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Bixas Pretas: dissidência, memória e afetividades
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Bixas Pretas: dissidência, memória e afetividades
E-book364 páginas4 horas

Bixas Pretas: dissidência, memória e afetividades

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Sobre este e-book

Ser negre e LGBTQIAP+ nos transformam em anomalias e aberrações para os nosses própries semelhantes, pois já existem instaurados o pânico e o medo dos processos de desumanização causados pelo estigma racial. Gênero é uma tecnologia para a inteligibilidade social, visto que só seres humanos são capazes de performatizar identidades sexuais e de gênero. Porém, para as pessoas negras, a categoria gênero funciona enquanto uma tecnologia necropolítica, reproduzindo cotidianamente uma cultura de terror, violência e extermínio das populações negras, que tem aumentado de maneira vertiginosa os índices de genocídio de homens negros, o feminicídio e as LGBTQIAP+fobias na atualidade. Situades de compreensão e consciência, apresentamos nossa contribuição para projeção deste movimento epistemológico de emancipação nas falas de sujeites subalternizades ao longo da história ocidental. Este livro convida à leitura de diversos artigos produzidos por pessoas pesquisadoras e ativistas de todo Brasil, sobre e nas encruzilhadas das identidades imbricadas congenitamente às estruturas sociais das desigualdades produzidas no processo de colonização, organizados a partir de um significante comum: bixa preta.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jun. de 2022
ISBN9786586481686
Bixas Pretas: dissidência, memória e afetividades

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    Pré-visualização do livro

    Bixas Pretas - Gilmaro Nogueira

    1.pngCréditos

    APRESENTAÇÃO

    O heteropatriarcalismo do ocidente, constante nas culturas negras metropolitanas, mostra resistência à visibilidade dos legados políticos e, em alguns aspectos, contraculturais de pessoas negras sexo/gênero discordantes. Predominantemente, a maioria das nossas referências de ativismo e militância são homens e mulheres negres heterocentrades e cisgêneres, bem como a intelectualidade e as artes negras estabelecem o princípio da heterossexualidade compulsória implicitamente aos ideais racializados, oferecendo-lhes uma ilusória autenticidade. Falar de James Baldwin, Barbara Smith, Audre Lorde, Angela Davis, Bayard Rustin, Marsha P. Johnson, Bessie Smith, Langston Hughes, Emile Griffith, Marlon Riggs, Isaac Julien, Simon Nkoli, Madame Satã, Joãozinho da Goméia, Mário Gusmão, Jorge Lafond, Marielle Franco, dentre inúmeres outres negres das dissidências sexuais e de gênero, é falar de um profundo processo de silenciamento e asfixia da história de parte da memória negra. Essas referências sempre desenvolveram relações de coalizão e cooperação política com movimentos negros na história, visto o indiscutível caráter estrutural da raça, porém seus legados são extremamente negligenciados.

    A heterocentricidade negra, as incapacidades e deficiências ideológicas dos movimentos negros no decorrer da história em tratar questões sexuais e de gênero, bem como o grande desafio de estabelecimento de políticas de coalizão, estereotiparam o Movimento LGBTQIAP+ – na década de 1970 ainda Movimento Gay – como um movimento exterior ao Movimento Negro, um problema alheio à agenda de lutas antirracistas que poderia se fortalecer na orquestração de forças políticas reativas. É interessante perceber que na mesma década surgiram coletivos como o Combahee River, fundado por mulheres negras lésbicas – como a já supracitada Barbara Smith – para atender não somente a situação e as demandas políticas das mulheres negras subincluídas pelo Movimento Negro e superincluídas pelo Movimento Feminista branco mainstream, mas também para superar a superexclusão de ambos os movimentos de ativismo e militância, por causa de suas sexualidades e problemas específicos que emergem das dinâmicas interseccionais entre raça, gênero, classe e outros marcadores das diferenças sociais. De acordo com Kimberlé Crenshaw, o fenômeno da subinclusão de mulheres negras no Movimento Negro é decorrente da ausência de reconhecimento e problematização de gênero na agenda política negra; por sua vez, o fenômeno da superinclusão é decorrente da ausência de reconhecimento e problematização das questões raciais na agenda política feminista. O problema se torna ainda mais grave quando a heterocentricidade e cisgeneridade da agenda política de ambos os movimentos superexcluem as mulheres negras das dissidências sexuais e de gênero, complexificando suas posicionalidades a partir de uma perspectiva existencial que só pode se tornar inteligível na interseccionalidade, através do status caracterizado por Patricia Hill Collins como outsider within: um mal-estar constante provocado por, simultaneamente, pertencer e não-pertencer a determinado lugar, em um estado de permanente interdição e fragmentação constante causado pela incompreensão da natureza interligada das opressões pelos movimentos políticos.

    Inspirades no pensamento de mulheres negras como Carla Akotirene, a interseccionalidade constitui nossa principal ferramenta epistemológica e política, principalmente para o exercício de identificação das inúmeras formas de subjugação e subordinação dos sujeitos, para a percepção e análise das complexas dinâmicas de interação entre os marcadores de diferenciação sociocultural, bem como enquanto um paradigma ético para diagnóstico das causas e consequências das discriminações, sendo este de principal responsabilidade das instituições de direitos humanos, aparelhos e órgãos estatais governamentais. Há uma profunda simbiose entre as categorias de diferenciação raça e gênero, visto que os sujeitos vivenciam a raça a partir do gênero e vice-versa. Assim, homens negros e mulheres negras mesmo compartilhando experiências de discriminações em comum, interpelados pela mesma matriz estrutural de opressão (raça), possuem experiências específicas e distintas engendradas a partir das dinâmicas de emparelhamento de outras matrizes e marcadores da diferença, além da inevitável incidência de suas subjetividades. As dinâmicas interseccionais interpelam os sujeitos nos campos de força gerando problemas, vulnerabilidades, assimetrias de poder e desigualdades sociais específicos. Há um profundo processo de invisibilização e negligência das experiências interseccionais vivenciadas pelos sujeitos, compreendidos sempre de maneira artificial, insuficiente e equívoca na elaboração de políticas públicas e garantia de direitos civis, que na maioria das vezes não consideram as suas complexas posicionalidades nas hierarquias de poder e a singularidade das suas vulnerabilidades e opressões sofridas.

    A existência de pessoas sexo-gênero discordantes nas comunidades negras, bem como seus fluxos afrodiaspóricos pelo mundo, só é possível na reinvidicação, delimitação e ocupação de um lócus fraturado, um entre-lugar no qual somos espécies de estranhes familiares: a condição de sermos negres proporciona nossa superinclusão entre as comunidades e movimentos negros, porém sofremos, simultaneamente, com a subinclusão e até mesmo hiperexclusão por nossa condição enquanto pessoas LGBTQIAP+, que nos tornam forasteires em terras conhecidas. A experiência da negritude, apesar de plural e múltipla na Diáspora Negra, é profundamente interpelada por normatividades coloniais que estabelecem a cisgeneridade e a heterossexualidade compulsória como os únicos paradigmas existenciais possíveis para os homens e mulheres racializades. Ser negre e LGBTQIAP+ nos transformam em anomalias e aberrações para os nosses própries semelhantes, pois já existem instaurados o pânico e o medo dos processos de desumanização causados pelo estigma racial. Gênero é uma tecnologia para a inteligibilidade social, visto que só seres humanos são capazes de performatizar identidades sexuais e de gênero. Porém, para as pessoas negras, a categoria gênero funciona enquanto uma tecnologia necropolítica, reproduzindo cotidianamente uma cultura de terror, violência e extermínio das populações negras, que tem aumentado de maneira vertiginosa os índices de genocídio de homens negros, o feminicídio e as LGBTQIAP+fobias na atualidade.

    Situades de compreensão e consciência, apresentamos nossa contribuição para projeção deste movimento epistemológico de emancipação nas falas de sujeites subalternizades ao longo da história ocidental. Este livro convida à leitura de diversos artigos produzidos por pessoas pesquisadoras e ativistas de todo Brasil, sobre e nas encruzilhadas das identidades imbricadas congenitamente às estruturas sociais das desigualdades produzidas no processo de colonização, organizados a partir de um significante comum: bixa preta. Por isso, abrimos o livro com o relato da infância proibida da primeira travesti negra doutora do país, Megg Rayara de Oliveira; seguido da experiência analítica da primeira psicóloga transexual da Bahia, Ariane Senna; Alexsandro Rodrigues, Castiel Vitorino Brasileiro, Genildo Coelho Hautequestt Filho e Marcio Caetano apontam a necessidade de se pensar as crianças e as infâncias em seu entrecruzamento com raça e sexualidade, território e classe, enquanto corpos que são racializados, territorializados e sexualizados de modo diferentes; Thiago Teixeira também apresenta uma análise sobre as compensações assimétricas presentes em nosso corpo através dos marcadores das diferenças; os resultados da pesquisa doutoral sobre sapatões de Fernanda Nascimento; as reflexões sobre raça e sexualidade no construto de referenciais educativos para crianças, presente no artigo de Wenderson Oliveira; as abordagens da psicologia aplicada à diversidade, de Isaac do Nascimento, Francisco Leite Jr. e Maria Cristina Amazonas; o diagnóstico sobre os processos de adoecimento de pessoas trans pelo sistema de relações sociais organizados pelo regime restrito à binaridade de Leonardo Ribeiro; as incursões na sexualidade do território norteano caboclo, envolvendo a geopolítica do queer tropical de José Sena; as problematizações da violência, morte, apagamento, invisibilidade, desprezo e aniquilação das que são indignas do luto de Andrey Chagas; o caminho para diversas respostas à pergunta de Bruno Nzinga Ribeiro: nós podemos teorizar?; o processo para ressignificação do pejorativo na batalha histórica do campo linguístico, metamorfoseando a vergonha em orgulho de Pedro Ivo Lima; fechando a trilogia última dos estudos autorreferenciados das vidas negras sexo-discordantes na provocação de Hilário Zeferino para este antídoto não recomendado à estrutura colonial, reabrimos com o primoroso artigo do autor amefricanista, o estadunidense Joshua Reason; e, por fim, terminando com o artigo de Félix Zion, um relevante expoente nordestino de uma das maiores movimentos políticos-culturais LGBTQIAP+ negros e latinos das Américas: a cultura Ballroom. O trabalho transita pela história do movimento, nascido originalmente na afrodiáspora norte-americana e difundido atualmente no Brasil, como no caso do coletivo AfroBapho (Salvador – Bahia), que compõe a identidade visual desta obra.

    Bixas Pretas: Dissidências, Memórias e Afetividades se apresenta no cenário intelectual do início deste século como uma obra vanguardista de referência para novas políticas epistêmicas e existenciais afrofuturistas, pois a destruição das matrizes estruturais das violências e opressões de maneira alguma acontecerá sem nós.

    Desejamos a todes uma ótima leitura.

    David Souza

    Daniel dos Santos

    Vinícius Zacarias

    UMA MULHER COM PAU, UMA TRAVESTI PRETA

    E AS LEMBRANÇAS DE UMA INFÂNCIA PROIBIDA

    Megg Rayara Gomes de Oliveira¹

    Não me lembro com quantos comecei a reivindicar o direito de ser menina. Também não me lembro se alguma vez, na minha infância, verbalizei quem de fato eu era.

    O meu gestual, os papéis que eu desempenhava nas brincadeiras em grupo, uma toalha de banho amarrada na cabeça, improvisando uma peruca de cabelos compridos, falava por mim, gritava! Esse grito ecoou por pouco tempo até que fosse matriculada, a contragosto, na escola primária: no Grupo Escolar Vicente Machado, que ficava a pouco mais de 200 metros da minha casa.

    Foi ali que tomei contato com situações que procuravam confirmar que o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens (BENTO, 2008, p. 25)², naturalizando a ideia de que sexo e gênero eram sinônimos.

    Ainda que não soubesse a diferença da anatomia biológica entre os sexos masculino e feminino, acatei sem contestar as imposições da escola e passei a encenar, da maneira que eu conseguia, a masculinidade exigida.

    A certeza da escola de que eu era um menino emergia de um pedaço de papel onde estavam escritos um nome e um sexo hetero atribuídos a mim quando eu era um bebê. É o que Viviane Vergueiro Simakawa (2015) chama de pré-discursividade caracterizada como o entendimento sociocultural – historicamente normativo e produzido, consideravelmente, por projetos coloniais – de que seja possível definir sexos-gêneros de seres a partir de critérios objetivos e de certas características corporais (SIMAKAWA, 2015, p. 61).

    Agora que eu falava que tinha algumas certezas e poderia contestar as afirmações que eram feitas a meu respeito, o medo instituído pela cisgeneridade branca heterossexual normativa me exigia prudência.

    Hoje entendo que esse medo era resultante das técnicas disciplinares que operavam sobre meu corpinho afeminado preto, manipulando meus gestos e comportamentos, tentando de todas as maneiras um adestramento (FOUCAULT, 1975).

    Reivindicar outro nome e outro pronome de tratamento não era um risco que estava disposta a correr. Ainda que eu fosse uma criança, com pouco mais de 6 anos de idade, decifrava com exatidão os discursos adulto-centrados que decidiam quais infâncias tinham o direito de existir e quais infâncias precisavam passar por um realinhamento.

    A esse respeito, Paul Preciado (2014) afirma que a criança é um dispositivo pedagógico terrível e um artefato biopolítico que permite o emprego diário de técnicas disciplinares (FOUCAULT, 1999) na expectativa de normalização e normatização de um adulto.

    As técnicas disciplinares estavam presentes nos jogos, nos brinquedos e brincadeiras, nas filas, nas atividades escolares, nas cores das mochilas e lancheiras, nos cartazes, nos banheiros, nos uniformes, nos cortes de cabelo, nos nomes e pronomes de tratamento, tudo rigorosamente separado por gênero.

    As atitudes que, até pouco tempo, eu expressava livremente em público, agora ganhava ares de subversão e precisavam ser mantidas longe dos olhares inquisidores. Assim, a peruca de toalha de banho ficou para trás, mas a certeza de que eu era uma menina, não! Tudo o que eu era, no fim das contas, explica Foucault (1999), não escapava à sexualidade. Ela estava presente o tempo todo, subjacente a todas as minhas condutas, já que ela era o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas. Inscrita sem pudor na minha face e no meu corpo, já que era um segredo que se traía sempre, apesar de todos os meus esforços para controlar meu jeito de andar e de correr, a maneira de gesticular mãos e braços e o modo como balançava a cabeça e mexia nos cabelos. Eu também tentava controlar meu jeito de falar e o tom da minha voz na expectativa de ser o menos visível (OLIVEIRA, 2017, p. 23).

    Ainda que não tivesse consciência, era o dispositivo de sexualidade (FOUCAULT, 1999) operando sobre meu gestual, sobre minha infância, considerada fora dos padrões de normalidade. A norma ronda todos os corpos. Todos! Mas se lança com maior agressividade sobre os corpos meigos (PRECIADO, 2014), os corpos das crianças bichas, viadas, a fim de torná-los cisgêneros heterossexuais.

    Além da homo-transfobia, minhas experiências escolares também foram atravessadas pelo racismo, ainda que numa proporção diferente e menos visível para as outras pessoas. O racismo no Brasil apresenta características muito pontuais e se estrutura a partir dos traços fenotípicos, principalmente a cor de pele, textura do cabelo, formato da boca e do nariz, que serviriam para indicar certa essência dos indivíduos (SANTOS, 2012), o que legitimaria que determinados grupos teriam direitos a certos privilégios em relação ao Estado e a outros grupos sociais (SANTOS, 2012), como acontece com o grupo racial branco.

    A definição de racismo apresentada por Santos (2012) pode ser analisada sob a perspectiva do biopoder (FOUCAULT, 1999), por afirmar que a vida dos brancos vale mais do que a de outros seres humanos (CARNEIRO, 2005, p. 44), especialmente de pessoas negras, exposta a uma série de violências e exclusões.

    A partir das proposições de Foucault (1999), considero, então, tanto o racismo quanto a homo-transfobia como formas de operação do biopoder, logo dispositivos de poder (FOUCAULT, 1999), por atribuir ao corpo alguma utilidade e tentar integrá-lo em sistemas econômicos.

    Apesar da frequência e da violência com que esses dispositivos são postos em operação sobre os corpos de viados, bichas e travestis pretas, afirmo que trata-se de um investimento que não surte os efeitos esperados e as técnicas disciplinares (FOUCAULT, 1999) não agem além da superfície.

    A escola, assim como a sociedade de um modo geral, podia controlar meu corpo, mas não podia controlar meus segredos e, aquele menino normatizado, por obra de um processo disciplinar não era real. Era uma personagem que eu interpretava cotidianamente e que me garantia certo sossego e invisibilidade, já que eu conseguia convencer a todos que estava internalizando suas imposições (OLIVEIRA, 2017).

    Assim, para discutir minha infância, seus atravessamentos com o racismo e com a homo-transfobia e sua relação com o tempo presente e com as experiências de outras pessoas marcadas pelo racismo e pela homo e/ou transfobia, utilizo o método (auto)biográfico desenvolvido pelo pesquisador brasileiro Marcio Caetano (2016), por considerá-lo adequado para articular as dimensões individuais aos fenômenos de caráter mais amplo (CAETANO, 2016, p. 33). Nessa dinâmica, a trajetória de vida vai para além do sujeito central que conduz a narrativa (auto)biográfica.

    Ao focar a pessoa que é narrada, dimensiona-se tal pessoa em um contexto mais amplo. Se entendermos que a constituição de identidade é relacional, as biografias das pessoas poderão ser conectadas/comparadas com as narrações de outras histórias de vida, numa dinâmica que supõe ir além da sucessão cronológica individual ou da constituição de trajetória de vida (CAETANO, 2016, p. 33).

    Adotar a trajetória de vida aliada à perspectiva cultural, pós-estruturalista, com os estudos feministas, de relações étnico-raciais e de gênero, bem como com o conceito de interseccionalidade proposto pela jurista negra estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002), me possibilita compreender as narrativas como resultado de práticas cotidianas as quais, por sua vez, podem ser vistas como históricas e denunciam as regras que as governaram e as produziram (CAETANO, 2016, p. 33). Ainda é possível encontrar nas narrativas do passado mais que as justificativas e os sentidos que os sujeitos atribuem para as configurações do presente. Para quem investiga, interpretam-se as leituras que esses sujeitos fizeram dos caminhos e das relações estabelecidas para chegar às suas configurações do presente (CAETANO, 2016). A narrativa (auto)biográfica como metodologia de trabalho toma

    o discurso sobre o sujeito como o centro de interesse e fundamenta outra perspectiva do fazer ciência. Ela propõe que, por intermédio de relatos particulares, outras dimensões mais amplas sejam articuladas para o entendimento dos fenômenos sociais e, por conseguinte, pensadas suas sequelas nas trajetórias dos sujeitos. Levando em consideração que nas narrativas, como nas memórias, o passado se reconstrói discursivamente de maneira não linear, com superposições de tempo, reflexões e espontaneidade, o que retorna não é o passado em si, mas a (re)leitura das imagens e experiências armazenadas na memória estimuladas em um determinado presente e sob certas circunstâncias. Em outras palavras, não é o passado linear que se reconstitui na narrativa, e sim tudo aquilo que foi privilegiado na experiência que marcou nossos corpos e auxilia na forma como nos colocamos no mundo hoje. (CAETANO, 2016, p. 34-35).

    Minhas experiências individuais, assim como de outras pessoas, como a de viados, de bichas e de travestis pretas, preservadas na memória, podem ser o resultado de reflexões atualizadas por vivências de hoje, mas também podem disparar mecanismos de controle dos atos do presente.

    Sulka: a mulher com pau!

    Desde que iniciei minha trajetória escolar, criei um mundo paralelo e pedia ao tempo que se apressasse em me fazer adulta e que as poucas ruas de chão batido que eu conhecia me levassem para longe, para um lugar seguro, onde pudesse me expressar livremente, ter longos e reluzentes cabelos, amigas e amigos parecidos comigo e roupas coloridas e brilhantes iguais às que eu via em fotos que estampavam as capas das poucas revistas de fofoca e de moda a que eu tinha acesso (OLIVEIRA, 2017, p. 24).

    O tempo teimava em passar devagar e as ruas por onde eu caminhava parecia que sempre me levavam para uma escola. E foi numa dessas escolas quando eu tinha em torno de 12 anos, quando cursava o antigo curso ginasial, que tive a certeza de que minha existência seria possível. De que eu poderia ser uma mulher com pau!

    Nessa idade já tinha sido apresentada ao troca-troca com os meninos da rua e já sabia a diferença entre peru e piriquita; piroca e xoxota; caralho e buceta; pênis e vagina. Era quase uma especialista no assunto.

    A construção da masculinidade, numa cidade do interior do Paraná, seguia ritos que eram proibidos aos meninos afeminados, chamados de viadinhos, de bichinhas, de mariquinhas, para lembrá-los que, hierarquicamente, eram inferiores³. Masculinidade no singular mesmo, pois havia a naturalização de códigos de condutas que reforçavam a exigência de um alinhamento entre sexo biológico, gênero e orientação sexual.

    As questões relacionadas à raça, embora invisíveis para a maioria das pessoas, se materializavam na imposição de uma branquidade hegemônica que exigia dos meninos negros uma adaptação às normas de conduta concebidas a partir da experiência da população branca que se colocava como modelo universal de humanidade (BENTO, 2002, p. 25). Essa masculinidade celebrada por homens cisgêneros heterossexuais adultos e imposta aos meninos, mais do que racismo, era o obstáculo que me impedia de estabelecer laços de amizade e autorizava meu isolamento.

    Distante dos padrões de uma infância universal (DORNELES, 2010) – branca, cisgênera heterossexual e de classe média – eu passei por um processo classificatório que instituiu minha anormalidade, sendo vista como representante de uma infância perigosa (RAMIREZ; MARÍN-DÍAZ, 2007), podendo colocar as infâncias ditas universais em risco.

    Os pontos que podiam me conectar a esses meninos – classe social, pertencimento racial, área geográfica, geração, etc. – perdiam todo o sentido por conta do valor atribuído a minha sexualidade, a minha viadagem, a minha bichice, a meu afeminamento, não havendo a possibilidade de uma conexão entre dois seres humanos iguais (Chimamanda Ngozi ADICHIE, 2019, p. 17).

    Minha sexualidade era minha história única, como explica Adichie (2019), autorizando a criação de estereótipos e me traduzindo de maneira reduzida, incompleta.

    Dessa forma, aprendi a não me ver para além dessa história única (ADICHIE, 2019) e a me conformar com o isolamento e a me contentar quando não era incomodada com apelidos ou xingamentos homo-transfóbicos ou racistas.

    Assim, quando fui convidada a participar de uma rodinha de conversa, ainda que não entendesse exatamente o porquê, pude sentir o gostinho de fazer parte, ainda que numa escala menorizada, restrita a história única que contavam de mim e ao papel de pasto para satisfazer as taras de pré-adolescentes punheteiros.

    O fato aconteceu num sábado pela manhã, após a aula de educação física. Como acontecia todas as semanas, assim que o professor deixava a escola, os meninos da minha e de outras turmas se reuniam, religiosamente, em volta de revistas pornográficas que traziam de suas casas ou subtraíam de uma banca de jornal na rodoviária, no centro da cidade. Entre uma página e outra que folheavam, faziam comentários em voz alta, apertavam e balançavam o pau, alguns o exibiam duro, numa evidente tentativa de demonstrar que dominavam os códigos de masculinidade impostos pela cisgeneridade heterossexual e que estavam alinhados com eles.

    Esse ritual era utilizado para manter afastados corpos que expressavam masculinidades periféricas, inferiorizadas pela norma da cisgeneridade heterossexual branca. Quando me preparava para ir para casa, os meninos começaram a gritar e acenar em minha direção.

    Entre gritos eufóricos e olhares de surpresa, repetiam:

    - Você está na revista! Você está na revista!

    Desconfiada e um pouco confusa, me aproximei da rodinha. Alguns estavam sentados no chão, outros de cócoras, outros em pé curvados para ver melhor as fotografias daquela revista em cores, com textos em inglês, provavelmente impressa nos Estados Unidos da América.

    Timidamente me aproximei enquanto os meninos continuavam repetindo:

    - Você está na revista! Você está na revista!

    Curiosa, me abaixei e fixei os olhos no pôster central que um deles abriu cuidadosamente. Apontando para a modelo de origem asiática chamada Sulka, ele me falou:

    - Ó! É uma mulher com pau!

    A imagem me hipnotizou de uma maneira que os gritos dos meninos desapareceram por alguns instantes. Só queria ver aquela mulher com pau, com seios volumosos, cintura fina, quadris avantajados, coxas arredondadas, completamente nua, excitada, usando um belíssimo par de sandálias de saltos altos, deitada confortavelmente em uma cama enorme, em meio a travesseiros e lençóis da cor de marfim.

    Aquele ensaio fotográfico me transportou para outro mundo. 

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