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San Tiago Dantas: A razão vencida
San Tiago Dantas: A razão vencida
San Tiago Dantas: A razão vencida
E-book1.294 páginas17 horas

San Tiago Dantas: A razão vencida

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Sobre este e-book

O homem, que muitos dizem ser o mais inteligente do Brasil, tem pressa. Assim uma reportagem na revista O Cruzeiro, a maior do País, se referia a San Tiago Dantas em 1960. Mas quem foi, ou melhor, quem é San Tiago Dantas?
Brilhante e precoce, sem dúvida. Líder estudantil aos dezessete anos, aos vinte editor de jornal e teórico fascista, um ano depois professor de Direito, a seguir prócer integralista e crítico do nazismo; catedrático aos vinte e cinco, fundador de duas faculdades e titular de três cátedras antes dos trinta anos e ainda diretor da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1942, repudia publicamente o Integralismo, defende a declaração de guerra ao Eixo, propõe a união nacional das forças políticas, reunindo os comunistas inclusive, para afirmação de um regime democrático, e em 1945 elabora parecer firmado por seus colegas professores que nega fundamento jurídico à proposta continuísta do ditador Getúlio Vargas. E, explicitamente, defende substituir a propriedade privada pelo trabalho como núcleo de uma ampla reforma social.
A acusação de oportunista não demorou a lhe ser lançada, e será renovada e ampliada dez anos depois. Então, o alvo será o jovem jurisconsulto procurado por grandes empresas nacionais e estrangeiras convertido em banqueiro, que se alia aos trabalhadores ao ingressar no partido que Getúlio criara para abrigá-los; e, no início da década de 1960, ministro do Exterior, recusa-se a sancionar o novo regime cubano e reata relações diplomáticas com a União Soviética. No começo de 1964, depois de no ano anterior tentar controlar, sem êxito, a espiral inflacionária à frente do Ministério da Fazenda, já mortalmente doente, e agônica a República de 1946, tenta sensibilizar as forças partidárias e articulá-las em uma frente ampla de apoio às reformas democráticas para resgatá-las da polarização que já engolfara a política nacional. Em vão: a direita o vê como um trânsfuga, os conservadores como um ingênuo, e a esquerda desacredita os seus propósitos.
E sobre essas qualidades inegáveis, sobre a admiração e as controvérsias que se acenderam à sua trajetória, esse homem naturalmente grave e professoral difundia um afeto generoso e franco pela família, vendo nos sobrinhos, sempre próximos, os filhos que não pôde ter, e tendo nos amigos da escola os companheiros inseparáveis de toda a vida.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de abr. de 2021
ISBN9786586352238
San Tiago Dantas: A razão vencida

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    San Tiago Dantas - Pedro Dutra

    titulo

    San Tiago Dantas

    A RAZÃO VENCIDA

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    Lumos Assessoria Editorial

    Bibliotecária: Priscila Pena Machado CRB-7/6971

    D978s

    Dutra, Pedro

    San Tiago Dantas: A razão vencida – O ideólogo (1911-1945). / Pedro Dutra. São Paulo: Singular, 2014. V. 1, 752 p.

    Inclui bibliografia.

    eISBN: 978-65-86352-23-8

    Livro digital

    1. Dantas, San Tiago, 1911-1964, biografia. 2. Intelectual, biografia, Brasil. 4. Jurista, Brasil. I. Título.

    CDU 929

    Revisão: Paola Morsello

    Projeto gráfico e diagramação: Microart Design Editorial

    Capa: Aeroestudio

    Versão digital: Microart Design Editorial

    © Pedro Dutra e Thiago Reis

    © desta edição: Editora Singular

    Tel./Fax: (11) 3862-1242

    www.editorasingular.com.br

    singular@editorasingular.com.br

    À memória de meus avós Flávia e Pedro Dutra, dedico este livro.

    A Flávia, Pedro e Guilherme, o amor de seu pai.

    ... a lição de um grande homem não atinge a plenitude da eficácia, senão quando, por um ato de raciocínio, o excluímos de nossa subjetividade, para o contemplarmos, na objetividade de sua posição histórica, pensando e agindo como pessoa dramática da sociedade em que viveu.

    (San Tiago Dantas)

    A homenagem do biógrafo ao biografado é biografá-lo.

    (Millôr Fernandes)

    ÍNDICE GERAL

    APRESENTAÇÃO

    CAPÍTULO I

    O R I G E N S

    • Antepassados: Inhaúma, Porto da baía de Guanabara

    • San Tiago Dantas: origem

    • O herói liberal e o herói de guerra

    • A profissão das armas

    • A Revolta da Chibata

    • A profissão civilista

    • Encontro na capital federal

    CAPÍTULO II

    INFÂNCIA

    • Nascimento e infância no Rio de Janeiro

    • Véspera da Primeira Guerra Mundial

    • O irmão e a irmã

    • A avó e o menino: Copacabana

    • Primeira Guerra Mundial

    • Revolta militar em Copacabana

    • Estadia em Paranaguá

    • A Coluna Prestes

    CAPÍTULO III

    ADOLESCÊNCIA EM MINAS GERAIS

    • A vida em Belo Horizonte

    • Aprendizado mineiro

    • O ginasiano sem escola

    • O fascínio da autoridade

    • Regresso ao Rio de Janeiro

    • Vestibular

    CAPÍTULO IV

    O PÁTIO DA ESCOLA

    • Faculdade de Direito

    • Centro de Estudos de Última Hora

    • Primeiras influências: crítica à democracia liberal

    • Mudança para Ipanema

    • Centro Acadêmico de Estudos Jurídicos – CAJU: os amigos da vida toda

    • A esquerda e o caminho de San Tiago

    CAPÍTULO V

    A MODERNA OBRA DA REAÇÃO

    • A moderna obra da reação

    • O oficial da reação

    • O legado e o legatário

    • Encontro na Livraria Católica

    • O evangelizador da reação e o conversor

    • A geografia da reação

    • O conferencista e seu itinerário

    • A matriz da reação

    • A agenda da contrarrevolução

    • A reação no Brasil

    • O affair Dreyfus e o alinhamento das correntes de direita

    • As estrelas da nova direita

    CAPÍTULO VI

    FASCISMO

    • O fascismo francês

    • L’Action Française

    • Mussolini e o fascismo

    • O jurista do fascismo

    • O fascismo e o Brasil de 1929

    CAPÍTULO VII

    O JOVEM PUBLICISTA

    • Estreia na imprensa

    • O CAJU e a Universidade: a excelência intelectual

    • A vida em 1930

    • Início da vida pública

    CAPÍTULO VIII

    O FIM DA REPÚBLICA VELHA

    • A República carcomida

    • A ditadura do Governo Provisório

    • A presidência da Federação Acadêmica

    CAPÍTULO IX

    O JOVEM IDEÓLOGO

    • O Partido Nacional Fascista Brasileiro

    • O fascismo e a Igreja: a conciliação buscada

    • A revolução instável

    • Reação à Revolução de 1930

    • Uma perspectiva revolucionária?

    • O perigo de uma revolução mal ganha

    • Ação política diária

    • Piratininga

    • O futuro do CAJU

    • A vida em São Paulo

    • Editor de A Razão

    • Encontro com Plínio Salgado

    • A revolução benigna de Plínio Salgado

    • Articulista político

    • Sinais de desencanto

    • A ementa radical

    • O Coringa

    • Dissídio ideológico com Plínio Salgado

    • Retorno ao Rio de Janeiro

    • A vida prática a enfrentar

    CAPÍTULO X

    O MILITANTE INTEGRALISTA

    • Professor

    • A revolução fracassada: sangue e esperança paulistas

    • Revolução?

    • Wäs liegt an meinen Glück! (Que importa a minha felicidade!)

    • O nazismo no poder

    • Uma desastrosa aventura

    • A vida múltipla

    • O militante discreto

    • Sinais de desalento

    • Integralistas e comunistas: o embate nas ruas

    • Interlúdio mineiro: solidão e participação

    • Retorno ao Rio de Janeiro

    • O superintegralismo: pureza e finalismo revolucionário

    • Revolta comunista: o êxito impossível

    • A chaga da tortura

    • Triunfo e paralisia da Ação Integralista Brasileira

    • O revolucionário e o poder

    • Os curtos e fulminantes anos

    • San Tiago e Plínio Salgado – a atração dos extremos

    • As perdas definitivas

    • O professor e a política

    • Sinais de mudança

    • O catedrático menino

    • Getúlio e o Chefe integralista

    CAPÍTULO XI

    QUAL DIREITA?

    • 1937: a ditadura do Estado Novo

    • O poder negado e o poder a conquistar

    • A revolta sem líder

    • A defesa da História

    • Direito e Economia

    • A segunda cátedra

    • Prenúncio de uma revisão liberal

    • O advogado

    • O ato final de Plínio Salgado

    • Um único livro de Direito

    • Sangue sobre solo europeu

    • O tirano e a democracia

    • Qual direita?

    • A ditadura brasileira

    • O antirracismo brasileiro

    • A capitulação de Paris

    • Getúlio e a guerra

    • O desconcerto da direita nativa

    CAPÍTULO XII

    O MESTRE

    • A cátedra definitiva

    • A alma desencantada

    Papio

    • Advocacia

    • A invasão da Rússia

    • A democracia e o Estado burocrático

    • Diretor da Faculdade Nacional de Filosofia

    • O êxito do Bem

    • O Mestre

    • Os Estados Unidos e o Brasil na guerra

    CAPÍTULO XIII

    NOVO NORTE

    • Stalingrado: prenúncio da derrota do Eixo

    • Rompimento público com o Integralismo

    • O novo trabalhismo

    • Intervenção do governo na economia

    • O amigo do poder

    • A advocacia e o poder

    • Vida acadêmica: vaidades e verbas

    • Ensino ao homem de Estado

    • Evolução ou capitulação?

    • Kursk e Sicília: o começo do fim da guerra

    • A queda do Duce

    • A frente interna e o professor

    CAPÍTULO XIV

    UMA NOVA ORDEM

    • A nova ordem que se vai implantar

    • Antigos e novos atores na cena política

    • O protesto medido dos mineiros

    • Getúlio é obrigado a reagir

    • Planejamento: Estado ou governo?

    • A vaidade dos títulos professorais

    • Solidariedade intelectual

    • Sangue brasileiro na Europa

    • A frente russa e a nova frente na Europa

    • A liberação de Paris

    • As conquistas da União Soviética

    • Getúlio e as vozes da oposição

    • O Manifesto dos professores de Direito

    • O ministro da Guerra é candidato

    • A aliança entre Getúlio e Prestes

    • O destino de Mussolini e Hitler, e o fim da guerra na Europa

    • Os comunistas apoiam Getúlio

    CAPÍTULO XV

    ARREMATE

    • A saída da Faculdade de Filosofia

    • Getúlio é derrubado: povo nas ruas, militares no palácio

    • O presidente consentido

    • O grande eleitor

    • O arremate

    FONTES

    BIBLIOGRAFIA DE SAN TIAGO DANTAS

    BIBLIOGRAFIA GERAL

    OUTRAS FONTES

    RELAÇÃO DE NOMES CITADOS

    APRESENTAÇÃO

    O homem, que muitos dizem ser o mais inteligente do Brasil, tem pressa. Assim uma reportagem na revista O Cruzeiro, a maior do País, se referia a San Tiago Dantas em 1960. Mas quem foi, ou melhor, quem é San Tiago Dantas?

    Brilhante e precoce, sem dúvida. Líder estudantil aos dezessete anos, aos vinte editor de jornal e teórico fascista, um ano depois professor de Direito, a seguir prócer integralista e crítico do nazismo; catedrático aos vinte e cinco, fundador de duas faculdades e titular de três cátedras antes dos trinta anos e ainda diretor da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1942, repudia publicamente o Integralismo, defende a declaração de guerra ao Eixo, propõe a união nacional das forças políticas, reunindo os comunistas inclusive, para afirmação de um regime democrático, e em 1945 elabora parecer firmado por seus colegas professores que nega fundamento jurídico à proposta continuísta do ditador Getúlio Vargas. E, explicitamente, defende substituir a propriedade privada pelo trabalho como núcleo de uma ampla reforma social.

    A acusação de oportunista não demorou a lhe ser lançada, e será renovada e ampliada dez anos depois. Então, o alvo será o jovem jurisconsulto procurado por grandes empresas nacionais e estrangeiras convertido em banqueiro, que se alia aos trabalhadores ao ingressar no partido que Getúlio criara para abrigá-los; e, no início da década de 1960, ministro do Exterior, recusa-se a sancionar o novo regime cubano e reata relações diplomáticas com a União Soviética. No começo de 1964, depois de no ano anterior tentar controlar, sem êxito, a espiral inflacionária à frente do Ministério da Fazenda, já mortalmente doente, e agônica a República de 1946, tenta sensibilizar as forças partidárias e articulá-las em uma frente ampla de apoio às reformas democráticas para resgatá-las da polarização que já engolfara a política nacional. Em vão: a direita o vê como um trânsfuga, os conservadores como um ingênuo, e a esquerda desacredita os seus propósitos.

    E quase todos o veem como o manipulador, senão o malversador de seus dotes intelectuais, que, diziam seus críticos, derramavam uma luz fria, que iluminava mas não aquecia, e justificavam todas as capitulações necessárias a satisfazer a sua premente ambição política. Entre essas capitulações, servir o seu talento à causa populista de líderes sindicais cevados nos cofres públicos e a um vice-presidente, depois presidente da República, cuja inépcia e tolerância com a agitação promovida pelo seu próprio partido teriam precipitado o País no descalabro administrativo e na convulsão política que teriam fermentado o golpe militar de abril de 1964.

    Mas a trajetória política de San Tiago, que ele confundiu com a sua vida, autoriza ou desmente essa afirmação? Não teria ele senão buscado imprimir racionalidade e consistência ideológica ao debate político de seu tempo, nele intervindo e empenhando desassombradamente o vigor de sua inteligência, dos dezoito anos até a véspera da sua morte, há exatos cinquenta anos?

    A resposta a essa questão está na história de sua vida, encerrada, precocemente também, aos cinquenta e três anos incompletos, em plena maturidade intelectual, quando já descera, em abril daquele ano de 1964, uma vez mais, a noite das liberdades públicas no País.

    Este primeiro volume da biografia de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, nascido no Rio de Janeiro em 1911, estende-se até 1945, um ano divisor em sua trajetória e também no curto século XX. Então, o jovem ideólogo da direita radical, nutrido pela reação ao legado da Revolução Francesa acrescido pela Igreja Católica e reafirmada pelo fascismo italiano, cedera lugar ao defensor de uma social-democracia nascida da dramática experiência da Segunda Guerra Mundial. O catedrático menino tornara-se o mestre consumado que desprezava os títulos professorais e amava os alunos e era por eles amado. E o jurisconsulto notável, que via na ciência jurídica nativa o maior entrave à realização do Direito entre nós, já encontrara na advocacia a retribuição material ao seu tenaz aprendizado, em medida raramente alcançada entre os seus pares.

    Saber, ter e poder. Dessa tríade que San Tiago tomou para si como metro de sua trajetória, apenas o último elemento – o poder político – ele não alcançaria plenamente. Mas nesses primeiros trinta e quatro anos de vida ele se habilitou, como poucos antes ou depois, a buscar o fugidio poder político que o fascinara já ao pisar no pátio da Faculdade de Direito, aos dezesseis anos.

    O aprendizado que lhe permitisse formular um projeto político consistente de reformas estruturais para o País – o saber; e o ter – a conquista dos meios que lhe possibilitassem cursar uma carreira política desembaraçada de sujeições materiais: reviver para o leitor de hoje essa saga invulgar na história da inteligência brasileira é o propósito e o desafio desta biografia que o Autor procura cumprir, com o lançamento deste primeiro de seus dois volumes.

    Dar voz a San Tiago inscrevendo seus textos elegantes e precisos na narrativa e situando-o em seu contexto histórico mostrou-se o método indicado a descrever, com a fidelidade possível, a sua espantosa atividade intelectual. Nesse sentido, o recuo no tempo se impôs para identificar as suas origens familiares, cujo exemplo ele exaltava, e para mapear as matrizes ideológicas que cedo San Tiago se esforçou por dominar e o inspiraram a primeiro defender a moderna obra da reação: a Revolução Francesa e a reação às suas conquistas; o surgimento da nova direita no começo do século XX, precedendo as revoluções bolchevista, fascista e nazista; e, no rastro sangrento da Primeira Guerra Mundial, o embate ideológico que levaria à Segunda em 1939.

    Ao jovem ideólogo somou-se o catedrático menino que não frequentou regularmente o ginásio e pouco frequentou a Faculdade de Direito, porém desde cedo acumulou espantosos e sucessivos tempos de estudo mais tarde desdobrados inclusive em aulas célebres transcritas em apostilas e ainda hoje, oito décadas depois, editadas em livro.

    E sobre essas qualidades inegáveis, sobre a admiração e as controvérsias que se acenderam à sua trajetória, esse homem naturalmente grave e professoral difundia um afeto generoso e franco pela família, vendo nos sobrinhos, sempre próximos, os filhos que não pôde ter, e tendo nos amigos da escola os companheiros inseparáveis de toda a vida.

    De muitos, um, dizia o sinete que San Tiago estampava em seus livros. Essa síntese ele procurou retirar das ideias e viveu plenamente essa busca, aprendendo para ensinar, ensinando para esclarecer, esclarecendo para transformar. E, no entanto, o poder político não foi alcançado. Mas San Tiago deixou a sua saga intelectual a crédito da história de seu País.

    ***

    Américo Lacombe, Plínio Doyle e Vicente Chermont de Miranda já octogenários recordaram o colega de faculdade e o amigo de toda a vida em depoimentos e cederam seus arquivos pessoais à cópia pelo Autor. Plínio Doyle, testamenteiro de San Tiago, depois de o Autor haver copiado boa parte dos documentos de San Tiago recolhidos ao Arquivo Nacional por iniciativa de Plínio, cedeu ao Autor o que denominou o arquivo literário do amigo e por ele não enviado ao Arquivo Nacional: inúmeras cartas escritas e recebidas, de valor único ao conhecimento de San Tiago.

    Os oito sobrinhos de San Tiago, filhos de sua irmã Dulce e de seu amigo, o médico João Quental, honram a generosa linhagem intelectual do tio: Raul, Felippe, Lúcia, Inês, Maria, Francisco, Violeta e João Luiz abriram seus arquivos, inclusive fotográfico, e atenderam aos sucessivos pedidos de informações e esclarecimentos ao longo de duas décadas, sem, jamais, questionar o Autor sobre o seu trabalho, que generosamente leram uma vez concluído.

    Hélio Vianna Filho cedeu manuscritos das memórias inacabadas de seu pai que iluminam boa parte da vida universitária de San Tiago, seu colega de turma na Faculdade de Direito. Mirthya Gallotti deu à cópia correspondência de Antônio, assim como Ariovaldo Dumihense a de Octavio de Faria.

    A abnegação ao ofício, sempre mal reconhecido pelo poder público nativo, dos funcionários do Arquivo Nacional entre 1989 e 1991 tornou nele possível a pesquisa do Autor. A gentileza dos entrevistados permitiu ao Autor colher preciosas informações e considerações sobre a vida e a trajetória de San Tiago.

    A Paulo Mercadante devo a sugestão de transformar um ensaio sobre San Tiago em sua biografia, e a Millôr Fernandes o registro ao Autor, por um de seus ditos luminosos, de que a homenagem do biógrafo ao biografado é biografá-lo.

    Miguel Reale cedeu seu arquivo pessoal e respondeu a reiteradas perguntas, sem reservas ou sugestões ao Autor. Antônio Paim indicou fontes e corrigiu equívocos ao longo de todo o trabalho. Alberto Venancio Filho, mestre da crítica construtiva, exerceu-a minuciosamente lendo e corrigindo o manuscrito, e Nestor Goulart Reis foi um consultor incansável e seguro. Antônio Carlos Villaça, que anteviu este trabalho, sempre solícito, prestou informações e deu indicações ao Autor.

    Paulo Francis, José Guilherme Merquior, Celso Lafer, José Gregori e Abram Eksterman já ao início estimularam o Autor a enfrentar a tarefa, e José Casado insistiu em ver logo editado este primeiro volume, ao qual Hélio Sussekind trouxe valiosas sugestões editoriais.

    Ana Maria Quental buscou fontes e mostrou ao Autor a casa de Petrópolis de San Tiago, e Lurdes Montenegro guiou-o pela trama genealógica de seu primo San Tiago. Astolpho Dutra reviveu inúmeras vezes, com o mesmo entusiasmo do aluno de Direito, a lembrança do mestre e amigo.

    Jorge de Serpa Filho, Gilberto Paim, Francisco Mendes Xavier, Wilson Figueiredo, Newton Rodrigues, Oswaldo Peralva, Arthur João Donato, Paulo Ferreira Garcia, Emmanuel de Morais, José Mário Pereira, João Geraldo Piquet Carneiro e Marco Antônio Marques foram interlocutores generosos e prestativos. José Alexandre Tavares Guerreiro pôs à disposição do Autor sua monumental biblioteca sobre história europeia e Arthur Barrionuevo e Eduardo Augusto Guimarães esclareceram dúvidas sobre questões econômicas. Nelson Eizirik e Bolívar Moura Rocha trouxeram sugestões literárias ao texto.

    Paulina Moscovitch, Thäis Varnieri Ribeiro, Fernando Botelho Prado, Mário Cezar de Andrade, Neusa Mesquita, Tereza Machado, Carlos Eduardo Toro, Paulo Sérgio Pinheiro, Mario Losano, Ana Elisa Mercadante, Maria Cristina Dutra, Patrícia de Campos Dutra, Julio Wiziack, Ana Maria Moscovitch, John Forman, Maria Lúcia Pádua de Lima, Rui Coutinho, Celso Campilongo, Paulo Mattos, Silvana Silva, Ilda Tomé, Alessandra Melo, Dieter Brodhum e Viviane Braga em momentos diversos contribuíram com o Autor em seus trabalhos.

    Américo Masset Lacombe, Antônio Carlos Coltro, Antônio Carlos Mendes, Antônio Cezar Peluso, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, Antônio Meyer, Carlos Teixeira Leite, Celso Cintra Mori, Edgard Silveira Bueno, Eduardo Muylaert, Eros Grau, Eurico Souza Leite, Felipe Locke Cavalcanti, Fernando D’Oliveira Menezes, Hélio Lobo Junior, José Carlos Xavier de Aquino, José Yunes, Luiz de Camargo Aranha Neto, Manuel Alceu Affonso Ferreira, Marcelo Martins de Oliveira, Márcio Thomaz Bastos, Mário Sergio Duarte Garcia, Michel Temer, Paulo Alcides Amaral Salles, Paulo Lucon, Roberto Rosas, Rui Reali Fragoso, à mesa de almoço às sextas-feiras, deram, com reiterada e amigável cobrança pela conclusão deste livro, um valioso estímulo ao Autor.

    Agradeço especialmente o decidido apoio de Tom Camargo e o dedicado empenho de Luís Antônio Magalhães em verem publicada esta biografia.

    ***

    Deve o Autor registrar o designado e invencível silêncio de Edméa de San Tiago Dantas, viúva do biografado. À exceção de uma brevíssima entrevista, na qual respondeu a duas sucintas indagações, nada mais disse sobre a vida de San Tiago, com quem foi casada por trinta anos.

    Regina Cortes, com amiga dedicação, ordenou todos os milhares de documentos copiados em um arquivo meticuloso, sem o qual este livro não poderia ter sido escrito, e acompanhou, ao longo de duas décadas, os trabalhos do Autor. Em ocasiões distintas, Laura Brito fichou incontáveis documentos, Marli Morais achou obras esgotadas e Rose Zuanetti localizou citações e registros. Selma Carneirinho digitou o texto deste volume algumas vezes, com competência; e Francis Assis atendeu às incontáveis demandas no curso dos trabalhos, sempre atenta e gentil.

    Textos não publicados de autoria de San Tiago e de terceiros consultados e citados neste volume – recolhidos de arquivos públicos e pessoais pelo Autor – foram, todos eles, copiados e reunidos em um único arquivo, referido pelo nome do biografado. Em caso de dúvida sobre fatos e opiniões, narrados e expressos em depoimento ou registrados em texto, somente foram considerados pelo Autor aqueles corroborados por fonte documental autônoma.

    Os juízos e as conjecturas formulados pelo Autor nesta biografia são de sua exclusiva responsabilidade, assim como eventuais erros e omissões nela verificados.

    Agradeço ao meu editor, José Carlos Busto, o desassombro em aventurar-se a editar este livro e a sua dedicação aos trabalhos de sua publicação.

    O Autor

    .

    CAPÍTULO I

    O R I G E N S

    Antepassados: Inhaúma, Porto da baía de Guanabara

    San Tiago Dantas: origem

    O herói liberal e o herói de guerra

    A profissão das armas

    A Revolta da Chibata

    A profissão civilista

    Encontro na capital federal

    É notável como as cidades antigas, a que a nossa família está ligada, fazem parte da nossa própria infância. Na verdade, quase revejo muitas delas, e espero ‘voltar’ a algumas...¹

    • Antepassados: Inhaúma, Porto da baía de Guanabara

    O capitão-mor Estácio de Sá, buscando resguardar a recém-criada cidade do Rio de Janeiro da ameaça de ocupação pelas tropas francesas, estimulou o povoamento da faixa litorânea da baía de Guanabara.² Na antiga tapera de Inhaúma, antes ocupada pelos índios tamoios, duas sesmarias foram estabelecidas em meados do século XVI; uma delas coube aos jesuítas, grandes proprietários de terras próximas à cidade do Rio de Janeiro, e a outra a Antônio da Costa. Situada ao fundo da baía a tapera e mais tarde freguesia de Inhaúma vivia da lavoura, escoando a sua produção, e a que ali chegava procedente de Minas Gerais, através dos rios Faria, Timbó e Jacaré; do porto de Maria Angu, no mar de Inhaúma, aonde iam desaguar aqueles rios, canoas e faluas partiam abastecidas de cargas e passageiros, com destino à metrópole. ³

    Ao ser elevada em 1640 a curato – povoado ao qual a Igreja destinava um vigário específico – já dispunha Inhaúma de uma capela construída, sob a invocação de São Tiago, por Custódio Coelho e por este doada ao vigário-geral, Clemente Martins de Matos, a fim de que fosse elevada em capela curada do território.⁴ Assim foi feito, e nos assentos do ano de 1722 informava o cura da Igreja do Apóstolo São Tiago que Joana de Abreu Soares, de vinte anos, pouco mais ou menos, buscava licença para casar-se com Manoel Dantas Correa, natural do Rio de Janeiro, onde fora batizado em 1695.

    Ao contrário de Joana, que nascera em Inhaúma e cujo pai aí vivia da lavoura da cana, Manoel residia na freguesia de Sam João de Caray, atual Icaraí. É provável que Manoel e Joana tenham fixado residência em Inhaúma, pois a filha do casal, Felipa, foi batizada nessa paróquia e nela viria a desposar o alferes Felippe Santiago.⁵ A filha de Felippe e Felipa, Maria Ignácia, andando de amores com José Correa de Abreu, so se deu em a noite de seda. fr. desta Semana fogir (...) da Caza de seu Pay p. a Caza do Pay do Suppe. (Suplicante); declarando que fogirão (ambos) para Cazar..., na petição no ano de 1757 que ao Vigário Geral por esmola suplicavam fossem recebidos na Igreja, afirmavam que Maria Ignácia estava depozitada em huma Caza honrada ate com efeito se receberem..., pois sendo ambos suman. te. pobres e naturais deste Bispado receiam q’ o Pay (Felippe) da supp.da. (suplicada) q’ homem mal entencionado obre alguma couza contra elles....⁶ Não consta que Felippe Santiago tenha obrado algo contra sua filha e seu genro. Dele pouco se sabe além de seu casamento com a mãe de Maria Ignácia, Felipa de Abreu Soares, em 1738. Desconhecida sua ascendência, sequer seu nome de batismo é certo: os assentos da diocese de Inhaúma ora o referem por Felippe S. Thiago, ora dos Zouros, dos Oiros, ou de Queróz, registrando-o apenas como residente na paróquia de S. Thiago de Inhaúma, e que teria, posteriormente, alcançado o posto de alferes.

    Só a República traria a obrigatoriedade do registro civil, criando para tanto cartórios especiais. No Brasil Colônia e no Império eram os assentos civis feitos quando os pais levavam os filhos a batizar na Igreja, e as notas então tomadas indicavam – quando o faziam – toscamente a linhagem familiar. Àquela época, a população majoritariamente analfabeta, muitas vezes o pároco se não o escrivão, preferindo os nomes de origem religiosa, apontava os apelidos familiares dos recém-nascidos ou o nome dos nubentes que solicitavam bênçãos à Igreja. Santiago possivelmente terá sido assim acrescentado ao de Felippe, em homenagem ao apóstolo, orago da freguesia de Inhaúma.

    O filho de José e Maria Ignácia, Dionízio, trouxe o apelido Santiago de seu avô materno Felippe. As notas deixadas por San Tiago sobre a genealogia de sua família referem esse seu trisavô paterno como tendo, na mocidade, se dedicado à Marinha Mercante e a seguir, realizado financeiramente, se recolhido à sua fazenda, em Inhaúma.⁷ Não há indicações concretas de que o jovem Dionízio de Santiago tenha participado do comércio e do transporte marítimos, embora fossem correntes essas atividades em toda a baía de Guanabara, e, menos ainda, com êxito financeiro. Ao contrário, ao casar-se em 1804, aos trinta e quatro anos de idade, com sua prima Joaquina Brígida, filha de seu tio materno Cláudio, era Dionízio um lavrador de poucos recursos, como atestava o escrivão que lhes encaminhou o pedido de dispensa da Igreja para o casamento: supposto tambem o seja (pobre, como Brígida), com tudo he mosso agil e industriozo pode muito bem no exercício da agricultura tratar.... Brígida nascera na Sé – Rio de Janeiro –, mas "sempre assistira" em Inhaúma, e contava então cerca de vinte e três anos.

    O matrimônio dos primos não se revestiu de lances dramáticos como o dos pais do noivo, mas submeteu Dionízio e Brígida aos rigores da lei canônica: Primos, filhos de irmãos, importou esse fato, conforme se lê da petição que dirigiram à Igreja, em convívio entre eles, o que resultou contrahirem (...) entre sy hum nimio affecto de sorte, q’ se conheceram carnalmente, e de q’(Brígida) se acha gravidada (...) (embora) não tendo sido feito de contracto com animo de facilitar a dispensa, mas por mera fragilidade.... A Dionízio e Brígida foi mandado varresem a sua Igreja Matriz de Inhauma por espasso de oitenta dias e q’ouvissem outras tantas Missas.... Cumprida a penitência, casaram-se sob as bênçãos da Igreja, em 1804.

    Propriedade dos jesuítas até a expulsão destes do Brasil pelos portugueses em 1759, Itaguaí era, desde a Colônia, relevante enclave econômico. O tráfego entre a capital e o sul do País, e daí para Minas Gerais, cruzava-lhe as terras, e os tropeiros nelas se abasteciam de seus produtos.

    Para esses sítios transferiu-se Dionízio com a família e aí dedicou-se ao seu ofício habitual; suas lavouras progrediram, e, em pouco tempo, abriu em seu novo domicílio uma fazenda junto à serra de S. Tiago, na freguesia de S. Pedro e S. Paulo do Ribeirão das Lajes.¹⁰ Em um de seus maiores romances, Dom Casmurro, Machado de Assis situa a origem da família Santiago, do personagem central Bentinho, em Itaguaí, em data contemporânea à estada dos antepassados de San Tiago naquela região: Minha mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí (...) Não quis; (...) vendeu a fazendola e os escravos (...) naquele ano da graça de 1857, Dona Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dois anos de idade.¹¹

    O filho de Dionízio, Francisco, que será o primeiro ascendente de San Tiago a trazer-lhe o nome completo – San Tiago Dantas – teria nascido ainda em Inhaúma, mas iria fixar-se no novo endereço, de onde era natural sua noiva e prima distante, Clementina Maria de Jesus, pertencente a uma família fluminense tradicional, os Sá Freire.¹² Francisco e Clementina casaram-se em 8 de setembro de 1842, na fazenda N. Senhora das Dores, onde dois anos mais tarde, em 19 de maio de 1844, nasceu-lhes um filho, batizado Francisco Clementino de San Tiago Dantas, o futuro herói da guerra do Paraguai, o avô cujo nome San Tiago herdará e a quem devotará grande admiração.¹³

    • San Tiago Dantas: origem

    Ao visitar Portugal em 1948, já professor e advogado famoso, San Tiago será agraciado com o título de cidadão honorário de Antas, lugarejo pertencente ao conselho de Vila Nova do Famalicão, não muito distante da cidade do Porto. Daí dirá provirem seus antepassados, e o nome San Tiago Dantas seria uma evocação de antigos lusitanos transplantados para o novo mundo, que dessa forma e a um só tempo reverenciavam o padroeiro de Antas – o mesmo apóstolo São Tiago, orago de Inhaúma – e recordavam a terra natal. Em mensagem de agradecimento que então dirige à Junta da Freguezia de Santiago D’Antas, reconhecendo a benevolência da Junta dessa freguesia considerando-me seu paroquiano, San Tiago diz que a nenhuma homenagem poderia ser "tão sensível (...) por me ver ligado à terra de onde a memória da minha família diz terem imigrado os meus antepassados...".¹⁴ Contudo, em nota biográfica que escreve sobre o major Dantas, seu avô paterno, San Tiago não faz referência a sua suposta ascendência lusa; remonta as origens da família, pelo lado paterno, a Dionízio, avô do major Dantas – seu trisavô, portanto –, confirmando, apenas, que Dionízio nascera em Inhaúma.¹⁵

    Os assentos da paróquia de Inhaúma, a partir dos quais foi possível traçar a linha ascendente paterna de San Tiago, igualmente não revelam antepassados diretos portugueses. Antônio Dantas – trisavô de Dionízio, pelo lado materno, e o primeiro Dantas, nesse ramo, cuja origem foi possível precisar – residia na Sé, no Rio de Janeiro. Os dados a ele relativos foram anotados na diocese de Inhaúma, de onde provinha também seu filho Manoel e a mulher dele, Joana, e neles não se acha indicação da origem lusa direta.¹⁶ A ascendência lusa a que San Tiago alude é, portanto, legítima, mas não pelo modo com que a fez supor e, sim, em tempo remoto e possivelmente pelo lado Dantas, que aqui teriam chegado não depois de meados do século XVII, quando terá nascido Antônio Dantas.

    O apelido Santiago denota origem religiosa ou geográfica e, embora encontradiço em Portugal pelo menos desde o século XVI, seria proveniente da Espanha, que tem no apóstolo São Tiago – o irmão do Evangelista João – seu padroeiro. Segundo lenda surgida por volta do século VI, estariam os ossos do apóstolo enterrados na região onde mais tarde se ergueu a cidade de Santiago de Compostela, na Galícia. A devoção ao santo disseminou-se, estimulando a criação de uma ordem religiosa que o tomou por patrono e foi responsável pela construção da igreja a ele dedicada, e que se distingue da do vilarejo de Antas, em Portugal, construída também em fábrica românica como a de Compostela, porém sem a riqueza desta, que a iria tornar conhecida, em especial a majestosa fachada barroca a ela acrescentada no século XVIII.¹⁷

    Em variadas formas grafa-se o apelido familiar: Sant-Iago, encontrado nas antigas certidões; São Tiago, que a prosódia portuguesa admite, mas dificilmente a brasileira, que prefere San Tiago, tal o próprio se identificava e ficou conhecido fora do círculo familiar; San Thiago, muito empregado pela imprensa ao nomear o futuro ministro das relações exteriores; e Santiago, como por vezes o próprio assinava, informalmente, e é hoje usado, tanto para topônimos como para apelidos e nomes. Iago provém de Iacob ou Jacob, do hebraico Iakóv, o que segura o calcanhar, o que arma cilada, o que suplanta. Já o sobrenome Dantas tem, claramente, origem geográfica: formado pela adjunção da preposição ao topônimo Antas, o modo simples teria sido encontrado primeiro, apelido de família oriunda de Antas, lugarejo situado no concelho de Coura, entre o Douro e o Minho, em Portugal; a forma Dantas é mais recente.¹⁸ Assim, Santiago, apelido que nesta linhagem foi Felippe dos Ouros o primeiro a trazer, não terá tido outra origem senão a religiosa, mas verificada já em terras brasileiras, em Inhaúma, e não em Portugal. E o encontro de um Santiago com uma Dantas deu-se, como visto, com a união de Felippe e Felipa, ainda que assim não viesse a assinar-se a filha do casal, e a ordenação dos nomes Santiago e Dantas em um único, familiar, só haja ocorrido duas gerações depois.

    • O herói liberal e o herói de guerra

    Em 1842, no ano em que os bisavós paternos de San Tiago, Francisco e Clementina, casavam-se no interior do estado do Rio de Janeiro, eclodiu, simultaneamente em São Paulo e Minas, a revolução liberal. Em Minas a rebelião irradiou-se de Barbacena em direção ao oeste da província. Na cidade de Paracatu, onde os irmãos Manoel e João Carneiro de Mendonça – filhos de um fazendeiro de gado na vizinha Araxá – haviam se estabelecido e casado com duas irmãs, respectivamente Vitória e Josefa Carlina, o movimento atraiu logo voluntários.¹⁹ João Batista, filho de Manoel e Vitória, e seus primos estavam entre eles, liderados por Josefa Carlina, a qual, uma vez batida a insurreição pelas tropas do Barão de Caxias,²⁰ foi levada em correntes à cadeia de Ouro Preto.²¹ João Batista, contudo, não se deixou prender: embrenhou-se a pé no sertão, vencendo em fuga os chapadões do noroeste do estado e a seguir, cortando a serra do Espinhaço, alcançou afinal a província de Goiás, onde se estabeleceu na capital.

    Em gado e com escravos de seu serviço, João Batista fez razoável fortuna, e em 1858 casou-se com Maria das Mercês de Almeida Camargo, pertencente a uma família local.²² O destino veio, porém, turvar a crônica heroica da juventude de João Batista; depois de penosa enfermidade morreu-lhe a mulher, deixando ao seu encargo criar quatro filhos pequenos. A devoção do marido à companheira e a dor de perdê-la somaram-se à má sorte nos negócios, consumindo-lhe as finanças e a alegria; abriu-se o período de heroica viuvez, inteiramente dedicado aos filhos, um gesto espontâneo de sacrifício, de esquecimento de si mesmo, como escreverá seu bisneto, que via no exemplo de João Batista generosidade (...) tamanha que inclinou o destino de seus descendentes, e, em especial, o destino de Dindinha, a filha de João Batista e a avó adorada de San Tiago.²³

    Francisco Clementino, que somou os prenomes dos pais e em cuja homenagem foi San Tiago batizado, deixou as terras fluminenses nas quais seus antepassados trabalhavam havia mais de um século. O jovem alto, magro de boa aparência, sonhador algo exaltado, opinativo e intransigente, alegre e benquisto entre primos e primas, com rasgos, porém, de melancolia,²⁴ aos dezoito anos veio para a Corte, e aí ingressou na Academia Militar e sentou praça no primeiro batalhão de artilharia a pé, em fevereiro de 1863.²⁵

    No ano seguinte, achou-se o Brasil, ao lado da Argentina e do Uruguai, em guerra contra o Paraguai. O soldado raso San Tiago Dantas, em dezembro desse mesmo ano, seguiu para a frente de batalha, e sob o comando de Osório participou da luta pelo fogo e corpo a corpo, na resistência que os brasileiros – que haviam ocupado a ilha de Redenção, situada no rio Paraná – opuseram às tropas inimigas que lhes assaltaram a posição.²⁶ O lance seguinte foi o arremesso das forças brasileiras ao território adversário; Francisco Clementino integrou esse contingente, assim como esteve engajado em sucessivos combates que se travaram até a capitulação final das tropas paraguaias em 1868.²⁷

    A campanha do Paraguai valeu ao soldado, em atenção aos serviços militares prestados no combate da ilha de Redenção, a concessão, por decreto imperial, da Ordem da Rosa, em grau de cavaleiro.²⁸ E nele solidificou a vocação profissional. Em 1872, com o curso da Escola Militar completo, foi promovido ao posto de capitão, aos vinte e oito anos de idade. As fotografias que dele se conservam mostram-no nessa época com a face levemente encovada, de maçãs salientes, os bigodes finos, uma pêra rala, os fartos cabelos ondulados jogados para trás, e os olhos de um brilho febril, em que transparece a intensidade das emoções.²⁹ Que redobrariam quando, transferido para a província do Rio Grande do Sul, foi designado em 1874 para dar combate aos muckers, fanáticos religiosos os quais, rebelados contra a autoridade provincial, já haviam, em bem-sucedidas escaramuças, batido as forças oficiais e rechaçado a primeira carga de tropas do exército contra eles lançada.³⁰ Vitorioso com o aniquilamento dos rebeldes em sangrentas refregas, nas quais saiu ferido, o feito militar sob o seu comando conferiu grande notoriedade ao capitão Dantas, que passou a frequentar a sociedade local. Convidado a proferir no Pantheon Literário de Porto Alegre uma palestra, que intitulou Sobre o casamento, o autor compenetrou-se do que expunha por forma tal – como recorda um cronista da época –, que nessa mesma ocasião contratou aliança matrimonial com interessante jovem rio-grandense, Justa de Azambuja.³¹

    O futuro major Dantas e Justa Patrícia Azambuja casaram-se a 21 de março de 1875, na cidade de Rio Preto, na Província de S. Pedro do Sul.³² San Tiago relembrará a avó paterna: Justa era de excepcional beleza, de porte senhoril, e conservou até a velhice a formosura majestosa, ia dizer olímpica, que exercia sobre todos certo fascínio. Justa era filha de Antônio Patrício de Azambuja, um estancieiro e criador de gado sediado no município de São Jerônimo, e de sua mulher Ana Osório, filha reconhecida do marquês do Herval (general Osório). A vida do casal, marcada pela dor da perda prematura de vários filhos, e a do próprio major, deixou à Justa a amargura que seus descendentes registraram em depoimentos mais objetivos do que o de seu neto.³³

    Após uma curta carreira política, quando se elegeu – para a legislatura de 1879/1880, na legenda do Partido Liberal – deputado à Assembleia estadual, o capitão Dantas foi transferido para o Paraná, aonde veio a estabelecer uma colônia militar, deixando em definitivo o Rio Grande.³⁴ Em 29 de novembro de 1884, nasceu na colônia Chopim, a sudoeste do Paraná, Raul, o único filho homem do major Dantas e de Justa Azambuja a alcançar a maioridade, juntamente com três irmãs mais velhas, dentre os oito descendentes do casal.³⁵ Por essa altura teriam surgido os primeiros sinais da sífilis,³⁶ que, mais tarde, já em Cuiabá e muito doente, fez o major dirigir ao filho, às vésperas de este completar quatro anos de idade, uma carta que será lida quando puderes entendê-la. Uma bronquite pertinaz, escreve, uma debilidade extrema, desânimo, um certo torpor nas faculdades mentais, tudo anuncia que meu fim não pode estar muito longe.³⁷ De fato, seis meses depois morria o herói da Guerra do Paraguai. Ao confiar aos cuidados do filho a família que deixava prematuramente – poderia viver muito ainda, pois tenho apenas quarenta e quatro anos – desculpava-se o major pelo severo legado, e lembrava a Raul: deixo (te) em troca (...) um nome que se não se tornou ilustre, conservou-se puro e nobre como o recebi de seus avós.³⁸

    Os assentamentos de sua caderneta militar mostram Felippe José Correa de Mello em 1880 como ajudante do Depósito de Aprendizes Artilheiros, na fortaleza de São João, no Rio de Janeiro.³⁹ Nascido em Formiga, no estado de Minas Gerais, em 1852, o avô materno de San Tiago ingressou na Academia Militar em 1882 e ao final do ano seguinte foi nomeado ajudante de ordens da presidência da província de Goiás. Em início de 1885, já se achava casado com Geraldina Carneiro de Mendonça, filha de João Batista, nascida em Goiás Velho em 12 de agosto de 1862. Em lombo de burro, com a mulher e a filha Violeta, retornou a Minas em 1892, indo servir, no posto de capitão, ao governo do estado na capital Ouro Preto, onde comandou o Quinto Batalhão da Força Pública.⁴⁰

    Ao contrário do avô paterno de San Tiago, o bravo major Dantas, a carreira militar não reservou emoções a Felippe José; nela não conheceu as batalhas reais travadas no Império – encerrada a maior delas, a campanha do Paraguai, ainda em sua adolescência – nem participou Felippe das sedições militares verificadas no curso de sua trajetória profissional, que se sucederam do ocaso da Monarquia ao período inicial da República. Sua maior preocupação foi prover o bem-estar da família, ampliada com a morte de seu sogro, João Batista, que lhe deixou a cuidar as irmãs de sua mulher Geraldina, uma viúva e outra solteira, as quais acolheu Felippe em sua casa modesta de militar, pobremente mobiliada, sem objeto de valor.⁴¹

    Inaugurada a nova capital do estado, e, estando a filha única, Violeta, muito crescida (...) aprendendo francês, piano, português e aritmética..., fez Felippe planos de nela residir, e afinal foi transferido para o comando da Força Pública da ainda chamada Cidade de Minas, ao qual renunciou, porém, em 1899 por ver recusada uma indicação que fizera.⁴² A família se adaptou à nova capital, e aí residiu até Felippe se transferir para o Rio de Janeiro, onde encerrou a sua pacata carreira de oficial de Exército, promovido por antiguidade ao posto de coronel.⁴³

    • A profissão das armas

    A profissão das armas apresentou-se naturalmente a Raul, fosse no exemplo significativo do pai, fosse pela determinação da mãe, Justa. Havendo cedo enviuvado e distante das raízes rurais que lhe bastariam à sobrevivência e à educação do único filho homem, ela terá percebido que ao modelo paterno vantajosamente iriam somar-se os favores oferecidos pela formação militar, que, além de ensino e pensão, aos alunos assegurava uma carreira profissional definida.⁴⁴ Raul, que fizera o curso secundário no Colégio Militar,⁴⁵ não se sentiu contudo atraído pelo Exército; a crônica doméstica talvez lhe trouxesse, sobre as glórias do herói de guerra, notícia das dificuldades do chefe de família, amargo nas vicissitudes das quais em vão protestara a seus superiores.⁴⁶ Mas não só esses fatores poderão ter agido sobre a decisão de Raul em seguir carreira na Marinha.

    As Forças Armadas surgiram como expressão política no cenário nacional ao fim da Guerra do Paraguai, em 1868. O conflito revelara à população provas da coragem dos soldados, e os chefes militares logo fariam sentir ao meio político o poder interno que passaram a desfrutar.⁴⁷ O golpe militar que trouxe a República foi a primeira mostra concreta do intervencionismo militar na vida brasileira, característica que gradativamente se estabeleceu como um dos vícios maiores da crônica imaturidade política nacional.

    O envolvimento das forças militares no processo político a que se assistiu nessa fase inicial da República não significou, porém, identidade de pensamento ou de meios entre essas forças. Presentes no oficialato naval os ideais monarquistas e resistentes seus membros às ideias positivistas que no Exército encontraram largo curso e o aproximaram dos republicanos, pôde a Marinha reagir à preeminência da força terrestre que se viu estimulada com a ascensão do marechal Floriano à presidência da República, e que o fracasso da revolta da armada de 1892 extremara. E, em meio à decadência de sua frota, soube a Marinha manter, adaptando-as, as tradições vindas do Império,⁴⁸ tal como o processo de recrutamento de sua oficialidade, dirigido ao estrato superior da classe média urbana, o que lhe conferia, sobre o Exército, um traço aristocrático a emprestar a seus quadros maior prestígio social.⁴⁹ Mas a classe política republicana submeteu-se à realidade ditada pela estrutura de forças que a sustinha, e em consequência deferiu ao Exército os favores orçamentários na medida do poder que esta corporação passou a desfrutar, preferindo-a à sua congênere de armas.

    O equilíbrio entre as duas forças existente no Império não seria na República jamais igualado, mas a disparidade na dotação de recursos a ambas viria a ser reduzida. Em 1902, o almirante Júlio Noronha, atento à evolução naval em curso no exterior, porém isento de ambições pessoais que haviam alimentado a aventura de seu companheiro e líder da revolta da Armada, Custódio de Mello, iniciou pela imprensa uma vigorosa campanha de reaparelhamento da esquadra. A época era oportuna. O governo Campos Salles, que se encerrava, impusera forte política deflacionária ao País; deixara cheios os cofres ao sucessor Rodrigues Alves no quadriênio seguinte. Dois anos depois, em 1904, foi aprovado em lei um programa de reaparelhamento que previa a encomenda a estaleiros ingleses de vários vasos de guerra de pequena e média tonelagem. As discussões em torno do plano extremaram-se; sobretudo eficazes foram as críticas vibradas pelo futuro ministro almirante Alexandrino, verberando a diversidade de vasos a serem adquiridos e a pouca tonelagem individual deles. A ascensão de Afonso Pena à presidência da República em 1906, e a designação do antigo crítico para a pasta da Marinha fizeram vencedora a oposição ao plano, em consequência reformulado: três gigantescos e modernos encouraçados – dreadnoughts – foram encomendados a estaleiros ingleses.⁵⁰

    À virada do século, esforçava-se o Império Britânico por manter-se senhor dos mares, a via natural de sua afirmação militar; a defesa de suas distantes colônias e sobretudo o crescente poderio naval alemão determinaram à Marinha Real buscar constantes aperfeiçoamentos tecnológicos para sua esquadra, a fim de mantê-la imbatível. A disputa que se iniciou entre os dois países pela supremacia naval atraiu a atenção do mundo.⁵¹ Por essa altura, os estaleiros britânicos iniciavam a construção dos dreadnoughts, o novo modelo de encouraçado que iria revolucionar a guerra naval. Se o plano Noronha atendia às necessidades da Marinha brasileira e à realidade do País, o projeto vitorioso de Alexandrino – maravilhado pela novidade tecnológica dos países desenvolvidos – casava-se justamente ao espírito nacional, então de um patriotismo triunfante, esplêndido na reforma urbana promovida por Rodrigues Alves na capital federal, que dera, às suas áreas nobres, uma feição europeia bastante a rivalizar com Buenos Aires, então a mais sofisticada metrópole da América do Sul.⁵²

    Em 8 de abril de 1905 Raul ingressou na Armada como guarda-marinha-aluno, e foi designado para servir no Rio de Janeiro, aí iniciando o período de aprendizado e adestramento. Quatro anos depois, foi desligado da escola e promovido a segundo-tenente. Apresentou-se à bordo da corveta Benjamin Constant, rumando de imediato, em sua primeira viagem como oficial, para Santa Catarina. Raul terá se desincumbido com eficiência de suas tarefas iniciais; a missão que lhe foi assinada a seguir, em julho daquele ano, isso demonstrou: embarcar com destino à Inglaterra para buscar o dreadnought Minas Gerais, um dos dois encomendados pela Marinha brasileira a estaleiros britânicos.⁵³ A 5 de fevereiro de 1910, com Raul a bordo, a belonave suspendeu do porto de New Castle; a essa veio juntar-se a fragata americana North Caroline, que trazia o corpo do embaixador brasileiro em Washington, Joaquim Nabuco.⁵⁴

    • A Revolta da Chibata

    A 18 de abril de 1910, entrou o Minas Gerais em águas do Rio de Janeiro. A população da cidade correu a saudá-lo, gritando vivas calorosos e agitando milhares de lenços brancos, ao ver que ao singrar a baía de Guanabara, por entre "embarcações de todas as formas e de todas as dimensões, (...) avultava gigantescamente a massa do dreadnought incomparável e único".⁵⁵

    O primeiro dreadnought saíra dos estaleiros navais ingleses em dezembro de 1906. Os encouraçados até então construídos traziam quatro canhões de doze polegadas, dispostos em duas torres fortificadas, traseira e dianteira, e em um dos lados da embarcação alinhavam canhões de seis polegadas. Já os dreadnoughts exibiam dez bocas de fogo de trinta centímetros instaladas, duas a duas, em cinco torres postadas no centro do navio, capazes de atirar por qualquer um de seus lados e alvejar a uma distância de cerca de treze quilômetros, em uma única salva, um número maior de granadas. O São Paulo, da mesma classe que o Minas Gerais, impressionava ainda mais: deslocando quase vinte mil toneladas, ao longo de cento e sessenta e cinco metros, além dos doze canhões de trinta centímetros, trazia vinte e dois de doze centímetros, e, protegido por uma blindagem de vinte e três centímetros, cruzava a uma velocidade máxima de vinte e um nós.⁵⁶ Não é de estranhar, portanto, a impressão causada ao povo do Rio de Janeiro, em cujas ruas ainda predominavam os veículos à tração animal, e os sentimentos nele despertados, os quais foram, não com menor efusão, registrados no jornal O Paíz pelo jovem cronista Gilberto Amado, de quem San Tiago mais tarde se tornará amigo: "a chegada do Minas Gerais (...) fez palpitar numa vibrante emoção patriótica toda a alma nacional (...) o Brasil inteiro saudou no vulto agigantado do colosso dos mares sul-americanos o símbolo soberano de sua própria pujança, a expressão concreta de sua energia de nação".⁵⁷

    Logo depois, foi o Minas Gerais palco de uma das mais degradantes revoltas da história brasileira. Se a formação e a origem social da oficialidade da Marinha a distinguiam em relação à do Exército, por outro lado caracterizava-a uma rígida segregação entre o oficialato e os praças, ao contrário do que ocorria na força terrestre, onde essa divisão feria-se menos asperamente. Os efeitos diretos da segregação presente na Marinha extremaram-se precisamente com a incorporação dos dreadnoughts. A prática do castigo corporal imposta aos marujos não desaparecera; em um dos primeiros atos do governo de Deodoro fora expressamente abolida, sendo, porém, logo reestabelecida, furtivamente, com a criação da Companhia Correicional, cujas normas prescreviam a imposição do castigo severo (...) reconhecida e reclamada por todos os que exercitam a autoridade sobre o marinheiro..., e cominavam às faltas graves a pena de vinte e cinco chibatadas.⁵⁸ Eram os praças recrutados, em sua maioria, entre os indivíduos mais humildes, quando não convocados à força. Incorporados, nenhuma instrução ou noções suficientes de hierarquia lhes eram ministradas; a segregação imposta pelos oficiais submetia o convívio nas embarcações a um regime de terror, mantida a subordinação à custa de brutais castigos físicos. Nos navios, aos oficiais não cabiam senão as funções verbais de comando, deixada a operação das máquinas – complexa e estafante, cumprida nos abafados porões dos navios – exclusivamente aos marinheiros. Esses não tardaram a compreender a quem de fato incumbia conduzir os navios, em especial os modernos Minas Gerais e São Paulo.⁵⁹

    Quando, em meados de novembro de 1910, a bordo do Minas Gerais, e ante a guarnição perfilada no convés, foi o marinheiro Marcelino sangrado às costas à custa de dezenas de chibatadas vibradas com um açoite feito de uma corda de linho penetrada de agulhas de aço – que sobressaíam do tecido que fora deixado encharcar –, não bastaram, dessa vez, os tambores rufando para abafar os gritos do supliciado.⁶⁰ Na noite do dia 22, duas salvas desferidas dos poderosos canhões do dreadnought atroaram sobre a cidade do Rio de Janeiro rebentando vidraças: o pânico tomou conta da população, e o governo entendeu de imediato a linguagem dos insurretos liderados pelo marinheiro João Cândido: o fim da chibata ou a capital do País seria arrasada.⁶¹ O móvel da revolta impôs pesada humilhação à Marinha brasileira ao revelar cruamente o seu atraso como força guerreira, moderna apenas nas belonaves importadas, cujo comando via rendido a um marujo negro – o primeiro e único nessa dupla qualidade a comandar uma armada ciosa de suas tradições aristocráticas.

    O governo do marechal Hermes da Fonseca, que então se iniciava, reagiu sensatamente, concedendo anistia aos revoltosos, irritando, porém, a oficialidade naval, que não tardaria a vingar-se dos rebelados mandando assassinar muitos deles.⁶² O episódio, contudo, foi visto pela Armada antes como um ato de insubordinação, ainda que admitida a inumanidade da chibata. Ao fim da Revolta, a Marinha celebrou seus oficiais mortos e condecorou os que lhe defenderam a disciplina. Dentre esses, foi mandado elogiar nominalmente, pelo auxílio prestado no restabelecimento da ordem por ocasião dos tristes acontecimentos dos meses de novembro e dezembro de 1910, o tenente Raul de San Tiago Dantas.⁶³

    • A profissão civilista

    A Revolta da Chibata emocionou a cidade do Rio de Janeiro, mas não abalou a estrutura política do País. Essa já alcançara relativa estabilidade com a política dos governadores – a conciliação de forças urdida pelo presidente Campos Salles na virada do século, a qual fora no ano anterior, em março de 1909, submetida à prova inédita.⁶⁴

    Nitidamente burguesa e como legítimo e pioneiro anúncio de opinião pública nacional, a candidatura de Rui Barbosa à presidência da República incandesceu o País, opondo-se à do marechal Hermes da Fonseca e reagindo ao militarismo que já penetrara a jovem República brasileira.⁶⁵ Sexagenário, o parlamentar baiano sempre destoara na cena política, fosse pelas suas excepcionais qualidades de inteligência e cultura, fosse pela especialidade de seu temperamento altivo, não raro áspero, e por vezes contraditório. Paradoxalmente, Rui, que distinguia a elite do País até em seus excessos, jamais nela fora naturalmente aceito: a esta se impusera, ou melhor, a esta impusera seu enorme engenho intelectual e oratório.⁶⁶

    A classe política foi fendida em sua cúpula com a postulação autônoma do velho senador, que recebeu o apoio de políticos dissidentes da Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo, apoio antes reativo à dominação do líder parlamentar situacionista Pinheiro Machado do que genuíno em si mesmo.⁶⁷ A campanha presidencial de 1909, que logo tomou o nome de civilista, abalou a modorra verificada nas disputas anteriores, meras nomeações oficiadas pelo conciliábulo dos líderes. Por meio desse sistema abertamente articulado sobre a fraude eleitoral – o motor da política dos governadores –, a presidência da República tocava, alternadamente, aos estados mais populosos da federação: ora a um representante de São Paulo – a terra do café e das finanças –, ora a um representante de Minas Gerais – a terra do leite, e sobretudo da astúcia política.

    A eleição era realizada pelo bico de pena, com o qual se escreviam nas atas os votos efetivos, sendo a esses diligentemente acrescidos pelos mesários quantos mais bastassem à eleição do candidato da situação dominante. A seguir, uma comissão de verificação dos poderes, formada por deputados pertencentes à legislação anterior, degolava os adversários e diplomava os recém-eleitos, nos termos ditados pelo poder central.⁶⁸

    O resultado final, devidamente previsível em todos os pleitos, neste apontou o marechal Hermes da Fonseca vencedor. A campanha civilista de Rui Barbosa eviscerou as fundações corruptas do processo eleitoral da Primeira República, mas não frutificou como exemplo democrático. Porém, juntamente com a Revolta da Chibata, em 1910, inscreveu-se na crônica familiar dos San Tiago Dantas: a sedição militar fora deflagrada no início da carreira de Raul, quando a Marinha experimentava o fastígio de sua renovação como força guerreira, e seus efeitos iriam influir na formação do temperamento rígido do futuro almirante; e o exemplo de Rui Barbosa viria a ajudar San Tiago a reafirmar os ideais democráticos – repudiados em sua mocidade – quarenta anos mais tarde, quando dedicaria ao grande político um de seus mais penetrantes ensaios.⁶⁹

    Esses dois signos, opostos entre si, o da autoridade incontrastável e o da pluralidade democrática, fixavam-se na cena brasileira às vésperas do nascimento de San Tiago, e iriam reger-lhe o seu curto mas fecundo destino político.

    • Encontro na capital federal

    A cidade que assistira aos acontecimentos de 1909 e 1910 havia-se transformado radicalmente nos últimos anos. A nova avenida – Central, hoje Rio Bran­-co –, aberta em 1905 deslocara o eixo da vida comercial do Rio de Janeiro da rua do Ouvidor, que corria do Largo de São Francisco – ponto das seges e vitórias tiradas a cavalo – até o primitivo ancoradouro da Praça XV.⁷⁰ A nova avenida rasgava ao tráfego dos primeiros veículos automotores a ligação do porto, havia pouco construído rente à praça Mauá, à avenida Beira-Mar, que, ornada de belos jardins parisienses, cintava as amplas e sucessivas curvas das enseadas da Glória, do Flamengo e de Botafogo.⁷¹ O túnel ligando a rua Real Grandeza à rua do Barrozo fora aberto ao tráfego havia pouco, estendendo a comunicação viária até as praias contiguas e desertas do Vigia do Leme e de Copacabana.⁷² Da avenida Beira-Mar, o caminho em direção ao sul da cidade, e para onde se estendia a sua área urbana privilegiada, abria-se pela rua São Clemente, que em suave declive iria ter no grande espelho da lagoa Rodrigo de Freitas; a estreita planície, avançada à direita deste ponto até o sopé do maciço da Gávea, já exibia sobrados típicos da florescente classe média, construídos em lotes desmembrados às chácaras imperiais que no século anterior circundaram o Jardim Botânico, e das quais algumas ainda se contavam.⁷³

    José Felippe Correa de Mello, o avô paterno de San Tiago, não guardara, porém, boas recordações da capital federal quando a visitou em 1891; instalado na travessa São Salvador, no bairro de Botafogo, assustaram-no as febres que então assolavam a cidade. Ao transferir-se com a mulher Geraldina e a filha Violeta de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, buscou Felippe abrigo no então distante bairro da Gávea, que supunha a salvo das epidemias.⁷⁴ Ao pé da pedra que empresta o nome ao bairro, e tendo na rua Marquês de São Vicente a lhe serpentear o sopé da encosta a sua principal via de acesso, aí se instalou Felippe. Da Gávea ao centro da cidade o trajeto era vencido em bondes, que corriam ao longo da rua Jardim Botânico até o largo do Humaitá, para onde confluem, paralelas, as vias de ligação à praia de Botafogo, as ruas Voluntários da Pátria e São Clemente.⁷⁵ Em uma esquina desta com a rua da Matriz, viera residir Sabino Besouro, que servira no Exército com Felippe. A filha de Felippe, Violeta, logo fez amizade com Anadia, filha de Sabino e Cassiana Azambuja, irmã de Justa.⁷⁶

    Raul acompanhara a mãe, Justa, em visitas à casa da prima Anadia e aí conheceu Violeta, e o namoro que iniciaram, entrecortado pelas viagens a serviço do jovem oficial da marinha, mesmo assim terá sido bastante para que decidisse propor casamento à filha do general Felippe. Em dezembro de 1910, em meio à revolta da Armada, Violeta Correa de Mello e Raul de San Tiago Dantas, os pais de San Tiago, casaram-se.

    CAPÍTULO II

    INFÂNCIA

    Nascimento e infância no Rio de Janeiro

    Véspera da Primeira Guerra Mundial

    O irmão e a irmã

    A avó e o menino: Copacabana

    Primeira Guerra Mundial

    Revolta militar em Copacabana

    Estadia em Paranaguá

    A Coluna Prestes

    Eu e você fomos crianças cerebrais e pouco expansivas.¹

    • Nascimento e infância no Rio de Janeiro

    Violeta, ciente das longas ausências do marido, não quis afastar-se da amiga Anadia e do círculo social que passara a frequentar ao mudar-se de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro no começo daquele ano de 1910; além disso, igual era a vontade de sua sogra, Justa, que veio morar com o jovem casal. Raul fora o objeto de todos os seus cuidados e planos e, oficial de Marinha, não era apenas o apoio com que Justa contava, mas entre mãe e filho estabelecera-se uma firme identidade de temperamentos, afinada pela mesma rigidez de caráter.² Violeta compôs com argúcia a atmosfera familiar que se formava e, em breve, incorporada com a chegada de sua mãe, Geraldina, que, viúva, veio residir também com o casal em uma pequena casa de vila em Botafogo.³ No antigo bairro ainda restavam palacetes remanescentes do Império, e as mansões republicanas eram construídas em suas ruas principais; nas vias secundárias, abrigava-se a média burguesia que ocupava as muitas vilas formadas por moradias térreas e sobrados estreitos, simples mas confortáveis. Os bondes ligavam Botafogo ao centro, vencendo a rua Voluntários da Pátria até o pavilhão Mourisco, daí cortavam os belos jardins que ornavam a enseada, subiam a rua Senador Vergueiro e ganhavam o coração da cidade.⁴

    A interseção das ruas Voluntários da Pátria e Real Grandeza era um dos pontos mais movimentados do bairro. A Igreja matriz situada pouco acima, na Voluntários, reunira em seu redor o discreto comércio local, formado sobretudo de padarias, armazéns e pequenas lojas; e, através do túnel da rua Real Grandeza (o túnel Velho), o tráfego com destino a Copacabana crescia continuamente.

    A avenida Izabel de Pinho, hoje rua Camuirano – as ruas das vilas chamavam-se então avenidas – inflete da rua Real Grandeza, à direita; segue por cerca de cento e oitenta metros, quebra à esquerda em ângulo reto, e pinça a rua Voluntários da Pátria logo antes do cruzamento desta com a Real Grandeza.⁵ A pequena vila de casas que nesse trecho se formara era encerrada por portões em ambas extremidades, tanto na Real Grandeza quanto na Voluntários da Pátria, e o acesso a ela, restrito aos moradores.

    Na casa de número 1, à esquerda de quem entrava na Villa Izabel de Pinho pela rua Real Grandeza, às quinze horas e cinquenta minutos do dia trinta de outubro de 1911, nasceu o primogênito de Raul e Violeta, batizado Francisco Clementino de San Tiago Dantas, o nome de teu Avô, porque é mais ilustre do que o meu e assim és hoje o representante de uma Família Ilustre, como Raul explicará em carta dirigida aos filhos, então com a mesma idade com que recebera o Dever Sagrado que lhe confiara seu pai, o avô ora homenageado.

    O segundo-tenente Raul pouco tempo ficou com o filho recém-nascido. Em junho daquele ano deixara o Minas Gerais, e "pelo bom cumprimento de seus deveres, zelo

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