Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Nunca deixe de acreditar: Das ruas de São Paulo ao norte da Suécia
Nunca deixe de acreditar: Das ruas de São Paulo ao norte da Suécia
Nunca deixe de acreditar: Das ruas de São Paulo ao norte da Suécia
E-book323 páginas6 horas

Nunca deixe de acreditar: Das ruas de São Paulo ao norte da Suécia

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Em Nunca deixe de acreditar, Christina relata a história de sua vida como menina de rua no Brasil, da fome que passou, de como foi maltratada e da separação de sua mãe biológica e de seu país. Conta como foi crescer na Suécia com todos os choques culturais com os quais se deparou assim que chegou à pequena cidade localizada na região de Norrland. A autora revela sua experiência de sobrevivência, de como dois mundos totalmente diferentes contribuíram para a sua formação e de como lutou para unir as duas pessoas que tinha dentro de si mesma.
Uma história real sobre amor, tristeza, amizade e perdas. Um relato comovente, que faz com que o leitor reflita sobre como a empatia pelo próximo faz o mundo melhor. E como a falta dela faz ruir a dignidade humana.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de ago. de 2017
ISBN9788581638614
Nunca deixe de acreditar: Das ruas de São Paulo ao norte da Suécia

Relacionado a Nunca deixe de acreditar

Ebooks relacionados

Biografia e memórias para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Nunca deixe de acreditar

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Nunca deixe de acreditar - Christina Rickardsson

    SUMÁRIO

    Capa

    Sumário

    Folha de Rosto

    Folha de Créditos

    Dedicatória

    INTRODUÇÃO

    A VIAGEM COMEÇA

    A MENINA DA CAVERNA

    A MALA ESTÁ PRONTA

    UM MUNDO DESPROTEGIDO

    A CAMINHO DE UM NOVO MUNDO

    ALGUMAS CICATRIZES NUNCA DESAPARECEM

    PENSAMENTOS DISPERSOS

    CAMILE, A MINHA PRIMEIRA AMIGA

    No meio do lixo

    Por que o senhor nos maltrata tanto, Deus?

    O garoto Santos

    O AVIÃO POUSA COM SUAVIDADE

    A MINHA MELHOR AMIGA SALVA A MINHA VIDA

    LÁ EM CIMA, ENTRE AS NUVENS

    A HISTÓRIA DO POVO DAS NUVENS

    Crianças dão asas às palavras

    A FAVELA

    A luta fatal

    ANIVERSÁRIO NO BRASIL

    O ORFANATO

    O meu dia favorito é domingo

    Por que não posso me encontrar com mamãe?

    COM TRINTA CAIXAS DE CHOCOLATE NA BAGAGEM

    OITO ANOS DE IDADE E SOZINHA NO MUNDO

    O último dia no orfanato

    A VISITA AO ORFANATO

    SUÉCIA, O PAÍS ENCANTADO

    A NOTÍCIA QUE ESPEREI DURANTE VINTE E QUATRO ANOS

    O COTIDIANO EM VINDELN

    UM DIA NA FAVELA

    COM MAMÃE NA CIDADE DOS ANJOS

    A MINHA MÃE PETRONILIA

    APRENDENDO A RESPIRAR NOVAMENTE

    NO TOPO DO MUNDO

    DE VOLTA A NORRLAND

    EPÍLOGO

    UM GRANDE AGRADECIMENTO

    FOTOS

    COELHO GROWTH FOUNDATION

    NOTAS

    Christina Rickardsson

    Tradução

    Fernanda Sarmatz Åkesson

    © Christina Rickardsson, 2016

    Publicado originalmente por Bokförlaget Forum, Estocolmo, Suécia

    Publicado na língua portuguesa sob acordo com Bonnier Rights, Estocolmo, Suécia e Vikings of Brazil Agência Literária e de Tradução Ltda., São Paulo, Brasil.

    © 2017 Editora Novo Conceito

    Todos os direitos reservados

    Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação sem autorização por escrito da Editora.

    Versão digital – 2017

    Produção Editorial

    Equipe Novo Conceito

    Índices para catálogo sistemático:

    1. Biografia : Mulheres 920.72

    Rua Dr. Hugo Fortes, 1885

    Parque Industrial Lagoinha

    14095-260 – Ribeirão Preto – SP

    www.grupoeditorialnovoconceito.com.br

    Dedico este livro às três mulheres que fizeram toda a diferença na minha vida, que me mostraram a luz para que eu encontrasse o meu caminho na escuridão.

    Vocês me deram amor, para vencer o ódio.

    Vocês me ensinaram a rir, para que eu sempre encontrasse consolo.

    Vocês me concederam sabedoria todas as vezes em que me faltou discernimento.

    Durante o pouco tempo em que estivemos juntas, vocês me deram amor suficiente para que eu soubesse o verdadeiro significado da palavra amar.

    Este livro é dedicado a vocês, Petronilia Maria Coelho, Camile e Lili-Ann Rickardsson.

    Onde quer que vocês estejam, fiquem sabendo que sempre estarei com vocês.

    O livro também é dedicado a todas as crianças de rua do Brasil e do mundo. Vocês são fantásticas e merecem muito mais do que a sociedade lhes proporciona.

    INTRODUÇÃO

    Esta é a história do meu tempo no Brasil, dos choques culturais que vivenciei quando cheguei às florestas do norte da Suécia e da perda das pessoas que mais amei. É sobre as memórias da minha infância na mata, nas ruas de São Paulo, no ano que passei no orfanato e sobre o recomeço da minha vida na Suécia. Minhas memórias são difusas, mas as que guardei comigo são muito claras. Tomei muito cuidado para não perdê-las, recontando tudo a mim mesma, fazendo anotações, para tentar me lembrar da pessoa que eu era antes. Criei uma história, a minha história. Não lembro exatamente que idade eu tinha quando tudo aconteceu, nem por quanto tempo estive no mesmo lugar. Eu era uma menina de rua. Qual o significado do tempo para uma criança de rua? Por que nós deveríamos saber alguma coisa sobre isso? Não fazíamos parte da sociedade. Não existíamos em um mundo que não tinha tempo para nós, que não se importava se teríamos ou não uma educação, nem mesmo se estávamos vivos ou mortos.

    Você já teve que estar no topo de uma montanha, observar a floresta e a água, admirar toda a beleza do lugar à sua frente e ter vontade de gritar com todas as suas forças? Gritar até ficar sem ar, até a sua garganta arder e os pulmões queimarem? É um grito que limpa a alma. Um grito que lhe permite lamentar e aliviar tudo aquilo que você ocultou, toda a dor que guardou dentro de si, todas as vezes em que precisou se adaptar. Eu sempre soube que precisava me adaptar, primeiro às leis das ruas, depois às regras e decisões do orfanato e mais tarde a um novo ambiente, o sueco.

    Tenho duas pessoas em mim: uma é a Christina de Norrland e a outra é a Christiana do Brasil. Nem sempre foi uma tarefa fácil juntar essas duas. Fui até aquele topo de montanha algumas vezes, em uma tentativa desesperada de gritar e aliviar parte das minhas frustrações e tristezas. Abri a boca para gritar, mas não consegui, não emiti nenhum som.

    As páginas que você está lendo agora são o meu grito e as palavras escritas ampliam o que sinto, mas acima de tudo as páginas deste livro contêm a minha verdade e a minha história sobre a luta pela sobrevivência, sobre a coragem de retornar ao Brasil para procurar pela minha mãe biológica e para encontrar alegria na vida. É também sobre a infinitude do amor materno que aquece todo o meu coração.

    A VIAGEM COMEÇA

    Umeå, inverno de 2015

    Em um dia ensolarado, há três anos, acordei com medo; aliás, muito assustada é a palavra que define melhor o que senti. Eu estava com medo de viver. Tinha chegado à beira do abismo, ao meu limite. Uma pessoa pode chegar à beira do abismo em diferentes velocidades, seja correndo rápido, um pouco mais devagar ou apenas se jogando nele. Quanto mais rápido você chegar ao seu limite, mais dor sentirá e maior será o dano. É um cálculo simples, uma equação que funciona muito bem, infelizmente. Eu havia feito uma corrida de quatrocentos metros rasos diretamente para aquele ponto da vida.

    Como isso pôde acontecer? Se tivesse perguntado aos meus colegas de trabalho, chefes ou amigos, ninguém se surpreenderia. Eu trabalhava e estudava dia e noite. Na realidade, a minha vida estava um caos: a vida com a família, os relacionamentos, os amigos e comigo mesma. Por essa razão, eu me dedicava àquilo que podia controlar. Como se resolve algo como eu tenho medo de viver e minha vida é um caos? Seria medo de sentir e me machucar? Medo de que aqueles com quem me importo me deixassem ou morressem? Medo de que, se eu parasse para pensar, tudo desabasse? Medo de mim mesma?

    Estava tão cansada, exausta. Não aguentava, não queria nem pensar, pois os pensamentos só me angustiavam. Não suportava ser uma pessoa e sofrer tanto. Estava passando por algo que nunca havia experimentado antes. O meu corpo e o meu inconsciente tomaram conta de tudo e era como se a minha alma houvesse decidido que era a sua vez de me controlar. Então, vieram os pesadelos. Eu tinha sete anos e corria risco de morte, tive esse sonho diversas vezes. Queria ter sonhado apenas com um terrível monstro debaixo da cama, mas infelizmente era o que tinha acontecido na minha vida que voltava à minha memória. Eu estava sonhando com o que havia me acontecido quando ainda era criança.

    Cheguei à conclusão de que não conseguiria mais resolver os meus problemas sozinha. Entendia que tinha duas opções: desistir de tudo ou sair dessa fase da vida. Lembro-me bem de que fui até o banheiro e me contemplei no espelho. Olhei dentro dos meus olhos, observando além da superfície, enxerguei a dor dentro de mim mesma. Meus olhos se encheram de lágrimas ao perceber que aquela menina que correra para salvar a própria vida continuava a correr. Compreendi que precisava parar de correr de uma vez por todas, por mim mesma, e que deveria analisar tudo o que tinha me acontecido. Disse em voz alta para a minha imagem no espelho: Christina, você tem que parar de fugir, você não quer mais fugir. Não é assim que você quer viver. Pela primeira vez na minha vida, procurei ajuda de verdade.

    Agora estou acomodada no sofá do meu apartamento em Umeå, examinando todos os papéis que recebi do meu pai sobre a minha adoção e a do meu irmão. É uma grande quantidade de documentos e estão espalhados sobre a mesinha da sala. A metade está escrita em sueco e a outra metade está em português. Durante os vinte e quatro anos que esses documentos estiveram trancados no cofre do meu pai, nunca pedi a ele para olhá-los, não sentia essa necessidade, pois não haveria nada neles que eu já não soubesse ou que pudesse me contar mais alguma coisa sobre a minha vida no Brasil que eu não me lembrasse. Nunca senti necessidade de saber quem eu era, de onde vim ou por que fui abandonada. Sei quem sou, de onde venho e sei que não fui abandonada. Sequestro talvez seja uma palavra forte demais para ser o modo como nossa adoção foi feita, mas, às vezes, parece que foi assim que aconteceu.

    O meu irmão, Patrick, ou Patrique José Coelho, como era o seu verdadeiro nome dado pela nossa mãe biológica, era pequeno demais quando chegamos à Suécia para poder se lembrar da nossa vida antes. Foram raras as vezes em que falamos sobre aquele tempo com a nossa família sueca. Há muitas razões para isso, mas só conheço as minhas próprias. Sei que meu irmão tem apenas uma lembrança do seu tempo no Brasil, e é a que ele ficava dentro de uma caixa de papelão. Isso confirmei a ele, já que eu mesma costumava colocá-lo dentro de uma caixa para tentar fazê-lo dormir. O que é fascinante nas memórias é que algumas ficam guardadas, outras desaparecem para sempre e há aquelas que retornam. Eu tentei, mas não consigo me lembrar de quando a nossa mãe estava grávida de Patrick. Eu achava que uma criança se lembraria disso, que a barriga da mãe cresceria e que eu ganharia um irmão. Talvez não tenha guardado isso na memória por ter passado grande parte do tempo pelas ruas sem a nossa mãe por perto ou simplesmente me esqueci, não sei. Só sei que um dia Patrick apareceu na minha vida, meu irmãozinho, que amei desde o primeiro momento em que o vi. Lembro-me de como cuidava dele nas ruas, como o alimentava, trocava a sua fralda de pano e o fazia dormir de vez em quando. Ele era um bebê que dava pouco trabalho, não chorava nem gritava muito.

    Quando cheguei à Suécia tinha oito anos de idade e o meu irmão tinha um ano e dez meses. Temos a mesma mãe, mas pais diferentes. Nos documentos da adoção está escrito o nome do pai de Patrick, porém no meu documento há um espaço em branco. Queria saber se significa alguma coisa nunca saber quem foi o meu pai. Dizer que eu e Patrick somos meios-irmãos é estranho, talvez por eu não ter conhecido nem o meu pai nem o dele. A ausência dos nossos pais deve ter feito com que eu sempre visse Patrick como meu irmão de pai e de mãe. Talvez a nossa relação também tenha se fortalecido quando fomos adotados e ganhamos um novo pai e uma nova mãe. Formamos uma família, uma família sem laços de sangue, mas criada pelas circunstâncias, pelo acaso e, quem sabe, por algo inexplicável. De qualquer forma, formamos uma família e Patrick tem curiosidade em saber, por exemplo: de onde ele veio, quem são os seus pais biológicos e por que o abandonaram. Eu nunca tive essas curiosidades. Claro que já pensei em quem seria o meu pai biológico, mas nunca senti que fizesse grande diferença saber ou não quem ele era. Ele nunca esteve presente e isso acabou sendo natural para mim. Meu irmão e eu vivemos vidas diferentes. Enquanto ele, a princípio, só conheceu a vida sueca, eu tive a minha vida brasileira e a minha vida sueca. Qual de nós dois teve mais dificuldades ou mais facilidades? Dependendo do ponto de vista, não tem a menor importância. Nós, assim como muitas outras pessoas, tivemos a nossa dose de tristezas, dores, alegrias e felicidades de maneiras diferentes.

    Os sentimentos não são sempre fáceis de se entender ou lidar. Muitas vezes, os pensamentos não funcionam segundo a minha lógica e o meu raciocínio, e não bastam para conter a tempestade que frequentemente ocorre dentro de mim. Agora é uma dessas ocasiões, quando estou examinando todos esses papéis que contam a história da minha adoção e da do meu irmão.

    É fascinante ler sobre tudo o que os meus pais adotivos passaram antes que conseguissem nos adotar e, finalmente, levar para casa os filhos que eles tanto lutaram para ter. Por dez anos, tentaram ter filhos, até que acabaram optando pela adoção de uma criança entre um e três anos de idade. Todo o processo resultou em dois filhos. Há tantos papéis, documentos da justiça da Suécia, da assistência social, da justiça de São Paulo, recomendações dos amigos mais próximos e dos colegas de trabalho da minha mãe Lili-Ann e do meu pai Sture. Há cartas que Lili-Ann escreveu, e ler essas cartas me deixa feliz e triste ao mesmo tempo. Feliz por poder conhecer seus pensamentos e sentimentos, e triste por ela não estar mais aqui comigo. Queria muito que estivesse aqui agora, quando estou começando a minha busca para saber mais do meu passado. Sou uma mulher independente e adulta, mas tenho dúvidas se algum dia realmente deixei de ser aquela criança que precisa tanto dela. Com o passar dos anos, aprendi o que é sentir saudade. Sentir falta de alguém não é apenas contar quanto tempo faz desde a última vez em que se viu a pessoa ou as horas que passaram desde que se teve uma conversa. É mais que isso, são aqueles momentos especiais em que se deseja que a pessoa estivesse ali ao seu lado.

    Quando era adolescente, perguntei à minha mãe Lili-Ann como ela e o meu pai haviam reagido quando souberam que adotariam duas crianças. Lili-Ann me contou que esperaram muito tempo por uma carta confirmando que eles, finalmente, teriam filhos. Quando foi confirmado que estavam autorizados a adotar, ficaram sabendo que seriam pais de um casal de irmãos. A menina tinha oito anos e o menino quase dois anos. Lili-Ann me contou que, quando o nosso pai tomou conhecimento disso, foi para a floresta e ficou sem se comunicar com ninguém por dois dias. A nossa mãe aceitou imediatamente a adoção, mas ficou preocupada com o que Sture estava sentindo. Assim que ele voltou para casa e viu a preocupação dela, ele nada mais teve a dizer, a não ser que concordava com tudo. Sture costuma sorrir um pouco quando diz que se oferecessem cinco crianças ao mesmo tempo para Lili-Ann, ela aceitaria na mesma hora. Gosto muito de pensar que a nossa mãe, provavelmente, adotaria um time inteiro de futebol, se tivesse que escolher entre isso ou não adotar nenhuma criança. Ela me contou que não queria ser a culpada por separar um casal de irmãos e, se não aceitasse dessa vez, talvez nunca mais tivesse a oportunidade de ter filhos.

    Ao ler os documentos, sinto uma pontada no peito, pois lá há algo que eu não estava preparada para ler. Há muita coisa de que não me lembro, mas que a nossa mãe biológica tenha nos maltratado não é verdade. As pessoas foram malvadas conosco, no entanto, não tenho nenhuma lembrança da nossa mãe ter sido assim. Estávamos malcuidados, claro. Segundo o padrão sueco, todas as crianças de rua são maltratadas, tenham elas bons pais ou não. Mas o que provoca a minha reação é o que está escrito mais adiante na carta, que a nossa mãe era louca da cabeça. Gostaria de nunca ter pronunciado essas palavras, porém sei que fiz isso. Eu disse a eles o que esperavam que eu dissesse. Nunca achei que a minha mãe fosse diferente das outras, mas quem sabe, talvez ela fosse mesmo. Quando se é criança é muito difícil julgar uma coisa dessas. O que sei é que eu a amava e ainda a amo e me dói ler o que escreveram, porque sei o que passamos juntas. Queria ver quem não ficaria louco se fosse obrigado a lutar para sobreviver a todo momento.

    Deixo de lado os documentos da adoção e examino um amontoado de recibos, passagens aéreas e contas de hotéis que Lili-Ann guardou da época em que foi ao Brasil nos buscar. Fico procurando por pistas que me levem de volta ao orfanato, à minha mãe biológica e aos lugares onde morei. É como procurar por uma agulha no palheiro. Vou traduzindo um recibo após o outro: da farmácia onde os meus pais adotivos compraram leite para o meu irmão, das lojas onde nos compraram roupas e dos restaurantes, mas nenhum me leva aonde quero. São Paulo é uma cidade imensa, com milhões de habitantes, e conta com muitas favelas. Parece ser impossível descobrir em qual favela nós morávamos. Entre todos esses recibos, encontro uma folha branca, que está um pouco amassada e dobrada ao meio. Desdobro o papel e, no canto esquerdo, vejo o carimbo da justiça de São Paulo. Observo que está escrito em letra cursiva e reconheço a letra de Lili-Ann. Ela havia escrito algumas palavras sobre mim: Christina não quer viver assim.

    Eu tinha demonstrado isso? Fico pensando que talvez tenham dito isso para Lili-Ann e Sture e para a minha mãe biológica, Petronilia, também. Sinto uma angústia no peito. Depois de tudo que a minha mãe biológica e eu havíamos passado juntas, depois de todo o amor que ela tinha me dado, as autoridades brasileiras haviam dito para ela que eu tinha decidido deixá-la, quando eu me sentia totalmente sem poder de decisão.

    Quando termino de ler, sinto que preciso tentar encontrar a minha mãe biológica. Quero dar a ela o direito de contar a minha verdade, como eu me lembro que era, como tenho na memória o nosso tempo juntas e todo o amor que sentíamos uma pela outra, em uma época que parece pertencer a um outro mundo, um outro universo. Há uma grande diferença em não cuidar de seus próprios filhos e viver em uma sociedade que não proporciona recursos necessários para os seus cidadãos, fazendo com que eles não possam tomar conta dos próprios filhos.

    Telefono para a justiça sueca e peço para que me enviem todos os documentos relativos à minha adoção e à do meu irmão. A mulher com quem falo ao telefone diz que fará tudo o que for possível. Três dias depois, recebo um envelope na minha caixa de correspondências, acompanhado de um bilhete que diz: Boa sorte na sua viagem, Christina!.

    A MENINA DA CAVERNA

    Brasil, anos 1980

    Segundo a minha certidão de nascimento brasileira, eu nasci no dia 30 de abril de 1983. Ao mesmo tempo que o Rei Carlos Gustavo XVI comemorava seu trigésimo sétimo aniversário, eu respirava pela primeira vez em Diamantina, do outro lado do Oceano Atlântico, no Brasil. Quando eu era pequena, mamãe costumava me contar que eu tinha nascido na floresta, que meu pai era um índio e, portanto, eu era meio indígena. Se isso é verdade, não sei. Se ela fazia isso para melhorar a história, deixando-a mais bonita, em vez de dizer que não sabia quem era o meu pai, ou que ele não queria nada conosco, eu não sei, mas sempre gostei da versão dela e durante muitos anos acreditei que fosse assim. Ainda há uma parte de mim que quer acreditar que tudo seja verdade. O que me lembro é que passei os meus primeiros anos de vida nas florestas e cavernas de Diamantina com a minha mãe.

    Apesar de ser muito pequena quando vivíamos nas cavernas, guardo muitas lembranças do nosso tempo juntas lá. Lembro que morávamos em duas cavernas. Uma delas ficava próxima a uma estrada de terra vermelha e a outra era mais para dentro da floresta. A minha mãe costumava trançar as folhas das palmeiras, que serviam para proteger a entrada da caverna ou como colchão para dormir. Eu ficava sentada ao seu lado, observando como os dedos dela trabalhavam com as folhas, até que elas se transformassem em mais uma porta. Achava que minha mãe era muito habilidosa e fazia de tudo para aprender com ela.

    Escondíamos a nossa machete em um buraco na parede da caverna e colocávamos uma pedra, cobrindo o orifício, para impedir que animais venenosos entrassem ali. Nem a minha mãe nem eu queríamos levar alguma mordida quando colocávamos a mão no buraco para apanhar a machete, que era o nosso bem mais precioso, sem ela ficaríamos desprotegidas. Mamãe usava a machete como arma e com ela também arranjávamos comida, além de usá-la para abrir caminho na mata fechada, quebrar nozes e cortar vegetais comestíveis. Nossa vida dependia da machete.

    Eu me lembro de ter um tatu e um macaquinho como animais de estimação em casa. Em casa talvez seja errado dizer, pois não tínhamos nenhuma casa. O tatu ficava lá contra a sua vontade e o macaco ia e vinha quando queria. A minha relação com ele era tudo, menos amizade recíproca. Ele me usava para conseguir comida e podia jogar pedras, nozes e tudo o que encontrava em mim. Quando ficava satisfeito, desaparecia dali. Mamãe dizia que ele era como um homem, o que eu não entendia naquela época. Não era lógico para mim, pois um macaco era um macaco e um homem era um homem. Quando eu perguntava por que fazia a comparação, ela apenas ria de mim. Uma vez, eu estava alimentando o macaco e o tatu ao mesmo tempo. O macaco pegou a sua fruta sem agradecer, desaparecendo tão rápido quanto tinha aparecido. Não sei se foi impressão minha, mas achei que o tatu tinha olhado para o macaco e pensado assim: Seu macaco sortudo, corra enquanto pode!. Olhei para o tatu com reprovação, como se dissesse que aquilo não era legal e já ia apanhá-lo, quando ele se enrolou como uma bola dura no chão.

    Mamãe dizia que podíamos comer o tatu se ele estivesse insatisfeito demais com a sua vida. Quando ela via a minha reação, ria muito e dizia que estava só brincando, mas, se eu mudasse de ideia, poderíamos fazer um cozido dele. Nunca entendia qual era a graça e sempre ficava zangada quando a minha mãe fazia esse tipo de comentário. Eu adorava comer carne, mas não havia entendido que a carne vinha de algum animal. Mais tarde, quando percebi o que era carne, me neguei a comer como forma de protesto. O protesto não durou por muito tempo, pois éramos pobres e a fome falava mais alto. Porém o meu tatu não era para ser comido. Eu costumava alimentá-lo com insetos, pois não considerava que insetos fossem animais. Uma vez fiquei tão zangada com o tatu, que lhe dei um chute descalça quando ele tinha se enrolado como uma bola. Esse erro só cometi uma vez, pois senti muita dor no pé, já que o casco dele era tão duro quanto uma pedra.

    Aprendi com a minha mãe quais plantas podia comer, quais frutas ou frutos eram venenosos e como fazer fogo. Ela me ensinou quais os animais eram os mais perigosos e quais os menos perigosos. Mesmo assim, esses ensinamentos não impediram que uma criança curiosa como eu acabasse sempre tendo problemas. Uma vez colhi umas frutinhas de um grande arbusto. As frutas eram amarelas e quase do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Minha mãe já

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1