Homens, Meus Irmãos
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Sobre este e-book
Autor de obras incontornáveis como A Vida Intelectual: Espírito, Condições e Métodos (1921) e As Grandes Teses da Filosofia Tomista (1927), o padre A. D. Sertillanges ajuda-nos a compreender, neste pequeno livro, a importância do amor ao próximo na vida cristã, aprofundando questões tão importantes como a amizade, a caridade, o perdão e, claro, o novo mandamento de Jesus Cristo.
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Homens, Meus Irmãos - Antonin-Dalmace Sertillanges
OS NOSSOS IRMÃOS HUMANOS
Por natureza
Se não houvesse em nós tanta desordem e tantas feridas, não seria necessário recordarmo-nos dos laços que nos ligam aos outros. Onde os nossos interesses exclusivos, as nossas paixões e as nossas pretensões se calam, o amor não se recusa. Todas pessoas amam o seu semelhante
, dizem os filósofos antigos. Os indícios mais vulgares previnem-nos, neste caso, das mais altas verdades. O valor que atribuímos à conversação, aos banquetes, às reuniões, às viagens em grupo, aos interesses comuns; a circunstância de nunca desfrutarmos plenamente de nada sozinhos, e o facto de nada ser agradável ao homem sem a presença de um outro, não serão claros testemunhos disso mesmo?
No estrangeiro, quando dois compatriotas atormentados pela solidão se cruzam, a simpatia entre eles é imediata. Poder, por um instante, estar próximo de alguém! Nesse momento, ouvimos a voz do sangue
que a natureza clama.
Diz-se que há almas insulares, que se recusam a conviver com o género humano; tais almas são raras, e o seu esplêndido isolamento é sempre parcial; é sinal de um egoísmo ao qual se aliam, habitualmente, vários vícios.
Santo Agostinho dizia: Não há nada mais sociável, por natureza, que o homem, e não há nada menos sociável que o pecado
. Como o pecado está por toda a parte, em toda a parte padece também a amizade humana, em maior ou menor medida; mas a natureza subsiste, e não devemos invocá-la quando substituímos o antigo provérbio o homem é amigo do homem
por um outro, seu contemporâneo, e igualmente aceite: O homem é o lobo do homem
.
Deve achar-se um equilíbrio entre o instinto social e o ávido apego que sentimos por nós mesmos. Esse equilíbrio é constantemente rompido, pelos mesmos que deploram a sua ausência. Se os egoístas são mal vistos no mundo, é porque o mundo está cheio deles. Cada obsessão egoísta ofende todas as outras. No entanto, a razão que traduz o instinto natural tem pressentimentos que importa enaltecer: é ela que cria a solidariedade; é ela que proclama cada vida como uma parcela de uma vida mais vasta e comum, parcela que vai aumentando, à medida que a vida progride. Viver é receber; mas é também dar. Trocar, digamos. Só Deus dá sem receber.
Se refletíssemos, ou antes, se a nossa ardente obstinação consentisse na reflexão, descobriríamos que o amor mútuo é entre todos os preceitos o mais prático, e o mais complacente. Nele se descobrem as condições da cooperação, cuja noção é, por assim dizer, idêntica à de sociedade, de adaptação mútua, de vida. Onde faltam bons sentimentos, a ação falha, e é bem sabido o quanto cada um depende da ação de todos.
Santa Catarina dizia que Deus nos força à caridade pela necessidade. Ele força-nos, de facto; mas uma influência satânica opõe-se à Sua. Os homens rejeitam aquilo a que estão obrigados, e é natural que sofram por isso. Ninguém viola impunemente as leis primitivas.
Recuando à origem da cooperação e da amizade natural, a razão encontra a ideia criadora. Essa ideia de homem, a que a Bíblia, antes de Platão, atribuiu precedência sobre todas as outras, comporta a nossa unidade, ao mesmo tempo que prevê as nossas distinções e atributos. O sol ilumina-nos sem nos reunir; mas a luz de Deus une-nos à partida, e só depois revela os contrastes entre nós.
Deus concebe-nos como raça, e só depois como indivíduos. Ele diz façamos o ser humano
, e só depois pensa nos homens. A sua concepção da humanidade é como um céu que se despedaça em astros. Nesse céu disperso, os planetas buscam os respetivos sóis, e os sóis marcham em constelação. Assim, a ideia humana, una em si mesma mas fragmentária na matéria, tende sempre a reformar-se, de modo mais ou menos árduo. Daí as consequências morais que se impõem a todas as consciências retas.
Mesmo as nossas diferenças, no fim de contas, exigem a nossa unidade. Aqueles a quem chamamos os outros
, não são tão outros, nem por vezes tão hostis como imaginamos. A personalidade do outro — e não apenas de um ente especialmente querido — é uma riqueza incomparável, ao nosso serviço. Se soubéssemos captar o que essa personalidade contém para nós, o crescimento, o estímulo, a retificação, o controlo, a prova, daríamos graças por todas as almas.
Quanto mais somos nós próprios, e desde que permaneçamos na retitude, mais somos capazes de nos adaptar a um nosso semelhante igualmente reto. Todas as formas de humanidade, purificadas dos seus excessos, se sentem fraternas. Todas representam uma intenção da Providência e um rosto da Criação. Postas devidamente em ação, as suas oposições conciliadas multiplicam de força, e quanto maior é a oposição, mais a força se multiplica.
Os homens opõem-se uns aos outros, porque cultivam o falso eu
. Os eus
verdadeiros formam uma harmonia, exprimem rostos de humanidade, que sempre se conciliam. Inversamente, as paixões são quezilentas, monopolizadoras e exclusivas; quando se põem de acordo, agravam-se; reforçando-se mutuamente, recomeçam a batalha.