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O racismo e o negro no brasil
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O racismo e o negro no brasil
E-book353 páginas6 horas

O racismo e o negro no brasil

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Sobre este e-book

'O Brasil é racista, mas eu não. ' No Brasil, a dificuldade de perceber a dimensão da questão racial trava o processo de construção e constituição do país como nação. Sabendo que a psicanálise, e todos os saberes, segue a música dos acontecimentos históricos e culturais, a editora Perspectiva oferece ao leitor um profundo e candente debate sobre o espinhoso tema do racismo e preconceito no Brasil ao tornar livro o ciclo de palestras realizado em 2012, em São Paulo, pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae sobre o assunto, uma reflexão dos tempos e espaços que nos trouxeram ao Brasil do anos 2000. Afinal, em que contexto estamos imersos e quais questões o travessam? Como explicar a cruel tendência de invisibilizar e subjugar, através do ideal da brancura, o não branco? Como tratar a questão do racismo no Brasil, que perdura e se agarra a um passado escravagista que, ainda hoje 'cobre nosso tecido social, sobrevivendo com tenaz resistência aos humores do tempo'?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2020
ISBN9788527311694
O racismo e o negro no brasil

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    O racismo e o negro no brasil - Noemi Moritz Kon

    2015.

    1.

    AS AMBIGUIDADES DO RACISMO À BRASILEIRA

    Kabengele Munanga

    O racismo é um fenômeno presente em diversas sociedades contemporâneas, latente na cultura, nas instituições e no cotidiano das relações entre seres humanos. No entanto, há pessoas que não o enxergam ou preferem não vê-lo.

    Ele tem um percurso e várias histórias, que devem ser interpretadas de acordo com épocas, modelos culturais e estruturas de poder das sociedades que o praticam. Apesar de obedecer a uma mesma lógica de hierarquização dos outros, o racismo passa, no decorrer dos anos, por uma complexidade de mutações em suas figuras sociais, culturais e discursivas. Em sua evolução, a ciência biológica demonstrou, já na segunda metade do século XX, que a raça não existe e, consequentemente, que são absurdas as crenças baseadas na superioridade e inferioridade raciais dos grupos humanos.

    Porém, as crenças racistas não recuam, apesar de as pessoas terem mais acesso à ciência através da educação, o que mostra que a racionalidade em si não é suficiente para que todas as pessoas possam abrir mão de suas crenças racistas. Em outros termos, os racistas são movidos por outra racionalidade, que não é necessariamente científica.

    Se perguntarmos, hoje, a norte-americanos, sul-africanos e brasileiros sobre a existência de preconceito ou discriminação racial em suas respectivas sociedades, teremos, creio eu, respostas distintas. Respostas a serem interpretadas de acordo com a época, a história de cada país e sua estrutura de poder. Os estadunidenses, negros e brancos, poderão dar respostas claras e diretas. Atualmente, alguns deles podem até dizer que os preconceitos raciais recuaram, por terem elegido um presidente negro, além dos negros já apresentarem uma mobilidade social em que se nota uma pequena burguesia e uma classe média significativa. Os sul-africanos não teriam também dificuldade para confirmar a existência do racismo e de suas práticas na sociedade. Entretanto, alguns podem até dizer que esse fenômeno recuou com a abolição das leis do apartheid e pelo fato de os negros estarem no comando político do país. Alguns franceses e alemães poderão dizer que em suas sociedades existe apenas a xenofobia em relação aos imigrantes, e não o preconceito racial.

    A mesma questão feita a brasileiros pareceria inconveniente, incomodante e até perturbadora. Muitos, em comparação com norte-americanos e sul-africanos, não dariam respostas claras e diretas. Elas seriam ambíguas e fugitivas. Para muitos, ainda, o Brasil não é um país preconceituoso e racista, sendo a discriminação sofrida por negros e não brancos, em geral, apenas uma questão econômica ou de classe social, sem ligação com os mitos de superioridade e inferioridade raciais. Nesse sentido, os negros, indígenas e outros não brancos são discriminados por serem pobres. Em outros termos, negros e brancos pobres, negros e brancos da classe média ou negros e brancos ricos não se discriminam entre si, tendo em vista que pertencem a classes econômicas iguais.

    Para algumas pessoas mais esclarecidas, ou mais sensíveis ao cotidiano brasileiro, existem, sim, preconceito e práticas discriminatórias no Brasil em relação aos negros. É o caso dos resultados de uma pesquisa científico-jornalística realizada pelo jornal Folha de S.Paulo e pelo Instituto Datafolha, em 1995. Seria interessante interrogar-se como o racismo pode ser cordial apenas no Brasil e não em outros cantos do mundo. Na pesquisa, 89% dos brasileiros entrevistados aceitaram a existência do racismo no país, embora apenas 10% deles tivessem confessado conhecer pessoas que discriminam, ou terem eles próprios discriminado¹². Ao se questionar os pesquisados se não se importariam que suas filhas se casassem com uma pessoa negra, as respostas revelaram contradições até entre aqueles que declararam não serem racistas, na medida em que não viam com bons olhos o casamento inter-racial entre pessoas brancas e negras. Mostrando preocupação com a chegada de descendentes mestiços, que também sofreriam com o preconceito por parte da sociedade, eles reprovaram a união inter-racial, deixando clara a ambiguidade que permeia a apologia da mestiçagem como símbolo da identidade nacional brasileira¹³.

    Qualquer pesquisa quantitativa que venha a demonstrar que há, por exemplo, desigualdade de tratamento em termos de salário entre mulher branca e negra ou entre homem branco e negro, com semelhante formação e qualificação profissional, costuma ser desqualificada ou desconsiderada nos discursos político, jornalístico e até intelectual ou acadêmico. Há vários livros que ilustram bem a ambivalência que plana sobre o discurso a respeito da existência do racismo na sociedade brasileira¹⁴.

    Também as declarações de certas personalidades políticas brasileiras quanto às questões raciais, se comparadas com as norte-americanas, são surpreendentemente diferentes. Na véspera do debate televisionado entre o candidato republicano, John McCain, e o candidato democrata, Barack Obama, presidente reeleito dos Estados Unidos, o primeiro declarou que iria chicotear seu adversário no aludido debate. A palavra chicotear, lembrando o passado escravista, foi duramente criticada pela imprensa local, obrigando McCain a um pedido público de desculpas pelo uso de uma palavra infeliz e indevida.

    No Brasil, em audiência pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), entre 3 e 5 de março de 2010, sobre a petição inicial de Arguição de Descumprimento de Princípio Fundamental (ADPF), apresentada pelo Partido Democratas (DEM), questionando a constitucionalidade das políticas de cotas na Universidade de Brasília (UnB), o atual ex-senador Demóstenes Torres, então presidente da Comissão de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Senado e relator do Estatuto da Igualdade Racial, em sua intervenção, e diante das câmeras, disse que durante a escravidão não houve violência sexual contra a mulher negra e que, se houve, como se pretende supor, foi algo consentido pelas próprias vítimas, ignorando o contexto de assimetria e de subalternidade em que os abusos sexuais eram cometidos. Afirmou ainda que os traficantes de escravos não praticaram nenhuma violência contra a humanidade, como se julga, pois foram os próprios africanos que venderam seus irmãos, a começar pelo tráfico árabe, bem antes do movimento transatlântico. Ele chegou até a negar a existência do racismo estrutural no Brasil, reiterando a antiga posição da discriminação socioeconômica embutida no mito de democracia racial. Uma matéria crítica contra suas declarações, publicada na Folha de S.Paulo, foi considerada pelo geógrafo Demétrio Magnoli, em sua defesa do parlamentar, delinquência jornalística, amnésia ideológica, falsificação da história, manipulação e ignorância, em espaço do mesmo jornal. Segundo Magnoli, Torres nada disse que não fossem fatos verdadeiramente históricos.

    Foi então que os editores do jornal, imagino que constrangidos, convidaram-me, oferecendo igual espaço na coluna Tendências e Debates para rebater tais colocações.

    O tráfico transatlântico já foi considerado pela Unesco uma das maiores tragédias da história da humanidade, por sua amplitude espacial e temporal e pelos sofrimentos e perdas causados ao continente africano. No entanto, o que está em julgamento não são os traficantes ocidentais, árabes e africanos, mas sim a própria instituição da escravidão em si, independentemente da origem racial dos traficantes. Negar a responsabilidade histórica dos países que participaram do tráfico por causa da participação africana seria como negar a responsabilidade do regime nazista no Holocausto, por causa da colaboração de certos países europeus e da traição de alguns judeus.

    São apenas pequenos exemplos para ilustrar a ambiguidade da expressão do racismo na sociedade brasileira. É sim e não. Mas o sim não é totalmente afirmativo, pois é sempre acompanhado de mas, porém, veja bem etc. O não também é sempre acompanhado de justificativas escapatórias. Mesmo pego em flagrante comportamento de discriminação, o brasileiro sempre encontra um jeito para escapar, às vezes depositando a culpa na própria pessoa segregada, considerando-a complexada. Podemos fornecer mais exemplos mas, sabemos, o excesso destes acaba por banalizar o pensamento, tanto o meu como o de vocês,

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