Clóvis Moura e o Brasil: Um ensaio crítico
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Sobre este e-book
Desde de Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas (1959) até o Dicionário da escravidão negra no Brasil (2004), Clóvis Moura construiu uma densa e vasta produção teórica que coloca as negras e negros como sujeitos ativos na dinâmica da sociedade brasileira.
Neste sentido, o texto de Márcio Farias é uma excelente contribuição para a introdução no pensamento moriano, trazendo interpretações singulares que evidenciam a relevância de Moura para pensar o Brasil e instigar a leitura de suas obras.
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Clóvis Moura e o Brasil - Marcio Farias
Ficha Técnica
copyright Editora Dandara, Márcio Farias, 2019
Direção Editorial: Joselicio Junior
Revisão: Ronaldo Vitor da Silva
Projeto gráfico, diagramação e capa: Batalha Comunicação
Editora Dandara
www.dandaraeditora.com.br
Farias, Marcio
Clovis Moura e o Brasil : um ensaio crítico / Marcio Farias. -- 1. ed. -- São Paulo : Editora Dandara, 2019.
ISBN 978-65-88586-02-0
1. Antropologia - Brasil - História 2. Ensaios - História e crítica 3. Moura, Clovis, 1925-2003 4. Sociologia - Brasil - História I. Título.
Índices para catálogo sistemático:
1. Sociologia política 306.2
Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - CRB-8/10014
Sumário
Prefácio
Introdução
1. Circunstâncias e Pensamento:
As bases e o entremeio para a obra de Clóvis Moura
2. Nem raça e nem cultura, o negro como sujeito político
3. Da crítica ao pensamento sobre a realidade à crítica sobre o movimento da realidade
4. A contradição elementar da formação nacional:
Negro, de bom escravo a mau cidadão
5. A batalha das ideias
6. Da sociologia do negro brasileiro à dialética radical de um Brasil negro
7. As obras tardias
8. Em suma, ou considerações parciais
Sobre o autor
Prefácio
Escrever a respeito da obra de um intelectual do porte de Clóvis Moura não é tarefa fácil, principalmente quando o objetivo não é recolher um conjunto de anedotas ou situações de percurso que, mesmo quando sistematizadas, informam pouco sobre uma trajetória intelectual. No caso de Moura, o intento se torna ainda mais dificultoso devido a pouca fortuna crítica devotada a sua obra, ainda que aquela que dispomos seja de boa qualidade. Portanto, já de entrada, é preciso registrar que o livro que o leitor tem em mãos não apenas cumpre com seu intuito mais imediato, como também inscreve um marco na produção sobre o historiador e sociólogo piauiense.
Clóvis Moura foi um intelectual substantivo, que desarmou o sentido metafísico do pensamento como apartado da realidade concreta. Pensador irrevogável, produziu ao longo da vida o que aprendemos a chamar de sociologia da práxis negra
, o que em outros termos quer dizer que a teoria e a práxis política jamais estiveram, em sua obra e em sua vida, dissociadas. Mas foi também um intérprete do Brasil, pois lidou com uma vasta tradição do pensamento social, rompendo com concepções amplamente arraigadas – como a democracia racial - que trataram mais de confundir do que explicar a realidade nacional. Daí sua fundamental importância para a compreensão do Brasil, a despeito de sua quase completa ausência nas fileiras universitárias que se dedicam ao estudo de nossa formação.
Este ensaio crítico de Márcio Farias cumpre, pela sua qualidade, o importante papel de impedir a perpetuação de certa situação de invisibilidade em relação à obra de Clóvis Moura. E faz isso recuperando o que de melhor há em nossa tradição ensaística, sem perder a responsabilidade com a análise séria e comprometida, função maior de um pesquisador. Aliás, em momentos de extremado desenvolvimento das forças produtivas capitalistas, que produzem novos tempos e racionalidades que parecem dificultar o surgimento e consolidação de novos intelectuais, ler este livro é um verdadeiro alento para almas revolucionárias; porque aqui vemos realizada a síntese do acúmulo de pensamento de um jovem, porém já indispensável intelectual do nosso tempo.
Ao se dedicar à obra de Clóvis Moura, Márcio Farias foge dos vícios de uma história intelectual que muitas vezes exagera o papel da biografia na explicação de determinada produção. O mérito deste livro está justamente no árduo exercício de compreender a obra de Clóvis Moura amparado no escrutínio das circunstâncias históricas e sociais nas quais foi formulada, daí sua base lukacsiana. Desse modo, o leitor encontrará uma introdução crítica a respeito do pensamento de Moura, mas também compreenderá melhor a complexa história de nosso país ao longo do século XX.
O primeiro capítulo recupera as bases e fundamentos de dois importantes debates. O primeiro, a respeito do papel das relações raciais e dos processos de racialização que fundamentam a modernidade. Por isso, não é estranho que sejamos apresentados, logo de início, à citação de Aimé Cesaire que abre a reflexão, relembrando o nexo histórico com o colonialismo. País formado no bojo do escravismo, que se constituiu numa relação de economia dependente, produtora de uma sociedade desigual e que combinou modernização com arcaísmos, o Brasil e, sobretudo, o Brasil de Clóvis Moura, não pode ser compreendido sem se levar em conta o papel central desempenhado pelas populações negras que o civilizaram.
O segundo debate, e essencial no livro, diz respeito às matrizes do nosso pensamento social e as diferentes formas como, desde o século XIX, nosso sentido histórico tem sido explicado. Clóvis Moura conta com o mérito de ter, já em 1959, quando publica Rebeliões na senzala, rompido com a chamada lenda da modernidade encantada
(como nomeia Marcelo Paixão, em obra homônima), que investiu, ainda que de diferentes formas, na suposta harmonia racial brasileira. Márcio Farias demonstra como a tríade modernista – Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Sergio Buarque de Holanda – revitalizou, em alguns casos, ou não discutiu devidamente, em outros, a visão oitocentista de suposta harmonia nas relações sociais da sociedade escravista brasileira. Mas também revela como a escola que pretendeu denunciar a democracia racial como mito acabou por produzir uma concepção igualmente incapaz de avaliar o significado da agência negra.
Tanto aqui como ali, Clóvis Moura compõe, desde o início de seu percurso intelectual, um pensamento que não capitula em evidenciar a centralidade da população negra na história brasileira, atentando para o dinamismo interno e conflituoso da relação senhor-escravo, assim como suas consequências no pós-abolição. O amálgama dessas interpretações está no desenvolvimento do materialismo histórico em suas explicações acerca dos processos centrais de nossa formação. Nesse ponto, a hipótese central de Farias é a unidade no pensamento de Moura, que enfraquece qualquer tentativa de se estabelecer uma ruptura epistemológica em sua produção.
Essa hipótese, embora bastante argumentada ao longo do livro, deixa algumas arestas. O método expositivo adotado no texto e, principalmente, sua fundamentada argumentação, de fato impedem que se estabeleça tal ruptura epistemológica na obra mouriania. Entretanto, revelam também, no conjunto da leitura, que o acabamento do materialismo histórico em Clóvis Moura se constrói no desenvolvimento de sua produção, sobretudo se levarmos em conta os saltos qualitativos em sua forma de desvelar o processo histórico brasileiro. Em outras palavras, Farias revela que o incremento da teoria social marxista em Clóvis Moura é processual e acumulativo, mas enfatiza pouco as rupturas quando dá preferência à unidade.
Assim, afirmações como "não temos em Rebeliões na Senzala as categorias mais vigorosas de sua interpretação nacional, questão relegada aos textos da década de 1980 (p. 51), ou as mudanças na forma com que Moura compreende a escravidão – ora como relação social de produção, ora como modo de produção - destacam aspectos de mutação no interior da obra. Mas em outras passagens, como a que dá continuidade ao mesmo parágrafo -
por outro lado, tudo que decorreu dali em diante tem nesse livro os aspectos elementares" -, acabam por recair numa interpretação que privilegia o olhar retrospectivo. Mas para ser justo, aponto que os capítulos seguintes realizam com sucesso o intuito de destacar as descontinuidades, ainda que a unidade esteja sempre no escopo da reflexão.
Por essas razões, chame-se pelo nome que for – biografia intelectual, estudo teórico, crítica metodológica – este livro também é do interesse daqueles que estudam a trajetória ou a obra de intelectuais. A escolha de Farias, ao estruturar os capítulos a partir da clivagem cronológica das publicações, e extraindo delas a substância dos debates em tela, possibilita ao leitor olhar para a trajetória pessoal, política e intelectual de Clóvis Moura simultaneamente, como numa espécie de trinóculo em que o observador encara o objeto observado através de diferentes angulações ao mesmo tempo.
O ponto alto do texto de Márcio Farias está no segundo capítulo, quando avalia o papel de Clóvis Moura nas contendas da historiografia da escravidão. Não apenas revela com maestria as linhas gerais do debate historiográfico em torno da escravidão, remontando suas principais matrizes intelectuais exógenas, como demonstra a forma pela qual Clóvis Moura produziu uma interpretação singular em relação ao tema. Isso porque Moura, ao mesmo tempo que contrapõe tanto uma historiografia conservadora, quanto outra progressista
de fundamento estruturalista – ambas incapazes de explicar a escravidão em seu cerne –, antecipou uma agenda historiográfica que teria pleno vigor apenas a partir de 1980.
Sendo uma das maiores historiografias do mundo, em variedade, quantidade e extensão, a historiografia da escravidão funda um corpus teórico de grande importância na produção de Clóvis Moura. Por um lado, porque o tema assume centralidade em seu pensamento sobre a realidade brasileira; por outro, porque seus principais interlocutores dentro e fora da universidade foram alguns dos clássicos dessa historiografia, com quem travou discussões caudalosas (vale dizer que a produção brasileira tem destaque mundial). Assim, Márcio Farias desfaz certa ideia atualmente em voga de que a escravidão não teria sido suficientemente estudada no Brasil, note-se que alguns dos defensores contemporâneos dessa teoria chegam a chamar os intelectuais brasileiros de tolos
... Sem entrar no mérito da discussão – este ensaio oferece boas respostas nesse quesito -, parece-me que esses autores hodiernos carecem de boas referências. Poderão encontrá-las aqui.
Márcio Farias é igualmente cuidadoso em sua análise da relação de Clóvis Moura com o Movimento Negro, o que segundo o autor ocorre, sobretudo, entre os anos 1970 e 1980. Mais do que apenas compreender Moura como um intelectual militante
, como muitas vezes o discurso acadêmico reitera (com a evidente tentativa de desqualificar sua produção), Farias destaca as afinidades de Moura com parte da agenda política do período, mas também seu posicionamento crítico em relação a outras agendas que lhe eram contemporâneas. Isso acaba por demonstrar que, embora comprometido com as pautas de seu tempo, Clóvis Moura não foi um intelectual de panfleto
. Pelo contrário, seu compromisso com o pensamento jamais seguiu os ventos (ou ondas) do momento.
Assim, quando voltamos o olhar para sua obra – que não desaparece de nossas vistas em nenhum momento do texto – vemos ao mesmo tempo o sentido de seu pensamento e o cipoal de imprevisibilidades que também o constitui. Esse é um feito analítico de difícil realização, pois faz emergir os significados ocultos e os projetos em disputa no interior de determinada produção intelectual e política. Manejando com destreza elementos de complexidade, Márcio Farias produz uma visão ao mesmo tempo panorâmica e meticulosa de um percurso intelectual marcado por uma vasta produção.
A relação de Clóvis Moura com a teoria social marxista, ou em outros termos, o peso do materialismo em sua produção, tem também bastante relevância na análise de Márcio Farias, particularmente a partir do terceiro capítulo. A história da recepção e interpretações do marxismo no Brasil, amplamente estudadas por autores como Evaristo de Moraes Filho, João Quartim de Moraes, Daniel Araão Reis, entre outros, ganha muito com