas alheias, é indubitavelmente delas, de sua própria lavra. Uma cultura feita por criaturas de carne e osso, com dúvidas e indecisões, medos e esperanças (para usarmos os termos da bela análise do filme Cabra marcado para morrer presente neste volume); ora conformada e conservadora, ora resistente e progressista, mas sabendo usar até mesmo dos mecanismos do poder a seu favor (ver a paradigmática análise da Greve da Amnésia em Conformismo e resistência e sempre exprimindo esse desejo próprio dos de baixo que é não ser dominado pelos de cima.

    Eis, leitor, o trajeto investigativo que este volume dos Escritos de Marilena Chaui apresenta ao coligir textos de diversos formatos e proveniências, que vão de 1974 até 1995. Conforme os parâmetros da coleção, todos foram revistos pela autora especialmente para esta edição; ao organizador coube, além da seleção, uns poucos rodapés, sempre identificados, a cada vez que lhe pareceu oportuno reconstituir o histórico de certos argumentos e referências. O conjunto divide-se em quatro partes, e no interior delas os textos se distribuem cronologicamente.

    A primeira parte, como era de se esperar, retoma o texto integral do referido volume de 1986 cujo título principal emprestamos para encabeçar a coletânea. Todos os demais textos gravitam em torno desse, na medida em que ou o prepararam ou dele decorreram.

    A segunda recolhe trabalhos nos quais, ao longo de mais ou menos uma década, a autora põe o problema das relações entre saber e poder conduzindo-o à arena política de um país em que a luta contra a ditadura é simultânea às tentativas de formulação de um projeto democrático. Cabe alertar que aqui, por duas vezes (conferências sobre Popper e sobre o papel da cultura no momento político), baldados os esforços de reencontrar os textos originais, foi necessário recorrer a matérias jornalísticas que traziam largas citações entre aspas; o expediente nos pareceu valer a pena pelo benefício que traz à recomposição do percurso.

    A terceira oferece um conjunto de resenhas publicadas em veículos de imprensa e que podem ser divididas em dois grupos, conforme o momento de sua publicação. Uma pesquisa, antes de ganhar a forma de livro, exige leituras, tateios, aprofundamentos; testemunhos desse esforço são as discussões de trabalhos que serviram à construção das formulações do volume de 1986 (por exemplo, o estudo de Kazumi Munakata sobre a CLT ou o de Rubem César Fernandes sobre as cerimônias do Bom Jesus de Pirapora). Num segundo momento, os resultados da elaboração teórica podem ser confrontados com autores que de alguma forma trataram do mesmo assunto ou de temas conexos (por exemplo, as análises de obras de Félix Guattari e Arno J. Mayer).

    A quarta parte, finalmente, traz uma seleção dos textos publicados por Marilena na coluna semanal que manteve na página 2 da Folha de S.Paulo, entre 1983 e 1986, e que não raro estiveram em estreito diálogo com a temática aqui em foco. Naqueles breves artigos, a observadora arguta destrincha os fios latentes da luta de classes cotidiana: as maquinações legislativas e a tecnocracia, a crueldade das condições de vida das classes consideradas inferiores, cujos membros vivem morrendo de óbito induzido ou de morte matada a mando dos poderosos, a ponto de a política institucional tornar-se para elas irrelevante. Igualmente, por outro lado, reconhece anseios de democracia a se expressarem no mundo do futebol, nos quebra-quebras, na resistência aos imperativos do mercado, nos movimentos sociais. A única exceção fica por conta do polêmico Doutores e encanadores, texto mais tardio deste volume e que, ao encerrá-lo, ilustra como, ainda no Brasil redemocratizado, o embate de classes continuou a atravessar o campo do saber e da cultura, o que vem demonstrar o acerto da intuição da jovem autora ao bem cedo dirigir seus esforços analíticos para essas paragens.

    Conclusivamente, aproveitemo-nos do mote para um último aceno ao sentido e à coerência desse percurso pela cultura popular brasileira. No primeiro semestre de 2013, Marilena Chaui escandalizou alguns ao afirmar sem papas na língua: odeio a classe média. A declaração correu imprensa e internet gerando reações variadas e quase sempre adversas: rompantes despropositados (teria endoidecido?), coqueteria intelectual (por acaso mudou de classe?), sandice pura e simples (motivada pelas disputas partidárias?). Não nos cabe aqui discutir a oportunidade ou não daquelas palavras, apenas insistir que inéditas elas não eram. O leitor deste volume ficará sabendo que já haviam sido proferidas e registradas, tais quais, três décadas antes; e ainda que a filósofa então confessasse falar mais emocional do que racionalmente, arrematava: é uma longa discussão essa, mas que me parece fundamental (O papel da cultura no momento político). De fato, no conjunto de nossos textos, a questão retorna particularmente num artigo de 1984 (E se a classe média mudasse?), com menos emotividade e mais argumentação, porém sempre sustentando uma aguda crítica de classe que, longe de ser ocasional, engata com o núcleo de uma profunda e original reflexão sobre a sociedade brasileira. Ora, como ensina o La Boétie lido por Marilena (ver o volume 1 desta coleção, Contra a servidão voluntária), não há tirania que sobreviva sem tiranetes que a apoiem; não existe o Um que domina sem os Muitos que lhe servem na esperança de serem servidos. A legitimação desse poder às vezes vem com marchas que invocam Deus e a sacrossanta família, mais sutilmente se faz pela alegação da posse exclusiva do saber: os cultivados contra os ignorantes, os competentes que merecem governar contra os despreparados que devem ao menos conhecer seu lugar e deixarem-se mandar. Doutores X encanadores, em suma. Pois bem, debruçando-se sobre a cultura popular brasileira, o mérito maior da filósofa (permita-se ao organizador ajuizar um pouco) foi precisamente inverter os sinais desse enquadramento tradicional – operação, aliás, de profunda inspiração espinosana, conforme ela própria dá a ver no belo ensaio Quem tem medo do povo?, incluído em Política em Espinosa). Odiar ou amar a classe média, que infelizmente em nossa história tão amiúde fez as vezes dos Muitos, é questão de somenos e que se pode deixar ao polemismo. Crucial é a opção teórica e política de Marilena Chaui, exprimida quer sob forma emotiva quer rigorosamente justificada, como nos textos deste volume. Contra a concepção de que o poder deve ser mantido à distância da plebe, leia-se: gentinha ignorante, instável, interesseira, que menospreza a ética, pensa com o bolso, vota com o estômago e chega ao cúmulo hoje de frequentar aeroportos portando seus hábitos de rodoviária. A favor daqueles que, nem heróis nem coitados, detêm um saber, uma lógica, uma cultura ambíguos, entre conformismo e resistência, e que por isso mesmo fornecem a base de qualquer projeto futuro de democracia radical, isto é, verdadeira. Se um dia a democracia for possível neste país, ela nascerá dos movimentos sociais e populares, do contrapoder social e político que transforma a plebe em cidadã e os cidadãos em sujeitos que declaram suas diferenças e manifestam seus conflitos (Dizimação).


    ¹ * Homero Santiago é professor no Departamento de Filosofia da USP.

    PARTE I

    Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil

    ²

    Nota preliminar

    Este texto foi originalmente escrito para leitores estrangeiros (abril-maio de 1985). Apesar de algumas remodelações e vários cortes, os leitores brasileiros irão encontrar inúmeras passagens óbvias, mas que eram necessárias aos leitores a quem o estudo inicialmente se dirigia. Peço que perdoem essa falha, e todas as outras também.

    Alguns leitores estrangeiros e vários brasileiros, que analisaram a versão original, consideraram este trabalho muito pessimista. Não foi com pessimismo que o escrevi.

    São Paulo, dezembro de 1985.

    Introdução, como de praxe

    Uma ideia problemática, evidentemente

    A expressão cultura popular, como já foi bastante observado, é de difícil definição.³ Seria a cultura do povo ou a cultura para o povo? A dificuldade, porém, é maior se nos lembrarmos de que os produtores dessa cultura – as chamadas classes populares – não a designam com o adjetivo popular, designação empregada por membros de outras classes sociais para definir as manifestações culturais das classes ditas subalternas. Assim, trata-se de saber quem, na sociedade, designa uma parte da população como povo e de que critérios lança mão para determinar o que é e o que não é popular.

    No Brasil, fala-se, por exemplo, em música popular para designar todo o campo musical que escapa à chamada música erudita, mas nem sempre compositores e ouvintes pertencem às chamadas camadas subalternas, e sim à classe média urbana – se, no início deste século, os compositores mais conhecidos eram lá do morro, no final do século, grande parte da música popular é composta e ouvida por universitários. Em contrapartida, a chamada música sertaneja (designação mais frequente para a música caipira e para a moda de viola sob a influência de novos ritmos urbanos) corresponderia muito mais à ideia do popular como subalterno. Por outro lado, as composições mais admiradas pela população popular são aquelas que costumam receber a qualificação pejorativa de kitsch – Roberto Carlos, Nelson Ned e Teixeirinha sendo exemplares. Enfim, do ponto de vista oficial ou estatal, popular costuma designar o regional, o tradicional e o folclore.

    Numa perspectiva que considerasse primordialmente os produtores e seu público, guiando-se pelas ideias de regional, tradicional e típico, seriam populares a marujada, a congada, a ciranda, o bumba meu boi. Todavia, resta saber o principal: por que regional, tradicional e típico designariam o popular?

    A discussão do problema poderá ser facilitada se fizermos um breve retrospecto da emergência da expressão cultura popular.⁴ Antes, porém, é conveniente recordarmos o surgimento da concepção moderna de cultura e seus laços com duas outras, civilização e história.⁵

    Vinda do verbo latino colere, cultura era o cultivo e o cuidado com as plantas, os animais e tudo que se relacionava com a terra; donde agricultura. Por extensão, era usada para referir-se ao cuidado com as crianças e sua educação, para o desenvolvimento de suas qualidades e faculdades naturais; donde puericultura. O vocábulo estendia-se, ainda, ao cuidado com os deuses; donde culto. A cultura, escreve Hannah Arendt, era o cuidado com a terra para torná-la habitável e agradável aos homens, era também o cuidado com os deuses, os ancestrais e seus monumentos, ligando-se à memória, e, por ser o cuidado com a educação, referia-se ao cultivo do espírito. Em latim, cultura animi era o espírito cultivado para a verdade e a beleza, inseparáveis da natureza e do sagrado.

    A partir do século XVIII, observa Raymond Williams, o termo cultura articula-se, ora positiva ora negativamente, com o termo civilização. Este, derivando-se do latim cives e civitas, referia-se ao civil como homem educado, polido, e à ordem social (donde o surgimento da expressão sociedade civil). Entretanto, civilização possuía um sentido mais amplo do que civil. Significava, por um lado, o ponto final de uma situação histórica, seu acabamento ou perfeição, e, por outro, um estágio ou uma etapa do desenvolvimento históricosocial, pressupondo, assim, a noção de progresso.

    Todavia, a Ilustração relaciona cultura e civilização de maneiras opostas.

    Alguns, como Rousseau, consideram os dois termos antitéticos. Civilização é artifício, cultivo da exterioridade, sujeição da sensibilidade e do bom natural aos espartilhos de uma razão artificiosa, decadente. Civilização seria o início e o término da barbárie. Em contrapartida, cultura é bondade natural, interioridade espiritual, sentimento e imaginação, vida comunitária espontânea. Assim, enquanto civilização designa convenção e instituições sociopolíticas, cultura se refere à religião natural, às artes nascidas dos afetos, à família e à personalidade ou subjetividade como expressões imediatas e naturais do espírito humano não pervertido. Civilização é a sociedade política. Cultura, ainda que evidentemente uma prática social, relacionava-se com a ‘vida interior’ em suas formas mais acessíveis e seculares: ‘subjetividade’, ‘imaginação’ e ‘indivíduo’.

    Para outros, como Voltaire e Kant, cultura e civilização exprimem o mesmo processo de aperfeiçoamento moral e racional, o desenvolvimento das Luzes na sociedade e na história. Cultura torna-se medida de uma civilização, meio para avaliar seu grau de desenvolvimento e progresso. Aqui, cultura não é o natural oposto ao artificial, mas o específico da natureza humana, isto é, o desenvolvimento autônomo da razão na compreensão dos homens, da natureza e da sociedade para criar uma ordem superior (civilizada) contra a ignorância e a superstição. Tornando-se o metron, a cultura permite avaliar, comparar e classificar civilizações.

    Entendida como exercício livre da razão e da vontade esclarecida, a cultura surge como reino humano dos fins e dos valores, separado do reino natural das causas necessárias e mecânicas. A oposição entre natural e artificial ganha sentido diverso do precedente: torna-se, agora, oposição entre interioridade livre e exterioridade necessária (tema central do idealismo alemão e cujo acabamento é a filosofia hegeliana). Gradativamente, a natureza torna-se imóvel, passiva, materialidade dispersa, exterioridade mecânica, enquanto a cultura se faz mobilidade, atividade, temporalidade, autoconsciência, objetivação da subjetividade e reconciliação do subjetivo e do objetivo no Espírito Absoluto. Cultura torna-se o reino humano da história, universo das obras.

    Novamente, o termo se bifurca. Numa direção, refere-se ao processo interior dos indivíduos que, para usarmos a expressão de Kant, passam da minoridade intelectual à maioridade racional, graças à educação pelas Luzes. Nessa direção, a cultura vai, pouco a pouco, designando os indivíduos educados intelectual e artisticamente, constituindo as humanidades, apanágio do homem culto, em contraposição ao homem inculto (desembocando, como lembra Arendt, no filistinismo burguês). Na outra direção, marcada pelas relações com a história, a cultura se torna o conjunto articulado dos modos de vida de uma sociedade determinada, concebida ora como trabalho do Espírito Mundial (como em Hegel), ora como relação material determinada dos sujeitos sociais com as condições dadas ou produzidas e reproduzidas por eles (como em Marx). Na linha de estilo hegeliano, a Kulturgeschichte irá gradualmente definir-se como campo das formas simbólicas – trabalho, religião, linguagem, ciências, artes e política (como na Filosofia das formas simbólicas, de Cassirer, na Estrutura do comportamento, de Merleau-Ponty, e nos trabalhos da antropologia) –, enquanto, na linha de estilo marxista, será um momento da práxis social como fazer humano de classes sociais contraditórias na relação determinada pelas condições materiais e como história da luta de classes. Em sentido amplo, cultura é o campo simbólico e material das atividades humanas, estudadas pela etnografia, pela etnologia e pela antropologia, além da filosofia. Em sentido restrito, isto é, articulada à divisão social do trabalho, tende a identificar-se com a posse de conhecimentos, habilidades e gostos específicos, com privilégios de classe, e leva à distinção entre cultos e incultos, de onde partirá a diferença entre cultura letrada-erudita e cultura popular.

    Na trilha aberta por Rousseau, caminharão os românticos, em combate aos ilustrados. É interessante observar que a divergência entre Romantismo e Ilustração quanto ao conceito de cultura reaparece na definição do popular,⁷ ou, para usarmos a feliz distinção de Barbero, a divergência entre "o popular na cultura, posto em marcha pelo movimento romântico, e o povo na política, elaborado pela Ilustração".

    Para entendermos o povo na política, precisamos regressar aos séculos anteriores à Ilustração, quando se elabora na Europa o ideal da política republicana. De Marsílio de Pádua a Jean Bodin, de Maquiavel a Espinosa, de Tyndale a Loyseau, de Bartolo di Perugia a Seyssel, a divisão social, posta como divisão política, retoma a distinção romana entre populus e plebs, isto é, entre o povo como instância jurídico-política legisladora, soberana e legitimadora dos governos, e a plebe como dispersão de indivíduos desprovidos de cidadania, multidão anônima que espreita o poder e reivindica direitos tácitos.

    É comum, durante todo o século XVII, por exemplo, escritores políticos de tendências filosóficas, religiosas e políticas diferentes concordarem na designação da plebe como o vulgar, canalha, ralé, populacho, povinho, arraia miúda,⁸ enquanto o povo, distinguido positivamente da nobreza e do populacho, é constituído pela parte mais útil, mais virtuosa e, consequentemente, mais respeitável da nação. Composto de fazendeiros, artesãos, comerciantes, financistas, homens de letras e homens da lei.⁹ Em uma palavra, o Terceiro Estado ou os Comuns. O povo, de onde parte a república, é a burguesia. Sob esse aspecto, não causa surpresa o fato de que, durante a Revolução de 1817, em Pernambuco, ilustrados, empenhados na descolonização e na instalação de uma república, dividissem a si mesmos em três classes – nobreza, clero e povo –, excluindo desta última classe os pobres e os negros escravos. Nem é surpreendente que Antônio Carlos de Andrada e Silva, ao comparecer perante os tribunais para responder pelo crime de sedição, declarasse: Derrubando-me da ordem da nobreza a que pertencia, me punha a par da canalha e ralé de todas as cores, e me segava em flor as mais bem fecundadas esperanças de ulterior avanço, e de mores dignidades.¹⁰

    A dualidade povo-povinho persistirá na Ilustração. Haverá, para ela, o povo como vontade universal e legislador soberano, unidade jurídica dos cidadãos definidos pela lei, e o povinho ou populacho, ignorante, supersticioso, irracional e sobretudo sedicioso – a massa perigosa. Há, pois, o povo como generalidade política e o povo como particularidade social, os pobres. Como observa Barbero, os ilustrados estão aprisionados num círculo contraditório: estão contra a tirania, em nome da vontade popular, e contra o povo, em nome da razão. Ao povo, portador da razão, cabe a tarefa política fundadora. Quanto ao povinho e suas necessidades básicas, cabe auxiliá-lo através da filantropia e educá-lo através da disciplina do trabalho industrial, educação essencial para conter suas paixões obscuras, supersticiosas, sua irracionalidade e sobretudo sua inveja, que se exprime no desejo sedicioso do igualitarismo. Encontramos nos Ilustrados algo presente na Inglaterra do século XVII, entre os filósofos do chamado Círculo dos Platônicos de Cambridge: a ideia de que o povo, em sua irracionalidade, tende para o Entusiasmo, isto é, para a imaginação religiosa sem freios, origem do milenarismo e da sedição. Perspectiva que a sociologia da religião sempre reforçou ao associar religião popular e fanatismo.

    No polo oposto – o popular na cultura –, os românticos esperam que a afirmação da alma popular, do sentimento popular, da imaginação, da simplicidade e da pureza populares quebre o racionalismo e o utilitarismo da Ilustração, considerada por eles causa da decadência e do caos social. Não por acaso, observa Burke,¹¹ os românticos iniciarão a busca do popular na poesia, considerada divina, tesouro da vida e expressão de um tipo de vida peculiar que viria a ser designada como a Comunidade Orgânica, cujo protótipo é a vida camponesa e pastoral, além da coletividade dos bons selvagens (é interessante observar que Hegel, não por acaso também, considera a poesia inferior à prosa – à imediatez confusa da sensibilidade contrapõe a articulação mediatizada e a racionalidade da prosa).

    A visão do popular como povo comunitário e orgânico encontra uma de suas expressões mais acabadas nos irmãos Grimm, para quem o anonimato das obras culturais populares é essencial porque elas pertencem ao povo todo e porque o povo cria. Mais do que isso. Para eles, todo épico escreve-se a si mesmo, não é feito (não é artefato), mas, como as árvores, brota e cresce por si mesmo. Por esse motivo, os Grimm designarão a poesia popular como poesia natural. Na mesma perspectiva, românticos suecos, finlandeses, russos partem em busca da religião natural, anterior ao cristianismo romano e ao protestantismo e superior a eles. Mesmo no interior do cristianismo, um escritor como Chateaubriand dedicará um capítulo de Le génie du christianisme às manifestações antigas, aos ritos e festivais populares, às crenças e superstições, liberando-os do peso da crítica ilustrada. Esse retorno à religião popular explica ainda por que a Idade Média – comunitária, camponesa, pastoril, guerreira e mescla de crenças bárbaras locais e cristianismo nascente – funcionará no imaginário romântico num duplo registro, isto é, como origem perdida e como finalidade a resgatar contra o capitalismo.

    O estudo da poesia, das baladas, dos provérbios conduz ao da língua originária, e o da religião, dos costumes, dos ritos e festivais, ao do direito originário,¹² e, juntas, todas essas manifestações são vistas como constitutivas de uma totalidade orgânica – a Kultur der Volks (Cultura do Povo) que Herder opunha à Kultur der Gelehrten (Cultura dos Instruídos) –, tendo como origem o Volksgeist, o Espírito do Povo.

    O povo romântico – sensível, simples, iletrado, comunitário, instintivo, emotivo, irracional, puro, natural, enraizado na tradição – nasce de motivos estéticos, intelectuais e políticos. Esteticamente, é a resposta do Romantismo ao Classicismo, a revolta da natureza contra o artificial. Intelectualmente, é a resposta dos sentimentos contra o racionalismo ilustrado, a revolta da tradição contra o progresso das Luzes, do sobrenatural e do maravilhoso contra o desencantamento do mundo. Politicamente, é a reação contra o império napoleônico, a afirmação da identidade nacional contra o invasor estrangeiro: a cultura popular ou o popular na cultura torna-se alicerce dos nacionalismos emergentes. Um escritor finlandês dirá: Nenhuma pátria pode existir sem poesia popular. A poesia é o cristal onde a nacionalidade pode mirar-se; é o manancial de onde jorra o verdadeiro original da alma popular.¹³ Eis por que o nativismo será um traço de toda a literatura e arte românticas, chegando mesmo, no Brasil, a se constituir como movimento literário próprio.

    Com o Romantismo, delineiam-se os traços principais do que se tornou a cultura popular: primitivismo (isto é, a ideia de que a cultura popular é retomada e preservação de tradições que, sem o povo, teriam sido perdidas), comunitarismo (isto é, a criação popular nunca é individual, mas coletiva e anônima, pois é a manifestação espontânea da natureza e do Espírito do Povo) e purismo (isto é, o povo por excelência é o povo pré-capitalista, que não foi contaminado pelos hábitos da vida urbana – na Europa, foram os camponeses que, vivendo próximos da natureza e sem contato com estranhos, preservaram os costumes primitivos em sua pureza original; na América Latina, foram os índios, "raices de America"). Compreende-se, então, por que o Romantismo será fonte inesgotável dos populismos.

    Afirmando a bondade natural e a pureza sentimental do povo anônimo e orgânico, o Romantismo localiza a cultura popular: é guardiã da tradição, isto é, do passado. Paradoxalmente, porém, essa localização abre uma brecha para a perspectiva ilustrada. De fato, esta revela pouco ou nenhum interesse pelo passado (momento da selvageria, da ignorância, da irracionalidade e da barbárie), pois seu tempo próprio é o presente racional e o futuro progressivo (momento das Luzes, da razão na história, do cumprimento da civilização). Essa divisão dos tempos permite curiosa temporalidade, reunião do tempo romântico e do tempo ilustrado numa história única, homogênea e contínua na qual o passado (bom, para o romântico; mau, para o ilustrado) é o tempo do povo e do popular, enquanto o presente e o futuro (maus, para o romântico; bons, para o ilustrado) são o tempo do não popular, identificado com a razão.¹⁴

    É possível observar que nas discussões brasileiras – seja nos anos 1960, seja nos anos 1980 – a cultura popular oscila incessantemente entre um ponto de vista Romântico e um outro, ilustrado. Em certos casos, prevalece o segundo ponto de vista, em outros, o primeiro, porém, os casos mais interessantes são aqueles nos quais os dois pontos de vista tentam uma conciliação: a razão vai ao povo para educar sua sensibilidade tosca (eis o papel das vanguardas políticas), e o sentimento vai às elites para humanizá-las (eis o papel das vanguardas artísticas).

    Uma contribuição interessante, que poderia superar essa ambiguidade, é trazida pelo conceito gramsciano de hegemonia.¹⁵ Evidentemente, a perspectiva marxista se diferencia da romântica e da ilustrada porque seu conceito central não é o de povo-popular, mas o de luta de classes. Ou, se se quiser, seu ponto de vista é o do povo como plebe explorada, dominada e excluída. Entre a exploração econômica e a dominação política instala-se uma mediação fundamental que permite legitimar e naturalizar as duas primeiras. Essa mediação Marx designou com o nome de ideologia, produção da universalidade imaginária e da unidade ilusória numa sociedade que pressupõe, põe e repõe as divisões internas das classes. A novidade gramsciana consiste em considerar que o conceito de hegemonia inclui o

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