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Rio de Janeiro: como chegamos aqui?
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Rio de Janeiro: como chegamos aqui?
E-book264 páginas3 horas

Rio de Janeiro: como chegamos aqui?

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Sobre este e-book

"Rio de Janeiro: como chegamos aqui?", da jornalista Julia Michaels, é uma viagem pessoal para dentro da cidade dita maravilhosa, compartilhada com quem quiser entender suas dinâmicas políticas, sociais e empresariais. Um painel da euforia à depressão, que se inicia em 2009, quando o Rio é escolhido como sede da Olimpíada, estendendo-se até 2018, quando os cariocas passam a lidar com uma realidade triste e desconcertante. Juntando dados e informações de entrevistas que conduziu à sua própria experiência e a suas observações, Julia examina a política, a segurança pública, o saneamento, a mobilidade e muito mais. Revela os fatores que contribuíram para a ascensão e a queda, propondo reflexões e ações que poderiam transformar esse quadro. Sugere, pelo seu exemplo, que todos os sujeitos urbanos da metrópole carioca podem se debruçar nesta realidade desafiadora, assim como ela o fez em seu livro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de out. de 2020
ISBN9786588360040
Rio de Janeiro: como chegamos aqui?

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    Rio de Janeiro - Julia Michaels

    CANTAGALO

    PELO

    CAMINHO

    DAS

    PEDRAS

    PORTUGUESAS

    Vocês têm que comprar um carro blindado, aconselharam os amigos paulistanos no bota-fora.

    Cheguei ao Rio em 1995, vinda de São Paulo, com filhos e marido; ele, transferido por causa do trabalho. Partes do Rio de Janeiro estavam dominadas por facções criminosas. O termo geral, utilizado pelo Grupo Globo, servia para que não se nomeasse (e, assim, se enaltecesse) as gangues Amigos dos Amigos, Comando Vermelho e Terceiro Comando, lideradas por homens com nomes de DJs, como Marcinho VP e Uê.

    Como jornalista em São Paulo na década de 1980, eu cobria as tentativas de seguidos governos federais de baixar a inflação. Vinha pouco ao Rio de Janeiro. Pelo noticiário, sabia do crime e da violência, dos sequestros e dos arrastões. Conhecia aquele bordão do carioca do asfalto: o morro vai descer!.

    Já sentira o magnetismo desde o primeiro dia em que conheci a cidade, em 1978. Quase duas décadas depois, ao chegar para morar, perdurava em mim aquele fascínio incomum – e uma preocupação sem igual.

    Dizia-se que os médicos nos hospitais cariocas se igualavam, tecnicamente, aos de campo, na Guerra do Vietnã, pela capacidade de extrair balas e suturar feridas. O Rio experimentava uma onda de sequestros, e pobre de quem fosse proprietário de um negócio com grande fluxo de dinheiro vivo, como supermercados e empresas de ônibus.

    Demos ouvidos aos amigos paulistanos. Compramos um carro blindado, arrumamos um motorista particular e colocamos os filhos – e nós mesmos – numa bolha de aparente conforto, centrada em São Conrado. Dentro da bolha, amigos, vizinhos e colegas brancos, de classe média alta, em boa dose estrangeiros; pessoas que vestiam grife, dirigiam carros importados, esquiavam na neve, tinham uma segunda casa em Búzios ou Angra dos Reis e filhos em escolas bilíngues. Para nós, a bolha não era uma bolha; era a normalidade naturalizada e inquestionável.

    Passou-se quase uma década.

    Dá para imaginar uma parisiense fazendo uma grande festa de aniversário, em Paris, deliciada com a ideia que teve: uma festa com o tema Paris – música, decoração e comidinhas tipicamente parisienses… em Paris?! No Rio de Janeiro, no final de 2004, fiz uma festa para comemorar meus 50 anos e, na festa: comida de boteco, bar de caipirinhas, samba (pouco tocado nas festas chiques da cidade, onde a preferência era, para meu estranhamento, música pop de origem norte-americana, como eu) e, como decoração, uma escultura de favela feita de papel machê.

    Eu queria gostar de uma cidade que não queria conhecer. Tinha mais intimidade com o interior do meu carro blindado do que com a zona Sul, a Lapa e toda a zona Norte. Cidades vizinhas como Nova Iguaçu e Duque de Caxias localizavam-se numa galáxia à parte. Já era difícil acompanhar os acontecimentos no Rio propriamente dito, pensava eu, quanto mais no resto… E o resto ficou de lado.

    Fazia as compras do mês no Carrefour da Barra; ia ao cinema no BarraShopping; passava por Santa Cruz, a caminho de Angra dos Reis, nos fins de semana e feriados – e apreciava tudo através do vidro blindado. No Carnaval, mais uma vez de longe, admirava as singulares fantasias de Clóvis, os bate-bolas, as festas. Meus filhos não sabiam atravessar uma rua, o medo limitava nossas vidas aos trajetos para o trabalho, o colégio, as aulas particulares, os médicos e as terapias. Quanto ao entretenimento: almoços no Leblon, festas, jantares em clubes e casas de amigos. Naquelas décadas de balas perdidas, eu não cruzava o Túnel Rebouças à toa e evitava as fronteiras de Ipanema com Copacabana, onde pulsava o turbulento Morro do Cantagalo.

    Com o fim do meu casamento, no começo de 2005, a bolha estourou. Melhor dizendo, já vinha perdendo a elasticidade e a força enquanto eu a alfinetava.

    Sim, dava minhas fugidinhas: no tempo que sobrava da gestão familiar e caseira, escrevi um romance sobre as origens do samba e a imigração judaica para o Rio de Janeiro, e a história se passava na praça Onze. Por aquela praça, outrora vistosa, andei medrosa, sob o sol quente, xingando silenciosamente o Getúlio Vargas, que, com seus projetos para lá de grandiosos, acabou concentrando esforços na construção da avenida Presidente Vargas, deixando a praça Onze sumir, ficando seu nome entre terrenos baldios.

    Certa vez, dirigindo meu carro blindado no meio de um temporal, vi uma mulher caída na calçada da estrada do Joá, quase se afogando numa enxurrada. Coloquei-a, encharcada, dentro do carro, e, na mesma hora, vi que sofria de transtorno mental e não sabia dizer onde morava. Levei-a à delegacia de polícia da Barrinha. Ali, soube que a Polícia Civil não trata desse tipo de problema. Fiquei meia hora com ela no carro, zanzando pela Barra da Tijuca à procura da delegacia da Polícia Militar. Descobri que também não poderiam nos ajudar, e a mulher tremia de frio, e eu não tinha nada para cobri-la. Tive de deixá-la novamente na rua; não conseguia me dizer um endereço.

    Do emaranhado de hospitais federais, estaduais e municipais, ao ouvir as histórias de amigos e empregados domésticos, tirava uma certeza: se eu tivesse o infortúnio de sofrer uma batida, seria levada ao Miguel Couto. E deveria, logo que possível, fugir para o Hospital Samaritano, onde os nomes dos melhores médicos (ou dos mais enaltecidos) da cidade acendiam num painel do saguão quando eles estavam na casa. Hoje, o Copa Star é o destino predileto de quem pode pagar.

    Havia muita coisa fora da minha bolha, um leque carnavalesco de cores, ônibus, vans, trens – todos com suas práticas e tarifas. No fim dos anos 1990, ouvi falar das milícias na zona Oeste. Comentava-se que solucionavam um problema policial de cobertor curto. A favela de Rio das Pedras não permitia tráfico de drogas. Isso em si, num primeiro olhar, parecia boa coisa, não? E como os moradores de prédios milionários, em frente à praia de São Conrado ou à lagoa Rodrigo de Freitas, suportavam uma poluição que deixava a natureza carioca linda apenas se contemplada da janela? Essas facetas da vida no Rio de Janeiro não cabiam no meu entendimento.

    Não que eu entendesse minha cidade natal, Boston, da qual saí aos 24 anos; ou Washington, D.C., onde conheci meu marido e completamos, juntos, o mestrado em Relações Internacionais; ou a eterna Roma, em que vivi um ano durante o colegial; ou mesmo São Paulo… Não se entende uma cidade; vive-se nela, inconsciente dos códigos, mesmo que façam parte do dia a dia. Por exemplo, a maioria dos cariocas sabe, praticamente ao nascer, que uma mulher não deve caminhar até a praia trajando apenas biquíni e chinelo, que deve se cobrir até chegar à areia. É fácil identificar uma turista quando anda na rua sem saída de praia.

    Para quem chega ao Rio, há o desafio de entender comportamentos, suposições e convicções, de decifrar os códigos que existem entre aqueles que aqui vivem.

    E, nesse processo, é preciso conhecer a si mesmo. Decifrar uma metrópole, um país – o mundo –, não é tarefa simples. Para fazê-lo, é necessário também se decifrar: examinar sua maneira de pensar, de perceber o mundo, seus conceitos e preconceitos.

    E para entendermos quais perguntas fazer, como fazer, onde e a quem fazer? O Brasil não é para principiantes, disse Tom Jobim. Os estrangeiros estarão entre os principiantes? Se há os principiantes, há os bons entendedores, os sabidões, aqueles que falam com a voz autorizada de quem acha que entende seu mundo. A postura tradicional dos nativos parecia ser, enfim, a do sábio cético, do sabidão, ponto de vista exaltado no samba Enquanto a gente batuca, de Ivan Lins, Vítor Martins e Nei Lopes:

    Enquanto a gente batuca

    A gente tá de butuca

    Sabendo quem é que samba

    Sabendo quem é que fica

    Quem põe a mão na cuíca

    Quem põe a mão na cumbuca

    Enquanto a gente batuca

    Enquanto a gente batuca

    Mas enquanto a gente rebola

    Vai pondo a cachola para funcionar

    Porque quem não sacode a carola

    E não tá com essa bola

    Só pode embolar

    Quem não é da boa escola

    Na nossa bandola não vai violar

    A gente que canta e batuca

    Precisa ter cuca que é pra não dançar

    Mais tarde, descobri que a tal sabedoria funciona para cegar o carioca. Quem já sabe não precisa ir atrás dos fatos. Repetem-se mitos, suposições, boatos. Tudo é conspiração contra a gente, mesmo; o que adianta saber detalhes, colher evidências?

    E pelo mundo fui tentando entender e me entender. Em Boston, ainda jovem, lutava para me perceber como filha, estudante e mulher bem-sucedida, como meus pais queriam. Na capital norte-americana dos anos 1970, na biblioteca da faculdade, grudava os olhos nos livros de micro e macroeconomia e tentava endendê-los. Durante os 20 e poucos anos em que vivi nos Estados Unidos, eu não olhava à minha volta e mal percebia a divisão entre brancos e negros. Cresci com isso, era normal – o que não quer dizer que era inteligível. Em Roma, fiz um curso fascinante de estudos urbanos. Andava pelo centro histórico da cidade eterna e aprendia tudo sobre as reformas urbanas dos papas. Em São Paulo, a família.

    Para complicar, o saber leva a responsabilidades. Algumas pessoas têm o costume de evitar lugares de histórias escabrosas, como o Chile de Pinochet, os Estados Unidos de Trump, países com direitos humanos duvidosos. E quando as histórias escabrosas são nossas? Melhor não olhar de perto.

    Durante muitos anos, nunca ficou claro para mim que fosse possível, e mesmo desejável, tentar decifrar uma cidade – e que um dia eu teria vontade de me lançar a esse desafio.

    Como foi que comecei a levantar os olhos das lindas pedras portuguesas das calçadas cariocas para distinguir os desenhos no tecido invisível que é o Rio de Janeiro? E como voltei a olhar as pedras, espelhos perfeitos da metrópole, permeadas de rachaduras, buracos e desníveis? Primeiro, eu me abri para o novo: novas experiências, novas amizades, novos espaços. Não vou recontar minha história de solteirice tardia, do livro anterior a este, Solteira no Rio de Janeiro. É suficiente dizer que arrumei emprego, deixando incompleto em casa um segundo romance que escrevia, até então, sobre a política no Brasil dos anos 1970 em diante. Desviei a cabeça do governo militar brasileiro para o dia a dia na Editora Objetiva, tratando de traduções, comprando e vendendo livros de não ficção estrangeira.

    E na editora conheci, longe do papel da patroa do lar, pessoas que moravam nas zonas Norte e Oeste – pessoas de outras camadas sociais, tão diferentes da minha; pessoas que levavam horas para chegar ao trabalho; jovens que, apesar de todas as prováveis dificuldades na infância e na adolescência escolar, estavam lá, cursando Letras em universidades públicas exigentes. Eu, que passei anos confortáveis aprendendo idiomas e morando em diferentes países, agora trabalhava com tradutores autodidatas que viajavam muito, sim, mas por meio de filmes e videogames. Tudo isso contribuiu, mais tarde, para meu trabalho de tentar decifrar o Rio de Janeiro. Eu precisei comparar minha vida à dos outros, vindos de experiências e lugares diferentes. Claro que me vi dentro de um contexto maior do que antes – e o contexto ficou mais nítido.

    Também tirei um túnel da minha vida, me mudando de São Conrado para Ipanema, e acrescentei ao meu pequeno repertório apenas um trajeto: Ipanema-Cosme Velho, ida e volta, num carro já sem blindagem, porém de vidros escuros, item de necessidade básica de qualquer mulher que prezasse a segurança pessoal.

    Ah, havia mais um trajeto novo. Comecei a correr na ciclovia à volta da lagoa Rodrigo de Freitas (em alguns pontos, para não sentir o mau cheiro, respirando pela boca).

    Um dia, já íntima da lagoa, ouvi meu chefe passar uma dica a um visitante estrangeiro: se fosse andar pela lagoa, que levasse um dinheiro para o assaltante. Ri daquele exagero. Quem corre leva dinheiro para um coco, no máximo. A lagoa não era o Central Park dos anos 1970, local certeiro de assaltos em Nova York, julguei.

    Meses depois da minha risada de boa entendedora, num sábado, ao anoitecer, corria feliz da vida pela lagoa. Fui assaltada. O sujeito estava de bicicleta, parado, atravessado no meio da pista, a mão debaixo da camiseta, posição que qualquer carioca bom entendedor reconhece como sendo perigosa. Olhou para o iPod preso ao meu braço: Passa o radinho!. Passei. E me dei conta de que estava mesmo precisando de um manual de instruções da cidade: o manual do carioca.

    Já trabalhava há quase quatro anos na editora quando chegou o fatídico 2 de outubro de 2009. A Cidade Maravilhosa, a grande homenageada no meu aniversário de 50 anos, em escolha do COI (Comitê Olímpico Internacional), em Copenhague, ganhava o papel de sede das Olimpíadas.

    Naquela tarde de sexta-feira (ponto facultativo para funcionários públicos), dei um tempo na leitura de um manuscrito, checava os fatos do mundo, como de costume, no site do jornal O Globo, e vi a notícia, que passei aos colegas mais próximos. Mas não houve algazarra; estávamos muito ocupados. A feira mais importante do mercado de livros aconteceria dali a duas semanas, em Frankfurt, na Alemanha. Preparando-se para o evento, todos corriam para avaliar os livros que voavam pelo mundo. Os mais promissores eram vendidos semanas antes da feira em si, e por e-mail. Naquele ano eu não iria, mas tinha que recomendar títulos ao meu chefe. Precisávamos fazer frente à concorrência, entre as editoras do Brasil, pelos livros quentes da estação.

    Eu mal desconfiava, enfim, de que o Rio de Janeiro, naquela sexta-feira, chegando finalmente ao palco mundial, estava prestes a dar sua virada histórica.

    E vi as reações mais diversas: desde o sou brasileiro com muito orgulho, e com muito amor, até o mas meu aluguel, meu custo de vida, tudo isso vai subir….

    No dia seguinte, 3 de outubro, sábado, agachei para apanhar O Globo à porta da minha casa. Uma foto colorida na capa. Na véspera, a praia de Copacabana se enchera de gente. O jornal comemorava a notícia dos Jogos. 2016: o ano que já começou, dizia a manchete principal, com uma foto de Copacabana, uma multidão de 30 mil pessoas, confetes e tubinhos de plástico em verde e amarelo. Agora só faltam sete para: fazer uma estação de metrô por ano, duplicar as vagas da rede hoteleira, despoluir a baía e as lagoas da Barra e construir e reformar 33 instalações esportivas, completava o jornal, no pé da primeira página. Sete anos, uma vida. Uma criança cresceria a tempo de disputar medalha.

    E, naquele ano de 2009, quem esperava que a Perimetral seria dinamitada? Que pudessem cessar as balas perdidas? Que teríamos um alojamento para atletas olímpicos e paralímpicos e um complexo habitacional para a classe média alta numa extensão da Barra da Tijuca, estranhamente batizado de Ilha Pura, e hoje um complexo fantasma? Que jovens moradores de favela pudessem entrar para a faculdade? Que o prefeito prometeria melhorar as favelas da cidade até 2020 e depois descartaria a promessa? Que milhares iriam às ruas protestar contra o aumento da tarifa de ônibus? Que a área do porto seria revitalizada para se tornar o atrativo das Olimpíadas e, depois outro bairro fantasma? Que a tortura e a morte de um morador de favela causariam comoção popular, inclusive na porta da casa do governador? Que o mesmo governador, depois, iria para a cadeia pelo roubo de centenas de milhões? Que teríamos uma extensão do metrô até a Barra e três pistas dedicadas a novas linhas de ônibus articulados, de alta capacidade, atravessando a cidade? Quem esperava, enfim, que viveríamos uma seca como nunca vista, ameaçando o badalado estilo de vida relax dos

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