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Textamentos
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E-book174 páginas44 minutos

Textamentos

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Sobre este e-book

Embora o título, Textamentos, exprima ideia de término, este não será com certeza o último livro de poesias de Affonso Romano de Sant'Anna. É todavia pertinente se considerarmos que os veios mais importantes do livro são poemas de amor ao amor e poemas de amor à morte. Os longos poemas como "A catedral de Colônia" e "A grande fala do índio guarani", cujos temas versavam em torno da história, da vida social e política do país, substituem-se agora, em Textamentos, por textos curtos que aprofundam o intimismo e valorizam detalhes fundamentais como já era uma tendência em "O lado esquerdo do meu peito". O autor celebra a velhice, o entardecer da vida e a morte não como os poetas românticos, de forma mórbida, mas de forma pensada, vivida previamente, metafísica e cotidianamente nos amigos e vizinhos que se vão. Assim nos leva a compreender a velhice e a finitude como transformação física e ausência e nos induz a aceitar a inexorabilidade do tempo sobre nós. Affonso dessacraliza a morte enquanto confere à velhice o olhar erotizado da paixão. Com esse olhar, transforma também o amor em poemas, obras-primas de delicada sensualidade, em que o objeto do desejo é tantas vezes intocável.

Poemas inéditos, da época em que viveu em Los Angeles (1965-67) e quando lecionou em Aix-en-Provence (1980), são agora apresentados ao lado dos poemas de viagem a Grécia, Israel, países da América Latina e sobretudo Itália. Sobressai o conjunto intitulado Intermezzo italiano onde o cronista e poeta, que havia registrado em crônicas vários momentos de viagem, reverte as sensações para o texto poético, fundindo viagem interior e viagem exterior. Há uma interação entre o poeta e o cronista, um cruzamento intencional de linguagens e gêneros, uma autoapropriação de textos em que nos faz reconhecer que a poesia não apenas é um olhar interior sensível à música e às artes plásticas, sensível à vida e à morte, senão também o veículo por onde são realmente elaboradas nossas emoções.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de nov. de 1999
ISBN9788581221793
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    Textamentos - Affonso Romano de Sant'Anna

    Paris)

    TEXTAMENTO

    Minha mãe teve dúvidas

    se eu deveria nascer ou não.

    Pensou em me abortar.

    Nasci. E, de alguma maneira, dei certo.

    Cedo aprendi com os animais domésticos

    e com os legumes da horta

    que a morte é estranhamente cotidiana.

    Amei, sim, amei

    na medida de meu descompassado desejo.

    E já ia envelhecendo

    quando aprendi a me comunicar com os cães.

    Não posso me queixar.

    Vencidas as dificuldades iniciais,

    os limites do quintal, a inveja

    e os jogos na boca da noite,

    descobri modos de me expressar.

    Algumas palavras íntimas

    tornaram-se públicas

    e nisto encontrei satisfação.

    PROCURA ANTIGA

    Perdi qualquer coisa ali

    entre o século onze ou dezesseis, não sei.

    Qualquer coisa entre aqueles reis e servos

    qualquer coisa entre a nobreza e os parvos

    comensais à mesa

    qualquer coisa entre as pedras de Siena

    e as pernas das princesas de Viena.

    Por isto procuro procuro procuro

    entre

    quadros portulanos estatuetas tapetes pianos

    porcelanas cristais

    e enternecidas madonas

    como a cinderela o seu sapato perdido

    na meia-noite da festa

    e o maestro a semifusa confusa

    que caiu no fosso da orquestra.

    Procuro algo nas gretas

    dos monumentos no musgo

    do sofrimento no desejo

    dos conventos e traças

    dos documentos.

    O que procuro não sei. Mas sei

    que essa procura

    me organiza o sofrimento.

    APRENDIZADOS

    Uns aprendem a nadar

    outros a dançar, tocar piano,

    fazer tricô e a esperar.

    Na infância cai-se

    para se aprender a andar,

    cai-se do cavalo e do emprego

    aprendendo a viver e a cavalgar.

    Em alguns aprendizados

    chega-se à perfeição.

    Em alguns.

    No amor, não.

    ALÉM DO ENTENDIMENTO

    A essa altura

    há coisas

    que (ainda)

    não entendo.

    Por exemplo:

    o amor. Faz tempo

    que diante dele

    me desoriento.

    O amor é intempestivo

    eu sou lento.

    Quando ele sopra

    – estatelado –

    mais pareço

    um cata-vento.

    NOVO GÊNESIS

    No primeiro dia

    o Demônio criou o universo e tudo o que nele há

    e viu que era bom.

    No segundo dia

    criou a cobiça, a usura, a inveja, a gula, a preguiça, a soberba, a ira

    a que chamou de sete virtudes capitais

    e viu que era bom.

    No terceiro dia criou as guerras.

    No quarto dia criou as epidemias.

    No quinto dia criou a opressão.

    No sexto dia criou a mentira

    e no sétimo dia, quando ia descansar,

    houve uma rebelião na hierarquia dos anjos

    e um deles, de nome Deus,

    quis reverter a ordem geral das coisas,

    mas foi exilado

    na pior parte do Inferno – os Céus.

    Desde então

    o Demônio e suas hostes continuam firmes

    na condução dos negócios universais,

    embora volta e meia um serafim, um querubim

    e algum filho de Deus, desencadeiem protestos, milagres, revoluções

    querendo impingir o Bem onde há o Mal.

    Porém não têm tido muito êxito até agora,

    exceto em alguns casos particulares

    que não alteraram em nada a marcha geral da história.

    IN ILLO TEMPORE

    Havia uma certa ordem naquele tempo.

    Sendo verão, chovia às quatro da tarde.

    Os pássaros pousavam nos galhos

    cantando cada qual sua canção.

    É verdade que cães e gatos

    continuam obedecendo às nossas ordens

    às vezes absurdas

    e alguns deitam-se aos nossos pés

    e beijam nossas mãos.

    Mas havia uma certa ordem naquele tempo.

    Um quadrado era perfeito

    e um triângulo de três lados

    podia chegar à perfeição.

    VELHICE ERÓTICA

    Estou vivendo a glória de meu sexo

    a dois passos do crepúsculo.

    Deus não se escandaliza com isto.

    O júbilo maduro da carne

    me enternece.

    Envelheço, sim. E

    (ocultamente)

    resplandeço.

    MUDAM-SE OS TEMPOS

    Estão, de novo, mudando o mundo

    sem minha permissão

    (embora a cumplicidade obrigatória).

    Expulsam as raposas e castores de suas tocas

    e trocam de endereço as oliveiras.

    Há muito já obrigavam os pássaros a portar gravatas

    e forçavam os peixes a nadar

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