Liberdade, para quê?
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Liberdade, para quê? - Georges Bernanos
Copyright © Éditions Gallimard, 1953
Copyright da edição brasileira © 2020 É Realizações
Título original: La Liberté, pour quoi faire?
Editor
Edson Manoel de Oliveira Filho
Produção editorial
É Realizações Editora
Diagramação, capa e projeto gráfico
Nine Design Gráfico | Maurício Nisi Gonçalves
Preparação de texto
Luisa Tieppo
Revisão
Lucia Leal Ferreira
Produção de ebook
S2 Books
ISBN - 978-65-86217-26-1
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução
desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.
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Telefone: (5511) 5572 5363
atendimento@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br
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Capa
Créditos
Folha de rosto
Nota da segunda edição francesa
Prefácio
1. A França perante o mundo de amanhã
2. Liberdade, para quê?
3. Revolução e Liberdade
4. O espírito europeu e o mundo das máquinas
5. Nossos amigos, os santos
Apêndice
Notas
Mídias sociais
NOTA DA SEGUNDA EDIÇÃO FRANCESA
Tendo chegado tarde aos romances, Georges Bernanos (1888–1948) só os escreveu durante dez anos, mas fê-los violentos, noturnos, soberbos. Nascidas sob o signo do diabo e de seus monstros, atravessadas ao mesmo tempo pelas vertigens e pela busca espiritual do mundo contemporâneo, suas ficções rivalizam com as de Dostoiévski. Nelas, o sobrenatural faz parte da aventura; o padre se torna o herói de uma epopeia. Em seus escritos de combate, Bernanos coloca a mesma energia, reforçada por uma ironia cruel e por um forte sentido do cômico, no combate contra a injustiça, contra a mediocridade, contra a sociedade.
A morte impediu Georges Bernanos de estabelecer a versão final de Liberdade, para quê?. Com este título, o crítico Albert Béguin reuniu e editou, pela Gallimard, no começo de 1953, os textos das conferências proferidas por Bernanos do outono de 1946 ao outono de 1947, após sua volta do Brasil, onde se tinha refugiado entre 1938 e 1945 a fim de evitar qualquer conluio com a impostura ambiente. Albert Béguin explicava-se nos seguintes termos em sua Nota do editor
:
Durante o último inverno de sua vida – 1947-1948 –, Georges Bernanos tinha mandado copiar os textos das conferências proferidas por ele ao longo dos dois anos anteriores, na intenção de fazer com elas um livro. Porém, absorvido pela redação de Diálogos das Carmelitas, e depois debilitado pela doença que o levaria em julho de 1948, ele não pôde dar prosseguimento a esse projeto. Ficou-nos uma pilha de cadernos manuscritos, de folhas soltas, e de cópias mais ou menos revisadas, nas quais não é fácil compreender nem a ordem das conferências, nem o plano do livro futuro.
Apresentamos, sem qualquer alteração, as três conferências pronunciadas em setembro de 1946 nos Rencontres de Genève [Encontros de Genebra] (O Espírito Europeu
), em fevereiro de 1947 no grande anfiteatro da Sorbonne (Revolução e Liberdade
), no outono de 1947 na Argélia para as Irmãzinhas de Charles de Foucauld (Nossos Amigos, os Santos
): os manuscritos estão intactos e perfeitamente passados a limpo.
Os dois outros textos – A França Contra os Robôs
e Liberdade, para quê?
– são resultado de uma colagem
tornada necessária pelo estado dos manuscritos. Bernanos não ficava contente de reescrever quase por inteiro, todo dia, no meio de suas viagens, a conferência do dia anterior, com a qual ele nunca ficava satisfeito; ele também retomou, junto com essas contínuas reescrituras, partes dessas conversas para inseri-las nas da Sorbonne ou de Genebra. Portanto, estávamos diante de várias versões dos mesmos textos, e diante de manuscritos fragmentários cuja ordem primitiva é muitas vezes impossível de reconstituir.
Acreditamos ter tomado a única posição possível, classificando em duas rubricas principais esses membra disjecta, deixando juntas as partes ligadas por uma coerência manifesta, e dispondo essas partes segundo uma ordem bastante livre. Pareceu-nos resultar disso uma composição por alternância e reprise de temas, não tão diferente do método seguido por Bernanos em As Crianças Humilhadas, por exemplo, ou Nous Autres Français [Nós Outros Franceses]. As mesmas preocupações, para nem dizer as mesmas obsessões, reaparecem de um capítulo a outro. Achamos que devíamos suprimir apenas as repetições literais, proibindo-nos qualquer modificação do texto e qualquer corte.
Em apêndice, damos ao público alguns preâmbulos e apóstrofes, que teriam rompido a continuidade da reflexão, mas que contêm aqui e ali confidências de Bernanos a seus ouvintes, que, achamos, não iriam frustrar seus leitores.
O texto da presente edição foi estabelecido por Pierre Gille a partir dos manuscritos e dos textos datilografados.
PREFÁCIO
Sim, meu Deus, liberdade, para quê? E para quê esses países livres ou considerados livres, para os quais esse ideal de liberdade constitui a principal herança das antigas cristandades europeias? Esta tirada, atribuída a Lênin, que dá título à reunião das últimas conferências de Bernanos, poderia parecer menos atual hoje, num mundo em que, de qualquer jeito, as liberdades democráticas se desenvolvem, ainda que restem no planeta imensas manchas em que aquilo que impera é a servidão sob suas diversas faces, a prisão de contestadores, o esmagamento ideológico ou econômico das massas. Mas será que essa liberdade de que gozamos é tão real assim? Não vemos, dia após dia, crescer o poder do Estado, e a tecnocracia infiltrar-se nas veias de nossa vida cotidiana? É difícil também abstrair os milhões de excluídos que nossas sociedades fabricam e para os quais – é um clichê recordar isso – algumas de nossas liberdades mais concretas, como a de comprar, entre outras, têm o verdadeiro rosto da ironia. Sim, no fim das contas, liberdade, para quê? Esse luxo... A pergunta já se colocava exatamente nos mesmos termos em 1945, quando, vencido o nazismo, a Europa podia acreditar-se libertada do pesadelo totalitário. Ela se colocava nos mesmos termos, com a única diferença de que Bernanos era o único, rigorosamente o único, a colocá-la.
Em 28 de junho de 1945, o romancista retorna a seu país, respondendo a um chamado insistente e pessoal do general de Gaulle. Ele passou oito anos no Brasil, onde se tinha refugiado desde antes de Munique, em setembro de 1938, achando o ar de seu país irrespirável para qualquer espírito livre preocupado em exprimir-se livremente. Mas será que o ar estava mais respirável na França de 1945, libertada certamente da presença alemã e da impostura de Vichy? Essa é a questão que ele se coloca antes mesmo de retornar a Paris. E muito rápido distingue no rosto de seus compatriotas, em suas palavras, em seus comportamentos, os temíveis estigmas dos anos pelos quais acabam de passar. Eles podem ser resumidos numa palavra: acomodação e um estado de espírito cujos sinônimos são o famoso sistema D
(D de dar um jeito
), o mercado negro, a depuração – isto é, a liquidação das vergonhas nas costas de vítimas escolhidas, inquestionáveis, cuja cabeça é raspada, quando são mulheres [ 01 ], ou que são fuzilados, quando são milicianos de vinte anos. Uma certa covardia no ar, uma palavra que não quisesse faltar àquilo que ela considera a vocação de toda palavra: simplesmente dizer a verdade!
Porque é da verdade mesma que se trata, ainda mais cortante na medida em que é empregada num mundo que mente, e que se distingue, pela voz inumerável da propaganda, por disfarçar por trás de falsas aparências – às vezes religiosas, como se viu durante a Guerra Civil Espanhola – as operações mais abjetas, e, por exemplo, a derrubada de um regime legal, operação acompanhada pela execução de alguns milhares de coitados cuja única falta era não ir à igreja. Bernanos sabe o que custa, diante desse espetáculo, insurgir-se e escrever, em 1937, Os Grandes Cemitérios sob a Lua. Ele sabe também, desde maio de 1940, o que custa a um país deixar-se balançar por dez anos pelas sereias do nacionalismo: disso à colaboração com Hitler, não havia mais do que um passo, dado pela derrota. Nisso também o romancista, desde seu exílio, enfrentou, abandonando definitivamente o romance pelo combate da pena, esse testemunho de recusa, de cólera e de esperança que fez dele, nos grandes jornais brasileiros, o representante da Resistência Francesa. Dissipar o equívoco hipócrita do pétainismo, provocar o despertar de uma consciência nacional, ressuscitar a esperança – aí estava um objetivo à altura desse guerreiro. Na França de 1945–1948, tudo acontece de outro jeito. O mal não está mais visível a olho nu! Outras testemunhas lúcidas, como Camus e Char, perceberam imediatamente: aquela era a ilusória aventura de uma Libertação mal-acabada. Bernanos esperava da Libertação da França uma insurreição de todas as forças do espírito contra um Mundo Moderno que não tinha o que fazer com a liberdade, e nem mesmo com a vida humana, firme que estava na rota da produção, da dominação. E o que ele viu? Em seu próprio país, esse mundo recomeçar, como se nada tivesse acontecido... O que haveria de mais inocente, afinal, do que um país em ruínas trabalhando em sua reconstrução, no reerguimento de sua economia, no estabelecimento de novas estruturas institucionais? Mas o que surgiu, após a grande abdicação coletiva, da obra de justiça e de expiação? E quem se preocupa verdadeiramente com o lugar da França no mundo, e, para começar, com esse velho Império, que esteve ao seu lado e que agora ameaça, porque não levamos a sério nosso compromisso com ele – penso no famoso discurso de Brazzaville
– fragmentar-se pedaço por pedaço? O território foi libertado, pensa Bernanos, mas e as almas? O totalitarismo hitlerista parece ter sido vencido, mas terá o espírito totalitário morrido junto com ele? Aqueles mesmos cidadãos que se entregam às alegrias recuperadas das eleições e dos referendos estarão libertados do Estado, desse Estado do pós-guerra, tão onipotente quanto discreto? E o gosto pela ditadura, não se contentaria em mudar de cor, de passar da tentação fascista à miragem marxista? De fato, essa é a época em que toda uma intelligentsia parisiense se joga nos braços do comunismo stalinista – mesmo que precise fechar piedosamente os olhos para os imensos campos onde apodrece, do outro lado da cortina de ferro, tudo aquilo que há de inteligência livre e de resistência à ditadura do Partido... Como furar esse silêncio? Como desmascarar (outra vez) essa cumplicidade secreta das almas com um espírito de abdicação – isto é, ao mesmo tempo de servidão e de submissão – que agora se enfeita com os belos nomes de democracia e de justiça social?
É esse o esforço exaustivo a que se entrega Bernanos nos últimos três anos de sua vida, e que, para ele, é objeto de uma determinação inflexível: Amanhã como ontem, aqui como no Brasil
, escreve ele em 27 de dezembro de 1945, falarei para aqueles que não querem ser enganados, que não confundem ilusão e esperança
. Jornalista ou conferencista, para ele tudo é tribuna – do Combat ao Le Figaro, passando por La Bataille, Carrefour, L’Intransigeant..., e diante das plateias mais variadas da França, da Suíça, da Bélgica, do Norte da África. Os artigos e conferências garantem, decerto, sua subsistência e a de sua família, essa é a lei do ofício de escritor, agravada no caso daquele que só vive da pena. Mas essa pena tanto vive dele quanto ele vive dela. Essas páginas, o romancista verdadeiramente as arranca dele mesmo, e elas às vezes têm a inflexão da morte que se aproxima. Se considerássemos apenas as conferências, poderia haver a tentação de desvalorizá-las em comparação com os artigos, nos quais brilha o talento do polemista que ele não queria ser. Às vezes vigorosíssimas, levadas pelo tornado de uma paixão que não é a do comando (mesmo que se valha de todos os meios para comunicar-se com a plateia), elas podem parecer em outros momentos animadas por um movimento demonstrativo mais lento, como se o mal resistisse à análise, se escondesse atrás de mil pretextos que precisam ser desfeitos um a um, obstinadamente. Também é preciso adaptar-se ao ouvinte, que não poderia, sem consequências, ser levado para fora das trilhas do pensamento pré-pronto. Esse cego, esse homem que as forças estranhamente ativas do conformismo (das quais a propaganda estatal é uma forma um pouco menos mascarada) trabalham para cegar, é preciso tempo, voltas e desvios para fazê-lo ver as coisas de cima. Essas mudanças de tempo são obviamente mais aparentes nas duas primeiras conferências
, montagens operadas por Albert Béguin a partir de numerosas versões fragmentárias de duas grandes séries de conferências dadas entre dezembro de 1946 e a primavera de 1947: nelas, as mudanças são reforçadas por uma certa redundância. Da maneira como estão – e seria impossível admirar o suficiente a engenhosidade e o escrupuloso rigor do trabalho de Béguin –, elas oferecem, junto com as duas seguintes, a possibilidade de adentrar a meditação bernanosiana definitiva, aquela em que o romancista afronta e perscruta o mundo que lhe é contemporâneo – mundo que é mais ainda o nosso.
Quatro grandes discursos apaixonados sobre as misérias do nosso tempo
, era assim que Albert Béguin chamava os quatro primeiros dos cinco textos que publicou em 1953. É exatamente sob essa luz que eles devem ser abordados: uma reinscrição incessante dos motivos que obcecam Bernanos, não sua repetição. Assim, eles diferem, tanto no mecanismo de sua mise-en-scène quanto em seu plano de análise, mesmo que isso não fique claro à primeira vista.
A primeira conferência
, se aceitamos chamá-la assim, está sob o signo da esperança e da luta. O conferencista formula o paradoxo de que o rebaixamento atual do país constitui sua oportunidade histórica. Ele caiu, enfrentando a derrota mais acachapante de sua história, mas isso aconteceu talvez para que milhões de homens, seus amigos distantes da América Latina ou de outros lugares, percebam mais claramente o lugar que ele ocupa na história do mundo, em sua consciência. Ele sofre com esse rebaixamento, mas o sofrimento é a condição de toda redenção. Um combate implacável está sendo travado entre a Técnica e o homem, mas a primeira só é forte, no fundo, na medida em que encontra cumplicidade nos apetites do segundo. Contudo, o esquema profundo da demonstração, ligado à lógica da conferência, está marcado pela colocação em desequilíbrio das forças que se encaram. O adversário é dotado do poder absoluto:
Eis que o Estado moderno tem em sua posse, graças à técnica, o mais formidável dos instrumentos de poder, com o qual tirano nenhum jamais teria ousado sonhar desde o princípio das eras.
Seus meios são gigantescos: trata-se da máquina colossal de propaganda
. O risco é total: a técnica pode exterminar a humanidade, pode também degradá-la a tal ponto que ela deixe de merecer o nome de racional
. À sua frente, no dispositivo colocado em operação, não há ninguém, ou quase ninguém: o pensamento francês curvou-se
gradualmente sob a pressão do adversário. E os franceses, à parte um punhado
de resistentes que ademais morreram no combate, há muito tempo não constituem mais do que uma massa
, presa de uma vertigem suicida, e disponível a quem quiser tomá-la... Resta, trazido pela voz solitária do conferencista, o ato de fé, a afirmação pura, quase desesperada: Mas nós já sabemos que o pensamento francês não capitulará
. É esse o esquema do apelo à resistência e à vitória, diante de um espetáculo que é quase o das evidências, e contra ele.
A segunda conferência
, composta no mesmo momento, não apresenta nem o mesmo tom, nem exatamente o mesmo mecanismo demonstrativo: mais sombria, ela prefere abordar o mal em toda a sua amplitude e em toda a sua profundidade: A humanidade inteira está doente
. A doença de que ela sofre é uma doença espiritual, e a mais grave: é a perda do espírito de liberdade. De nada serve responsabilizar por isso as ditaduras que acabam de arrasar o mundo, o mal vem de mais longe, e o verdadeiro responsável é a sociedade técnica, esse misto de Estado e Cartel que se acomoda tão bem à democracia, mas que visa exclusivamente à ditadura política mundial pelo intermédio da ditadura econômica. Esse princípio de submissão do indivíduo é também, por uma perversão das fontes espirituais, um princípio de crueldade: ele explica tanto a alma do carrasco totalitário quanto a da vítima que consente e pavoneia o álibi da resignação. Vemos que, se o esquema da ação e os procedimentos são em geral os mesmos – deformação do adversário, desqualificação dos heróis de costume: a França, os católicos, o chamado à mobilização –, o conferencista consegue ser persuasivo por vias diferentes: ele conduz o ouvinte a olhar o rosto de um monstro que está amedrontado e que encontra sua força mais na intimidação, na intoxicação sorrateira, do que no combate a céu aberto.
Na primeira variante, poder-se-ia dizer que o sujeito está ausente; na segunda, que está desvalorizado. Nos dois casos, o lugar está designado, vazio, para que o ouvinte o tome para si (a imagem do general de Gaulle, evocada em perfil de nuca, duas vezes, na quarta parte da primeira conferência
, bem parece ter essa função de designar um espaço livre). Uma terceira variante é aquela que inverte de maneira dramática o esquema da ação e faz do próprio mal o sujeito do desejo. Ela aparece em filigrana na conferência pronunciada na Sorbonne em 7 de fevereiro de 1947, intitulada por Bernanos Revolução e Liberdade no lugar do título anunciado, que era Democracia e Revolução.
Essa conferência, menos elaborada formalmente (Bernanos teve de compô-la com pressa) se coloca antes de tudo num plano duplo que hoje chamaríamos de sociológico e psicanalítico. Esses termos devem ser tomados com precaução, se é verdade que o olhar do conferencista é e permanece – ele deixa isso bem claro – o de um romancista. É também o de um homem que enxerga os acontecimentos da história à luz da concepção cristã do homem. Esse olhar não é obstáculo: Bernanos, de um lado, analisa a evolução do maquinismo, prostituído
pela especulação, depois monopolizado pelo Estado, e de outro explora as raízes espirituais, no indivíduo, de sua submissão à tentação mecânica – que é uma forma de droga. E aquilo que aparece nessa dupla análise é que, há mais de um século, o homem, o usuário das máquinas, perdeu a iniciativa. É o maquinismo, pervertido ele mesmo pelo reino do dinheiro, que conduz o jogo e que faz do indivíduo, até o mais profundo de seu espírito, aquilo que quer. Mas o que quer ele? Esse é o ponto de partida da prosopopeia que corre através do texto e que, pouco a pouco, vence a simples dialética: prosopopeia da civilização técnica, e, de modo ainda mais global, do Mundo Moderno. Ei-lo, o monstro, o colosso, tomando nossos cérebros, a fim de dar para si, talvez logo, um material humano feito para [ele], apropriado às suas necessidades
. Ele quer, ele exige, ele tem medo. Ele não quer ser discutido
, e sobretudo ele nos ordena, nos comanda, nos pressiona para produzir, para não nos deixar tempo de refletir
. A seu lado, nossa submissão – de nós, é só isso que ele espera. À sua frente, nossa recusa, por menos que ainda tenhamos a coragem e o desejo de exercê-la... Ele quer tomar o planeta, a menos que não se destrua, e o homem com ele, numa dessas crises de delirium tremens que ele bem conhece. O ouvinte e o leitor se encontram no lugar do adversário do herói maléfico, e em situação de urgência.
A quarta conferência, a mais longa (Bernanos só proferiu cerca de dois terços dela) e mais elaborada, é anterior às outras três: foi dada no contexto dos Encontros Internacionais de Genebra de 1946, centrados no tema do Espírito Europeu. Nela encontramos todos os temas que já vislumbramos, mas em seu desenvolvimento mais amplo, e, por assim dizer, em estado de incandescência. A imaginação do romancista, a sutileza do dialético, a força do visionário, conjugam-se para fazer deste texto um extraordinário discurso profético, cujas lucidez e audácia impressionam ainda mais hoje, quando muitas das ilusões de ontem já se dissiparam. Refutando um a um dos argumentos que o Mundo Moderno usa para tranquilizar seus adeptos (os famosos imbecis
que não enxergam nada por si próprios e que acreditam em tudo que lhes é contado), o conferencista tenta convencer sua plateia, e, por intermédio dela, a humanidade, da ameaça que pesa sobre o mundo, e da qual o cataclismo de 1940–1945 e as bombas de Hiroshima e de Nagasaki só dão uma primeira ideia. É a angústia, é o terror que domina, ainda que o humor guarde seus direitos. E subitamente, como que convocado, suscitado pela imensidão da ameaça, vemos delinar-se melhor, gradativamente, aquilo a que chamamos o lugar do sujeito: O mundo só será salvo por homens livres. É preciso fazer um mundo para os homens livres.
Curiosa mas significativamente, esse lugar é duplo: ele coloca lado a lado o homem, o herói de amanhã,