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Uma visão cética do mundo: Porchat e a filosofia
Uma visão cética do mundo: Porchat e a filosofia
Uma visão cética do mundo: Porchat e a filosofia
E-book647 páginas8 horas

Uma visão cética do mundo: Porchat e a filosofia

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Sobre este e-book

Oswaldo Porchat (1933-2017) foi um dos filósofos brasileiros mais importantes. Professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fundador do Centro de Lógica e Epistemologia (CLE-Unicamp), foi um pensador profundo e irrequieto: adaptou o estruturalismo francês a nosso contexto, mergulhou no silêncio da não filosofia, aderiu à filosofia da visão comum do mundo e, finalmente, rendeu-se ao ceticismo, pelo qual se sentira atraído e ao qual tinha resistido por longo tempo. Explica essa fecundidade o fato de que, a seu ver, filosofia e espírito crítico não se dissociam, não havendo verdadeiro espírito crítico se este não for aplicado às próprias ideias. Quando se pensam dessa maneira os temas da verdade, do conhecimento e da razão, difícil é não terminar como cético. Quais ideias resistem ao poder corrosivo da razão crítica? O ceticismo de Porchat, entretanto, está muito distante da imagem desoladora que usualmente se tem dessa corrente filosófica. É antes uma original e refinada atualização do pirronismo antigo à luz da filosofia contemporânea, ousadamente propondo a elaboração de uma visão cética do mundo. Organizado em duas partes, este livro retoma todas essas mudanças pelas quais passou o pensamento de Porchat, ao traçar um quadro detalhado das suas diferentes fases e examinar suas opiniões sobre temas centrais da filosofia. Uma das originalidades desta obra é interpretar o pensamento de Oswaldo Porchat com a mesma atenção e o mesmo cuidado com que outros livros se dedicam a filósofos de outros países, contribuindo para aprofundar o debate filosófico no Brasil, sem perder de vista o estudante que se inicia na leitura da obra desse notável pensador.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de abr. de 2018
ISBN9788595461253
Uma visão cética do mundo: Porchat e a filosofia

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    Uma visão cética do mundo - Plínio Junqueira Smith

    metafilosofia.

    Parte I

    Fases

    1

    O silêncio da não filosofia

    · • ·

    Um texto fundamental

    O único texto da primeira fase é O conflito das filosofias (Porchat Pereira, 1969).¹ Após proferir uma aula inaugural, em março de 1968, e publicá-la, lançando, por assim dizer, a pedra fundamental de sua trajetória filosófica, Porchat silenciou a respeito da filosofia e nada mais escreveu por vários anos, até mudar seu pensamento, em meados dos anos 1970. Longe de denunciar uma pobreza teórica, como se as ideias contidas nesse artigo não merecessem ou não permitissem desenvolvimento posterior, esse silêncio é antes o testemunho de sua inflexível coerência e a consequência inevitável do estruturalismo que havia sustentado quando fez sua tese sobre Aristóteles. Como exige o filosofar sério, Porchat extrai as conclusões a que suas concepções levam, sem medo de que possam parecer absurdas ou sem sentido. Não se trata somente de uma coerência meramente teórica, mas também de uma coerência prática, pois implica uma atitude a ser adotada na vida. Assim como, após dizer no Tractatus Logico-Philosophicus (Wittgenstein, 1984a, aforismo 7, p.85) que sobre o que não se pode falar, deve-se calar, Wittgenstein abandonou a filosofia, tornando-se professor infantil e jardineiro, também Porchat consistentemente pôs a filosofia de lado e foi fazer outra coisa.² Entender por que ele se calou sobre a filosofia é entender o essencial da primeira fase de seu pensamento.

    Ao longo de toda a sua carreira filosófica, Porchat dialogará constantemente com esse artigo. Às vezes, passagens importantes serão longamente citadas. Mas, em geral, o filósofo resume muitos pontos, seja para evitar repetições desnecessárias, remetendo o leitor à discussão original, seja para criticar uma tese nele defendida, caso tenha mudado sua opinião. A ideia mesma de um conflito das filosofias parece atravessar todas as suas fases, de modo que, sem uma boa compreensão desse artigo, não se poderão entender adequadamente as fases posteriores. Por essas razões, procurarei fazer uma leitura cuidadosa e minuciosa do texto.

    O artigo tem uma estrutura simples. O primeiro item apresenta os predecessores do problema que Porchat pretende abordar e que dá nome ao artigo: o conflito das filosofias. Trata-se de um item puramente histórico, anterior à reflexão pessoal. Esta, por sua vez, divide-se claramente em três partes. No item 2, Porchat expõe o problema do conflito das filosofias não como ele foi formulado historicamente entre os gregos antigos, mas como se apresenta para os homens do século XX (CF, p.16), em particular como ele, Porchat, concebe esse problema. Os itens 3 e 4 dedicam-se a mostrar que o conflito das filosofias é indecidível. O último item extrai a consequência das considerações anteriores, a saber, a recusa de todas as filosofias.³

    A história do conflito das filosofias

    Porchat abre sua reflexão com a citação de uma passagem famosa de Protágoras. É, assim, sob a égide da sofística, que ele inaugura seu pensamento. Eis as palavras de Protágoras: "Eu afirmo que a Verdade é tal como escrevi: cada um de nós é medida das coisas que são e das que não são, de mil modos entretanto um do outro diferindo, por isso mesmo que, para um, umas coisas são e parecem, mas outras, para outros (cf. Platão, Teeteto 166d)" (ibidem, p.13). Embora sucinta, essa passagem, que apresenta a teoria protagórica do homem medida, contém três lições importantes, as quais convém comentar minuciosamente.

    Primeiro, a teoria do homem medida chamaria a atenção para um conflito entre as opiniões humanas, para sua diversidade irredutível. Protágoras não teria se limitado somente às opiniões filosóficas, mas teria incluído todas as opiniões humanas nesse imenso conflito.

    Protágoras não visava especificamente as oposições e divergências que dividiam o pensamento filosófico anterior ou contemporâneo; conforme a sua doutrina, ao contrário, tal diferença de perspectivas sobre a verdade e o saber não configuraria mais do que um caso particular da infinda e irredutível diversidade das opiniões humanas. (ibidem)

    A primeira lição, portanto, é que há uma infindável pluralidade de opiniões entre os homens, que jamais se põem de acordo sobre assunto nenhum.

    Segundo, Protágoras aboliria a distinção filosófica entre verdade e opinião, já que não haveria uma verdade absoluta, como pretenderiam filósofos como Parmênides, mas somente as verdades particulares de cada um. Também se rejeitaria a tese de Heráclito, segundo a qual haveria um saber comum, uma verdade divina que poderia ser descoberta pelos homens. Tornava-se Protágoras o pioneiro de uma luta secular e inglória que oporia uns poucos pensadores à extensa galeria dos metafísicos de todos os tempos, cujo traço fundamental de união talvez possa dizer-se o comungarem, de alguma maneira, da crença grega na divindade da razão especulativa (ibidem, p.14). A segunda lição, portanto, é que não existe uma verdade absoluta que seja a mesma para todos os homens, mas que só encontramos verdades relativas a cada um de nós.

    Terceiro, e mais importante de tudo, Protágoras teria feito uma descoberta importantíssima, que "seria a contribuição fundamental da sofística para a filosofia, a saber: a descoberta de que se pode provar tudo que se quer, de que todas as teses se podem demonstrar, se se domina de modo adequado e conveniente a técnica da argumentação (ibidem, grifo do autor). E, na esteira de Protágoras, Górgias não pretenderá dizer outra coisa, ao proclamar, no famoso Elogio de Helena, que ‘o Lógos é um grande senhor’" (ibidem). A terceira lição, portanto, diz respeito à capacidade argumentativa dos homens: é sempre possível defender convincentemente uma opinião, isto é, sustentá-la de maneira persuasiva com raciocínios e com argumentos.

    Embora, de um modo geral, os filósofos, dos gregos em diante, tenham ridicularizado a sofística e pretendido descobrir a verdade divina sobre as coisas, para além da mera opinião dos homens comuns e mortais, um pequeno grupo de filósofos retomou à sua maneira cada uma dessas lições de Protágoras. É interessante notar que os céticos deram contornos próprios a cada uma dessas lições protagóricas, fazendo de sua lição fundamental (a terceira) o princípio básico do ceticismo.

    Os céticos gregos, na esteira do grande sofista, cedo constataram, a propósito de cada objeto e de cada questão investigada, que proposições conflitantes e incompatíveis se lhes propunham à aceitação (ibidem, p.15). Por isso mesmo, denunciaram o conflito insuperável das filosofias dogmáticas (ibidem). Eles se depararam com dois grandes sistemas filosóficos, o estoico e o epicurista, mas também com as filosofias legadas por Platão, Aristóteles e muitos outros, que estavam em desacordo sobre todos os temas de que a filosofia tratava. Cada uma dessas filosofias tinha a pretensão de representar a verdadeira solução dos problemas do ser e do conhecer, a edição nova e definitiva da realidade (ibidem). É exatamente essa pretensão comum às filosofias criticadas pelos céticos que as torna dogmáticas.

    Note-se, portanto, uma primeira diferença entre Protágoras e os céticos antigos. Enquanto o primeiro constatava o conflito de todas as opiniões humanas, filosóficas ou não, os últimos ressaltavam, sobretudo, o conflito das opiniões filosóficas e, mais especificamente ainda, somente as opiniões filosóficas dogmáticas. Assim, os filósofos céticos não denunciavam sequer a filosofia como um todo, mas somente um tipo específico, embora talvez o tipo mais importante e mais difundido de filosofia, a filosofia dogmática. Afinal, diferentemente dos sofistas, que floresceram na aurora da filosofia e foram por esta duramente criticados, os céticos se consideravam filósofos. Os principais céticos da Nova Academia, Arcesilau e Carnéades, foram, eles próprios, chefes da Academia fundada por Platão, e os céticos pirrônicos se diziam igualmente filósofos. Como reconhece Porchat, "os filósofos céticos tinham-se lançado, como os outros, à busca de um discernimento definitivo entre o verdadeiro e o falso" (ibidem, grifo nosso).

    Os filósofos céticos continuaram a seguir os ensinamentos de Protágoras, já que, a respeito dessas controvérsias todas entre os filósofos dogmáticos, eles reconheciam que proposições conflitantes e incompatíveis se lhes propunham à aceitação com igual força persuasiva, tornando-lhes impossível uma opção fundamentada (ibidem). Não seria essa a segunda lição de Protágoras? Não teria Protágoras nos ensinado que não podemos descobrir uma verdade divina sobre as coisas e que o máximo que podemos ter são opiniões conflitantes que cada um tem a respeito dos assuntos sobre os quais se debruça? Nenhuma opinião particular se impõe como uma verdade absoluta para todos, eis uma lição retida pelos céticos. De acordo com Sexto Empírico, a Nova Academia teria sustentado que a Verdade é inapreensível (ibidem). Assim, os céticos antigos certamente alinharam-se a Protágoras nesse combate à pretensão dos homens e, sobretudo, dos filósofos dogmáticos de descobrir uma verdade absoluta.

    Os céticos, contudo, mais uma vez adaptam uma lição protagórica à sua própria concepção. Os céticos pirrônicos, sem afirmar temerariamente que a verdade é inapreensível, como teriam feito os acadêmicos, também não chegam ao ponto de dizer que cada um tem a sua verdade particular, nem entendem que se pode afirmar essa posição relativista como uma verdade, como fez Protágoras, mas somente suspendem o juízo. Ora, a suspensão cética do juízo equivale a não emitir nenhum juízo, a não afirmar nem negar nada sobre a realidade das coisas. Assim, os céticos não afirmariam, como o fez Protágoras, que cada um de nós é medida das coisas; tampouco diriam o contrário, que cada um de nós não é medida das coisas; em suma, eles não afirmariam nem negariam a frase O homem é a medida das coisas. Tampouco proclamariam algo como a Verdade é tal como a escrevi. Assim como não afirmam nem negam nenhuma teoria filosófica, os céticos também não afirmam nem negam a teoria do homem medida de Protágoras. Para os céticos pirrônicos, a teoria do homem medida, ao afirmar uma tese dogmática, vai além do que se poderia afirmar em face dos conflitos filosóficos. Noutras palavras, a teoria protagórica seria tão dogmática quanto as demais filosofias e também integraria o conflito das opiniões ou das filosofias dogmáticas. Num certo sentido, portanto, a teoria do homem medida estaria em desacordo com a denúncia dos eternos e insuperáveis conflitos de opinião feita pelo próprio Protágoras. Segundo Porchat, a suspensão do juízo não é mais do que o corolário natural dessa experiência sempre renovada com sucesso (ibidem) de opor teses e argumentos de igual força persuasiva. Os céticos, mantendo a crítica à pretensão de uma verdade absoluta, substituem a teoria do homem medida pela suspensão do juízo, evitando tomar parte do conflito.

    E o ceticismo antigo transformou a grande descoberta de Protágoras em seu princípio fundamental, que consiste em descobrir e contrapor, a cada proposição e argumento, o argumento e a proposição que os neutralizam (ibidem). No entender de Porchat, os filósofos céticos não somente retomaram, mas fizeram um uso mais amplo da contribuição fundamental da sofística para a filosofia, foram os filósofos céticos que trouxeram para a filosofia a lição mais importante da sofística.⁴ Os céticos contariam com uma vantagem em relação a Protágoras, pois, enquanto este ainda estava na aurora da filosofia grega, aqueles dispunham de séculos de intensa controvérsia entre os filósofos: A história do pensamento antigo lhe fornecia [ao ceticismo] um campo mais do que adequado para a ‘experimentação’ do caráter ‘indecidível’ do discurso filosófico (ibidem). E os céticos se dedicaram a explorar todo o material legado por essa já longa história, em que os filósofos dogmáticos argumentam uns contra os outros, opondo suas teses e jamais chegando a um acordo. Assim, o ceticismo leva a cabo uma aplicação radical e sistemática da descoberta protagórica da ambiguidade e indefinibilidade irredutível da argumentação e discurso (ibidem). Talvez por isso mesmo, os céticos, diferentemente de Protágoras, tenham se dedicado a explorar o conflito das filosofias dogmáticas, e não tanto o conflito das opiniões humanas.

    Em suma, ao mesmo tempo que claramente retomam as lições de Protágoras, dando-lhes continuidade, os céticos introduzem, como vimos, algumas modificações. Com relação à primeira lição, a da diversidade do conflito, os filósofos céticos a teriam limitado ao conflito das filosofias dogmáticas, o que Protágoras não teria feito (porque a própria filosofia dogmática não estava plenamente constituída). Como dirá muito tempo depois, o conflito se dá entre as filosofias dogmáticas porque o ceticismo antigo não conheceu outras filosofias que não filosofias dogmáticas, representadas sobretudo pelos grandes sistemas clássicos e helenísticos (CA, p.150). No que diz respeito à segunda lição, os filósofos céticos teriam sido pelo menos mais prudentes do que Protágoras ao não afirmar o relativismo das opiniões como uma verdade e teriam de maneira mais coerente suspendido o juízo sobre todas as filosofias, inclusive sobre a doutrina do homem medida. Finalmente, a terceira lição é ampliada no que diz respeito à sua aplicação radical e sistemática à filosofia, já que os céticos se situam num momento posterior em que a filosofia dogmática lhe fornece material abundante para explorar todo o potencial do princípio de Protágoras.

    As formulações do problema e os seus contextos históricos

    Um dos méritos da história do problema a ser discutido por Porchat é revelar que não há uma única formulação do problema do conflito das filosofias. Como vimos, a descrição dessa história do conflito nos mostra ao menos duas formulações já na Antiguidade: a formulação de Protágoras, no surgimento da filosofia, e a formulação dos filósofos céticos, num momento muito posterior, quando a filosofia já está plenamente desenvolvida. Em contextos históricos tão diferentes, é natural que cada formulação do problema tenha suas características próprias. Por exemplo, sendo a filosofia ainda uma forma incipiente de reflexão, não surpreende que Protágoras, preferindo explorar os conflitos entre as opiniões em geral, não lhe atribua um lugar especial, como ocorre com os céticos. Os céticos, por sua vez, percebem que as opiniões comuns também são controversas, mas não lhe atribuem lugar especial, dedicando-se a aplicar o princípio de Protágoras quase que exclusivamente ao domínio filosófico.

    Porchat se mostra bastante consciente de que a situação histórica é não somente relevante, mas é mesmo fundamental para a formulação exata do problema. A formulação do conflito para nós, homens do século XX (CF, p.16), não pode ser, e não será, igual a nenhuma das duas formulações do pensamento antigo. Afinal, muitos séculos se passaram desde que aquele filósofo-médico grego [Sexto Empírico] arremeteu contra a especulação dogmática e redigiu a Suma do ceticismo antigo (ibidem). Há toda uma longa história que deve ser levada em conta, uma história diferente daquela à disposição do cético antigo, e também há, no século XX, uma descrição ou concepção da filosofia que permitirá dar uma formulação particular e contemporânea ao conflito. Assim como o fato de que Protágoras estava no começo da filosofia e os céticos estavam no fim de seu período antigo, ou no meio dele em relação a nossa época, leva a formulações próprias a cada um desses contextos, também o fato de Porchat estar no século XX obriga-o a pensar o problema de outra perspectiva. Vejamos com cuidado, agora, qual é essa outra perspectiva.

    Embora, num certo sentido, Porchat esteja mais próximo de Sexto do que de Protágoras, pois, como o primeiro e diferentemente do segundo, dispõe de uma longa história da filosofia diante de si, noutro sentido ele está bastante longe de Sexto. Afinal, a história da filosofia até Sexto era bem menor e, certamente, bem diferente da história até Porchat. Para começar, entre eles está o pensamento cristão. É possível que um filósofo grego pudesse talvez pretender que a tradição antidogmática se opunha como um forte contrapeso à tradição filosófica dogmática, isto é, que o ceticismo acadêmico e o ceticismo pirrônico, junto com a sofística, com os médicos empíricos e metódicos⁵ e com outras filosofias que lhes eram aparentadas (como a dos cirenaicos) fossem ainda fortes o bastante para fazer frente ao esquadrão dogmático. Por isso, Sexto podia falar de somente três tipos principais de filosofias: o pirronismo, a filosofia acadêmica e o dogmatismo. Passados quase 2 mil anos, entretanto, não se poderia mais ter essa ilusão. De acordo com Porchat, para os homens do século XX, essa história é, precípua e essencialmente, a história das filosofias dogmáticas (ibidem), porquanto a sofística e o ceticismo teriam desempenhado somente um papel secundário ao longo dos séculos. Não caberia mais falar de um embate entre céticos e dogmáticos, se estes últimos teriam triunfado historicamente. E, dado esse triunfo, caberia agora refletir sobre essa sucessão histórica de filosofias dogmáticas ou, mais especificamente, do conflito permanente entre essas filosofias dogmáticas. O desfile das filosofias dogmáticas ao longo de mais de 2 mil anos será a matéria-prima da qual se nutrirá a elaboração porchatiana do problema do conflito das filosofias. Essa é uma das características principais da perspectiva que adota o pensador do século XX.

    Além disso, devem-se distinguir cuidadosamente dois tipos de conflito. Há, de um lado, o conflito mais genérico entre o ceticismo e o dogmatismo⁶ e, de outro, o conflito mais específico das filosofias dogmáticas.⁷ Esses dois tipos de conflito são reconhecidos tanto por Sexto como por Porchat. Para ambos, o ceticismo pirrônico participa do primeiro tipo, mas não participa do segundo. No entanto, há uma primeira diferença a respeito do tipo de conflito sobre o qual se insiste. Os céticos pirrônicos, por meio da diaphonía, ou desacordo, mostrariam o caráter infindável das controvérsias entre os filósofos dogmáticos e, dessa maneira, pretendem que a filosofia cética triunfaria sobre todo o conjunto das filosofias dogmáticas. Por isso, Sexto se mostra mais interessado em explorar o segundo tipo de conflito para mostrar a superioridade do cético no primeiro tipo de conflito. Quando fala de conflito, Sexto comumente pensa apenas no conflito entre os dogmáticos.

    Porchat pensa de forma um pouco diferente. Embora reconheça que os dogmáticos triunfaram historicamente,⁸ ele insiste no tipo de conflito que engloba os céticos pirrônicos. O grande conflito, do ponto de vista histórico, se daria entre as filosofias dogmáticas, mas o conflito das filosofias no qual ele, Porchat, insiste é o que envolve todas as filosofias. Disso decorre uma segunda diferença, talvez a mais importante. Enquanto o cético pirrônico julga que só há igualdade de forças entre as filosofias dogmáticas, isto é, no primeiro tipo de conflito, e que, quanto ao segundo tipo de conflito, o ceticismo é superior ao dogmatismo, Porchat julga que a igualdade de forças ocorre nos dois tipos de conflitos. Essa é, portanto, uma diferença substancial entre ele e os céticos antigos. Ao tratar do conflito das filosofias em geral, Porchat, ao contrário dos céticos, não admite nenhuma superioridade do ceticismo sobre o dogmatismo.

    Associada a esta última, há outra diferença importante entre Sexto e Porchat. Enquanto Sexto conheceu somente filosofias dogmáticas (cf. CA, p.150), Porchat conheceu outros tipos de filosofia. Assim, o que para Sexto era somente um conflito entre as filosofias dogmáticas se transformará, nas mãos de Porchat, num conflito entre todos os tipos de filosofia, não somente as dogmáticas. Apenas a posição histórica vantajosa de Porchat lhe permite introduzir essa modificação, pois ele pode conhecer formas de filosofia desconhecidas para os céticos gregos. Consequentemente, ele incluirá os próprios filósofos céticos nesse imenso conflito que abarca toda e qualquer filosofia. Teríamos, assim, três versões do conflito: 1) a de Protágoras, que é um conflito das opiniões humanas; 2) a dos céticos pirrônicos, que é um conflito das filosofias dogmáticas; 3) a de Porchat, que é um conflito das filosofias, de todas as filosofias, inclusive a cética. Mas não nos precipitemos. É preciso examinar cuidadosamente como Porchat elabora essa nova versão do conflito, pois ela é muito mais complexa e difícil do que pode parecer à primeira vista, exigindo uma leitura paciente e detalhada de seu artigo.

    As duas definições de filosofia

    Para formular sua versão do conflito, que é a do conflito das filosofias, Porchat parte de uma descrição neutra da filosofia, isto é, do exterior e anteriormente a qualquer opção de natureza filosófica (CF, p.16). Contemplando a longa história da filosofia, ele dá uma primeira definição de filosofia, ao dizer que

    [...] a filosofia se nos oferece como uma pluralidade de sistemas, concepções e atitudes que se sucedem no tempo histórico com diferentes graus e matizes de interpenetração, sem nenhuma unidade de método ou de temática e sem outro liame além de uma generalidade comum de intenção, conceitualmente indeterminável, e da comum pretensão, fundamentada em análoga confiança nos discursos de que se servem e na razão que os ordena, de corresponder de modo exclusivo e pertinente à significação, definida cada vez como unívoca, do nome comum que as designa. (ibidem)

    Para entendermos essa longa e obscura definição da filosofia, é preciso analisá-la com calma e detidamente. Primeiro, a perspectiva de Porchat é a do espectador que, sem ter uma filosofia própria, interessa-se pela filosofia. Trata-se de examinar de fora da filosofia aquilo que ela nos apresenta. Se esse espectador virá a ter uma concepção do que é a filosofia, essa concepção deverá ser extraída daquilo que ele observa e não de uma filosofia própria previamente aceita por ele. Dessa perspectiva filosoficamente neutra,⁹ não se tem uma concepção anterior da natureza da filosofia, mas dispõe-se tão somente de um nome comum que designa um imenso e complexo conjunto de fenômenos culturais na história do Ocidente. A todos esses fenômenos, deu-se o nome comum de filosofia. Noutras palavras, durante muitos e muitos séculos, o nome comum filosofia foi empregado para o que disseram e/ou escreveram muitos pensadores que foram ou são chamados de filósofos. Porchat, nessa descrição, pretende fazer jus a esses usos do mesmo nome.

    Porchat julga que essa definição é meramente descritiva e sem pressupostos teóricos (ao menos, filosóficos) de um fenômeno histórico que se desenrola no tempo. Ele não pretende impor normas sobre o uso do termo filosofia, isto é, não pretende dizer como se deve usar o termo, qual é o seu uso correto, mas somente fornecer uma descrição de como o termo foi de fato usado. Por isso, para não excluir muita coisa que foi chamada de filosofia, ele procura descrevê-la da maneira mais ampla possível, captando uma situação complexa e objetiva do mundo. Ao responder brevemente a Tércio Sampaio Ferraz, Porchat chama a atenção precisamente para esse ponto. Esse acordo resultará apenas de uma análise sem prejuízos da própria natureza do conflito que opõe as filosofias umas às outras e que pode ser caracterizado de um ponto de vista externo e rigorosamente neutro: é o que pretendo ter conseguido naquele trabalho [O conflito das filosofias (Porchat Pereira, 1969)] (BR, p.38). Assim, a concepção que Porchat tem da filosofia não é fruto de uma reflexão filosófica pessoal que visa a estabelecer um novo significado para o termo, mas é uma concepção objetiva que procura identificar o significado do termo sem recorrer a nenhuma filosofia em particular.

    Na tentativa de ser fiel aos fenômenos culturais designados com o nome filosofia, Porchat constata que não há uma natureza ou uma essência da filosofia. São, no fundo, fenômenos culturais muito diversos entre si. Ainda assim, é possível propor uma tipologia das filosofias. Donde a caracterização inicial da filosofia como uma pluralidade de sistemas, concepções e atitudes (CF, p.16). Com efeito, algumas filosofias são sistemáticas; outras não o são. Entre as não sistemáticas, encontram-se as que apresentam certas concepções do mundo, mesmo que não articuladas na forma de um sistema, enquanto as demais não se caracterizariam por doutrinas, mas somente por tomarem uma certa atitude filosófica diante da vida e do mundo.

    Porchat não dá exemplos, mas talvez se possam classificar as filosofias segundo essa tipologia. O estoicismo seria uma filosofia sistemática, assim como o idealismo transcendental de Kant. Filosofias escritas na forma de ensaios, como as de Hume e de Quine, ou de aforismos, como a de Nietzsche, apresentariam concepções do mundo sem serem sistemáticas. Aqueles que pretendem somente esclarecer a linguagem, mas não propor teses, como Wittgenstein, teriam antes proposto atitudes filosóficas diante da vida, mas não um conjunto de doutrinas, sistemáticas ou não. Nenhum desses três tipos (sistema, concepção ou atitude) se reduz aos outros, nem goza de qualquer privilégio sobre eles. Todos estão em pé de igualdade e têm o mesmo direito ao título honorífico de filosofia.¹⁰

    Em seguida, Porchat diz, na sua definição, que essas filosofias têm diferentes graus e matizes de interpenetração (ibidem). Não está muito claro o que ele tem em vista aqui. Poder-se-ia pensar que está sugerindo que não se deve tomar de maneira rígida a tipologia apresentada. Suponho que isso seja correto, isto é, que talvez nenhuma filosofia pertença exclusivamente a um único tipo. Assim, uma filosofia pode ser, por exemplo, mais sistemática do que outra, ou pode fundamentalmente expressar uma atitude, embora ocasionalmente contenha teses sobre o mundo. Mas essa não parece a interpretação correta. A leitura mais natural é que as coisas que se sucedem no tempo histórico com diferentes graus e matizes de interpenetração (ibidem) são as filosofias, não os tipos.

    O que Porchat parece estar querendo dizer é simplesmente que as filosofias fazem referências umas às outras, seja para aceitar alguma de suas teses, seja para criticá-las. Por exemplo, como vimos, o ceticismo retoma algumas lições de Protágoras. Nesse sentido, pode-se dizer que há um grau elevado de interpenetração entre essas duas vertentes. E, como se sabe, há muita interpenetração entre estoicismo e ceticismo, pois este incorpora todo um vocabulário daquele e se constitui em boa parte se opondo a ele. Outro exemplo seria o cartesianismo de Malebranche, em que o sistema cartesiano e o malebranchiano teriam muita interpenetração, pois não somente teriam muitos pontos em comum, mas também mesmo ali onde Malebranche discorda de Descartes sua posição é frequentemente elaborada em confrontação com ele.

    Mas, se for isso mesmo que Porchat está dizendo, então surge um problema de interpretação. Como veremos mais adiante, ele recusa a existência de um verdadeiro diálogo entre as filosofias, considerando-as universos à parte e condenadas à mútua incompreensão (cf. ibidem, p.21). Assim, pareceria estar se contradizendo: depois de afirmar que há interpenetração entre as filosofias, ele negaria essa interpenetração. Para evitar essa aparente contradição, talvez se deva distinguir entre a interpenetração, que descreve o fato óbvio de que os filósofos fazem referências uns aos outros, incorporando algumas teses e rejeitando outras, e o diálogo, que diria respeito à mútua compreensão filosófica entre os filósofos. Dizer, portanto, que há interpenetração entre as filosofias não implica dizer que há verdadeira compreensão entre os filósofos.

    O terceiro elemento nessa definição da filosofia é a ausência de unidade de método ou de temática. Como no caso dos elementos anteriores, Porchat insiste na dispersão das filosofias, na sua irredutível multiplicidade. Cada filosofia é livre para instituir seu próprio método e para escolher seus próprios temas. Aparentemente, há uma liberdade sem fim para cada filósofo decidir qual é o melhor método filosófico. E os temas tratados pelas filosofias podem ser os mais variados possíveis: se no helenismo, por exemplo, a filosofia se dividia em lógica, física e ética, ao longo dos séculos o nome filosofia passou a se aplicar ao tratamento de muitas outras questões. Ao lado dessa aparente ausência de fronteiras na filosofia contemporânea, porém, é importante notar que são dois os eixos que constituem as filosofias para Porchat: o método e os temas. Qualquer que seja o método, sejam lá quais forem os temas, toda filosofia deve ter um método por meio do qual tratará certos temas.

    Nesse sentido, deve-se notar que o método é um elemento nuclear na definição de filosofia de Porchat. Creio que não se pode exagerar a importância do método para sua definição, já que este será como que o coração de cada filosofia, seja ela sistema, concepção ou atitude. Pode-se pensar que, por método Porchat não tem nenhuma noção mais definida, usando o termo de maneira vaga. Talvez seja mesmo correto dizer que ele não precisa dar nenhuma explicação precisa desse termo. No entanto, dada sua formação estruturalista e dado que esse é um texto claramente marcado pela presença do estruturalismo, é difícil resistir à tentação de atribuir uma forte tintura estruturalista à noção de método.¹¹ De que modo a concepção estruturalista do método pode ajudar a entender a definição de Porchat?

    A palavra método, tal como usada pelos estruturalistas, tem dois sentidos: de um lado, o historiador estruturalista da filosofia apoia-se num método para sua interpretação de um texto filosófico; e, de outro, o filósofo tem um método pelo qual constrói sua filosofia. O historiador estruturalista da filosofia aplica o método estrutural para desvendar a ordem das razões ou a lógica interna de uma filosofia. Essa lógica interna, por sua vez, se deve a um método que engendra teses por meio de argumentos numa sequência ordenada. Na sua definição de filosofia, Porchat estaria se referindo ao método do filósofo que orienta toda a elaboração argumentativa de suas teses, conferindo-lhe uma unidade coerente, não ao método estrutural do historiador.

    É comum pensar que o método estaria presente apenas nas filosofias sistemáticas, que as filosofias sistemáticas seriam sistemáticas justamente por terem um método, e que as filosofias não sistemáticas seriam assistemáticas precisamente por carecerem de um método que lhes desse a unidade presente nos sistemas. Mas isso é um erro, pois o método, seja qual for, estaria presente em todas as filosofias, qualquer que seja o seu tipo. Esse é um ponto que Porchat deixará mais claro num artigo posterior, quando diz que mesmo uma filosofia que deliberadamente recusa o sistema e se apresenta na forma de aforismos tem um método que engendra a sequência de aforismos (CA, p.149). No que diz respeito à definição que estou analisando, é suficientemente claro que há um método que põe em marcha a ordem de razões ou institui uma lógica interna presente em cada filosofia, seja lá de qual tipo for.

    Existem, ainda, no meio de toda essa variedade, outros elementos invariantes, além dos tipos, métodos e temas, que permitem caracterizar de maneira mais precisa as filosofias. Porchat identifica dois: uma generalidade comum de intenção (CF, p.16) e uma comum pretensão (ibidem). Essa generalidade comum de intenção seria conceitualmente indeterminável (ibidem). Como, então, entendê-la? O que vem a ser essa generalidade comum de intenção? Claramente, há um sentido de generalidade que Porchat associa às filosofias. Ele insistirá, ao longo de seus textos (por exemplo, BPE, p.236), na ideia de que a filosofia consiste numa visão geral, abrangente e articulada sobre as coisas. As filosofias diferem das ciências, entre outras coisas, porque estas se ocupam de uma descrição regional do universo, enquanto aquelas realizam uma especulação universal a respeito das coisas (cf. CHTC, p.495-6). Pouco importa se uma filosofia é um sistema, uma concepção ou uma atitude, nos três casos ela deve ter esse caráter abrangente, essa intenção de lidar com o conjunto inteiro das coisas de maneira coerente. Haveria, então, nas filosofias uma intenção de elaborar uma visão geral das coisas. Mas não está claro que é isso o que Porchat tem em mente.

    O outro elemento comum a todas as filosofias, qualquer que seja o seu tipo, método ou tema, é uma pretensão comum. De que pretensão, exatamente, fala Porchat? O texto, mais uma vez, não é claro, nem mesmo sintaticamente. A pretensão comum é corresponder de modo exclusivo e pertinente à significação [...] do nome comum que as designa (CF, p.16). Mas o que significa isso? Que tipo de correspondência é essa? Não se trata da correspondência entre uma doutrina filosófica e o mundo, entre o que diz uma filosofia e o que o mundo é em si mesmo. Tal correspondência não existiria, por exemplo, entre uma filosofia que consiste numa atitude (e não em doutrinas) e o mundo. O que está em questão, nessa correspondência, não é a verdade material¹² das filosofias, isto é, os termos que se correspondem não são filosofia e mundo. A pretensão de corresponder de modo exclusivo não significa que cada filosofia tem a pretensão de dizer a verdade sobre o mundo, sobre como este é em sua natureza.

    A meu ver, os termos que se correspondem são, de um lado, uma filosofia e, do outro, o significado do nome filosofia que cada filosofia define a seu modo. Assim, haveria, por exemplo, uma correspondência entre a filosofia aristotélica e o conceito de filosofia tal como definido por Aristóteles, assim como haveria uma correspondência entre a filosofia epicurista e o conceito de filosofia tal como definido por Epicuro. Afinal, a significação do nome comum é definida cada vez como unívoca (ibidem), isto é, cada filósofo pretende estabelecer a única e verdadeira natureza da filosofia, embora o conjunto dessas definições talvez não tenha nada em comum exceto o nome, a generalidade e a intenção. Se define a filosofia de certa maneira e lhe atribui certas tarefas, então Aristóteles entende que sua filosofia cumpre essas tarefas que ele mesmo impôs à filosofia, por meio de sua definição, e que as demais filosofias, como a platônica, não cumprem adequadamente essas tarefas, já que somente sua filosofia corresponderia de modo exclusivo (ibidem) a essa significação. Não por outra razão, Porchat diz que os filósofos têm essa pretensão comum, já que todos pretendem levar a cabo com êxito as tarefas que se propõem, julgando que essa pretensão está fundamentada em análoga confiança nos discursos de que se servem e na razão que os ordena (ibidem). Em suma, a pretensão comum que todas as filosofias têm é que cada uma é a única a realizar as tarefas que ela própria se propõe a realizar, criticando e rejeitando todas as demais, pois estas não seriam capazes de cumpri-las satisfatoriamente. Não haveria filosofia que não confiaria em sua própria capacidade de resolver os problemas por ela formulados, enquanto denunciaria as deficiências das demais filosofias.

    Porchat dá ainda uma segunda definição de filosofia:

    Em outras palavras, a filosofia aparece-nos como uma multiplicidade historicamente dada de filosofias, identicamente empenhadas, todas elas, na elucidação da própria noção de filosofia e identicamente confiantes na própria capacidade de resolver essa questão de princípio e de executar de maneira adequada o programa que o mesmo empreendimento de autodefinição implicitamente lhes traça. (ibidem)

    Porchat começa por reconhecer a multiplicidade (ibidem) das filosofias, num claro esforço de incluir todas as filosofias historicamente dadas. Em seguida, passa a identificar elementos comuns no interior dessa multiplicidade. Esses elementos comuns são: a busca de uma elucidação da filosofia e a elaboração ou construção de uma filosofia que esteja conforme a essa elucidação prévia. Porchat distinguiria, em todas as filosofias, duas etapas. Se quisermos entender uma filosofia dada, qualquer que seja ela (um sistema, uma concepção, uma atitude), então precisamos começar por entender como ela define a própria filosofia, traça projetos para si mesma, levanta dificuldades a serem resolvidas e formula problemas. Numa segunda etapa, ela se dedicaria a realizar o projeto traçado, a enfrentar as dificuldades identificadas, a resolver os problemas levantados. Em geral, os filósofos confiam no sucesso de sua empreitada. Em suma, toda filosofia desenha, para si mesma, como que um programa a ser cumprido e julga que o cumpriu adequadamente.

    Não se deve pensar, contudo, que essa distinção entre a elucidação de filosofia e a construção de uma filosofia corresponda, de fato, ao que os filósofos fazem, isto é, não se deve pensar numa precedência temporal da definição em relação à execução. Certamente não é o procedimento usual dos filósofos começar por definir a filosofia, enumerando suas tarefas, para depois tentar cumpri-las. Comumente, o que ocorre é o inverso: após resolver uma série de problemas filosóficos, um filósofo pode, então, voltar sobre seus próprios passos e extrair ou explicitar uma concepção de filosofia. Ou, ainda, essa concepção pode ser construída ao mesmo tempo que surgem as soluções dos problemas. Pode até ocorrer que, tendo inicialmente uma concepção da filosofia, o filósofo venha a melhorá-la e a corrigi-la conforme avança em suas reflexões.

    Tampouco se deve pensar que a distinção corresponde a uma precedência lógica da elucidação de filosofia em relação à execução da filosofia. Como acabamos de ver, em geral, a elucidação de filosofia somente é possível quando está de acordo com a própria filosofia construída pelo filósofo. Noutras palavras, conforme um filósofo vai elaborando suas teses e dando suas soluções aos problemas filosóficos que colocou para si mesmo, ele vai também formando uma concepção de filosofia, de modo que a concepção de filosofia está intimamente vinculada à própria execução do programa filosófico a que o filósofo se propõe. Num certo sentido, pois, elucidação de filosofia e a execução da filosofia, embora possam ser distinguidas, mantém relações mutuamente dependentes. De um lado, a execução obedeceria a um programa delineado pela definição de filosofia; de outro, essa definição não se faz, nem se pode fazer, sem a filosofia já executada ao menos parcialmente. Em suma, haveria como que uma solidariedade entre essas duas partes de uma filosofia.

    Comparemos, agora, as duas definições. Como Porchat sugere, a segunda não é uma definição diferente, mas a mesma, em outras palavras (ibidem). Creio que, de fato, não se trata propriamente de uma segunda definição, mas obviamente há uma diferença nas ênfases. Enquanto a primeira definição insistia nas diferenças e pluralidades das filosofias, somente no final mencionando os pontos em comum, a segunda definição passa rapidamente pelas diferenças e insiste mais nos pontos em comum. Por isso, a segunda definição pode ajudar a entender aquela pretensão comum, obscuramente explicada na primeira definição e que, agora, é explicada de maneira mais clara. A meu ver, na primeira definição Porchat diz que uma filosofia deve corresponder à significação de filosofia tal como definida por cada filosofia e, na segunda, ele explicita melhor qual é essa correspondência: ao definir filosofia, uma filosofia primeiramente elabora um programa a ser executado e, em seguida, trata de executá-lo; todo filósofo confia em seu taco, isto é, julga que é capaz de, por meio de uma razão que ordena o discurso, cumprir as tarefas que se coloca, ao mesmo tempo que rejeita as demais filosofias.

    Talvez se deva ainda observar como se relacionam, no interior de cada filosofia, o método filosófico, de um lado, e a elucidação da filosofia e a construção dessa filosofia, de outro. O papel que o método do filósofo desempenha na primeira definição é análogo ao papel da elucidação da filosofia na segunda definição. Tanto o método como a elucidação constituiriam uma espécie de polo organizador de uma filosofia, conferindo-lhe unidade, coerência e sentido. Embora com papéis similares e, talvez, complementares, não se deve confundir o método do filósofo com sua elucidação da filosofia.

    Das definições de filosofia ao conflito das filosofias: a filosofia como polêmica com outras filosofias e como fruto de uma lógica interna

    Depois de apresentar sua definição de filosofia, Porchat extrai dela consequências fundamentais para entendermos sua posição pessoal sobre a filosofia. Essas consequências decorrem da pretensão comum às filosofias. Com efeito, cada filosofia considera que somente ela seria capaz de realizar as tarefas que propõe. Cada uma pretende corresponder de modo exclusivo (ibidem) ao que a filosofia, no seu entender, deve fazer. Se pertence a cada filosofia o dever impor-se como a única e verdadeira Filosofia (ibidem), então essa pretensão que lhes é essencial, leva-as necessariamente (ibidem) a excluir todas as demais. E daí decorre também a essencial necessidade, para cada filosofia, de abordar criticamente as outras filosofias (ibidem). Em suma, duas são as consequências: a primeira é a mútua e recíproca excomunhão e exclusão (ibidem) das filosofias; a segunda, a polêmica que cada filosofia deve realizar contra suas rivais. Essa mútua exclusão e essa polêmica constituem, no fundo, o conflito das filosofias.

    De que modo as filosofias se excluem mutuamente? E como polemizam entre si? Responder a essas perguntas é entender como Porchat concebe, de maneira específica, o conflito das filosofias. Ao comentar a polêmica que uma filosofia trava com as demais, ele cita, com aprovação, uma passagem de Martial Gueroult (cf. ibidem, p.17). Já vimos como a noção de método e a ideia de uma ordem das razões eram centrais na concepção de filosofia apresentada por Porchat. Ambos os conceitos são centrais também na concepção estruturalista da filosofia, da qual Gueroult é, ao lado de Victor Goldschmidt, um dos grandes representantes. Percebe-se, então, que Porchat conceberá o conflito das filosofias sob a égide do estruturalismo.¹³

    Na concepção de filosofia sustentada por Porchat, há duas tendências aparentemente contrárias. De um lado, cada filosofia é instaurada por um método que lhe é próprio, método esse que comandará a ordenação do discurso por meio de razões e permitirá construir um universo discursivo coerente e articulado por uma lógica interna. Igualmente, cada filosofia proporá a sua própria concepção de filosofia, indicará as tarefas que devem ser cumpridas, os problemas que devem ser resolvidos, os temas que devem ser tratados e, em seguida, tenta realizar seu projeto e cumprir as tarefas que para si mesma desenhou. Noutras palavras, cada filósofo sempre reparte de zero e reconstrói, por seu turno, os caminhos da verdade (ibidem). Essa elaboração filosófica parece ser feita de maneira inteiramente autônoma, já que cada filosofia se instaura a si mesma, inventando seu método, oferecendo sua concepção de filosofia e executando o projeto que lhe é peculiar. Assim, há uma tendência a pensar cada filosofia como fechada sobre si mesma.

    De outro lado, Porchat, como vimos, alude a graus e matizes de interpenetração (ibidem, p.16) e, dada sua pretensão comum, cada filosofia é levada a excluir as demais, polemizando contra elas. Assim, cada filósofo é levado a elaborar sua doutrina através de uma reflexão polêmica sobre a filosofia já existente (ibidem, p.17). Uma filosofia não pode ignorar as demais, precisando situar-se diante delas. Ninguém começa a filosofar deixando de lado tudo o que já foi feito. Nesse sentido, não é falso dizer que a Filosofia se alimenta continuamente de si mesma e de sua própria história (ibidem). Sem alimentar-se de outras filosofias, uma filosofia não poderia desenvolver-se e constituir-se. Nutrindo-se das demais, incorporando ou rejeitando seus elementos, cada filosofia estará visceralmente ligada a elas. Há, assim, a tendência presente em cada filosofia de abrir-se para a discussão racional com as demais filosofias, sem a qual ela própria não

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