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Spoonbenders: A fabulosa família Telemachus
Spoonbenders: A fabulosa família Telemachus
Spoonbenders: A fabulosa família Telemachus
E-book600 páginas8 horas

Spoonbenders: A fabulosa família Telemachus

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Sobre este e-book

Finalista do prêmio Nebula de melhor livro (2017)
Finalista do prêmio Locus de melhor livro de fantasia (2018)
Finalista do World Fantasy Award de melhor livro (2018)
Em meados dos anos 1960, em plena Guerra Fria, Teddy Telemachus, um sedutor trapaceiro nas cartas e nos truques de mágica, resolve participar de um estudo secreto do governo federal sobre habilidades paranormais. Lá ele conhece Maureen McKinnon, uma paranormal legítima, dotada de misteriosos poderes psíquicos, por quem se apaixona. Eles se casam, têm três filhos, todos com dotes excepcionais: Irene é um detector de mentiras humano, Frankie possui o dom da telecinese, e Buddy é capaz de prever – ou melhor, recordar – o futuro.
Em pouco tempo, os cinco começam a sair em turnês para exibir seus poderes, ficando conhecidos nacionalmente como A Fabulosa Família Telemachus. Até que um dia sua fama se quebra ao serem desmascarados num influente programa de TV exibido em todo o país. A partir daí, tem início a tragédia na vida de uma família que se esfrangalha em dívidas financeiras e instabilidade emocional.
Em Spoonbenders, Daryl Gregory, premiado autor de histórias fantásticas e de terror, desfia um elenco de personagens excêntricos, problemáticos e extremamente envolventes em uma complexa saga familiar que mistura melodrama, humor, a máfia de Chicago e programas secretos de agências governamentais com a dinâmica de uma família socialmente inepta, mas, ao seu modo, bastante unida. Fascinante como os poderes dos Telemachus, Spoonbenders é a hilária e comovente história de uma família de talentosos sonhadores, e as forças invisíveis que ligam uns aos outros.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de jul. de 2019
ISBN9788595170483
Spoonbenders: A fabulosa família Telemachus

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    Spoonbenders - Daryl Gregory

    GELLER

    1995

    JUNHO

    1

    Matty

    Matty Telemachus deixou seu corpo pela primeira vez no verão de 1995, quando tinha 14 anos de idade. Ou talvez seja mais exato dizer que seu corpo o expeliu, mandando pelos ares sua consciência em um gêiser de luxúria e vergonha.

    Pouco antes de isso acontecer, ele estava ajoelhado dentro de um closet, com a mão suada apoiada na parede de gesso e o olho direito encostado num buraco de uma tomada sem fiação. Do outro lado da parede estava sua prima Mary Alice com a amiga loura e gordinha. Janice? Janelle? Provavelmente Janelle. As garotas – ambas dois anos mais velhas que ele, segundanistas, mulheres – estavam deitadas na cama uma ao lado da outra, apoiadas nos cotovelos e de frente para ele. Janelle usava uma camiseta ornada com lantejoulas, mas Mary Alice – que no ano anterior anunciou que queria ser chamada apenas de Malice – usava uma camisa de flanela grande demais que pendia de seus ombros. O olho dele fixou-se na gola aberta da camisa e desceu lentamente pelas ondas da pele até as sombras. Ele tinha quase certeza de que ela estava usando um sutiã preto.

    Elas estavam vendo o anuário da escola enquanto escutavam um CD de Mary Alice num Walkman, dividindo os fones de ouvido como fossem um osso da sorte. Matty não conseguia ouvir a música, mas, mesmo que pudesse, não deveria ser de nenhuma banda que ele conhecesse. Alguém que chamava a si mesma de Malice não ia tolerar nada popular. Uma vez ela o flagrou cantarolando Hootie & the Blowfish, e a expressão de desprezo em seu rosto provocou nele um nó na garganta.

    Ela parecia não gostar dele por uma questão de princípio, embora ele tivesse uma prova de que já tivesse gostado: uma Polaroid natalina de Mary Alice com quatro anos, sorrindo com os braços morenos em torno do corpo branco dele de bebê. Mas nos seis meses desde que Matty e a mãe tinham voltado para Chicago e para a casa do vô Teddy, ele via Mary Alice de quinze em quinze dias, e ela mal falava com ele. Matty tentava imitar a indiferença dela e fingia que ela não estava no mesmo ambiente. Daí ela passava por ele tirando-o do caminho com aquele cheiro de chiclete e cigarro, e a parte racional do seu cérebro saía da estrada e batia em uma árvore.

    Por desespero, determinou três mandamentos para si mesmo.

    1. Se sua prima estiver no mesmo ambiente, não tente olhar para o seu decote. É de arrepiar.

    2. Não tenha pensamentos libidinosos com sua prima.

    3. Em nenhuma circunstância você vai se tocar quando estiver tendo pensamentos libidinosos com sua prima.

    Nessa noite, até então os dois primeiros tinham ido para o espaço, e o terceiro estava por muito pouco. Os adultos (com exceção do tio Buddy, que na verdade não saía mais de casa) tinham ido todos ao centro da cidade para jantar, evidentemente em algum lugar elegante, com sua mãe usando sua saia de entrevistas, tio Frankie parecendo um corretor imobiliário com aquele paletó por cima de uma camisa de golfe, e a mulher de Frankie, tia Loretta, apertada em um terninho lilás. Vô Teddy, é claro, usava terno e o Chapéu (na cabeça de Matty, Chapéu era sempre com letra maiúscula). Mas mesmo esse uniforme tinha sido um pouco aprimorado para a ocasião: abotoaduras de ouro, um lenço decorativo para fora do bolso do peito, seu relógio de pulso mais elegante cravejado de diamantes. Eles iriam voltar tão tarde que as filhas de Frankie dormiriam lá. Tio Frankie preparou quatro litros de suco Goji Berry em pó, pôs uma nota de vinte dólares com alguma cerimônia ao lado do jarro e se dirigiu às filhas. Eu quero troco, disse ele a Mary Alice. Em seguida, apontou para as gêmeas. E vocês duas, tentem não botar fogo na porra da casa, está bem? Polly e Cassie, de sete anos de idade, pareceram não escutá-lo.

    Tio Buddy era tecnicamente o responsável, mas todos os primos entenderam que iam passar a noite por conta própria. Buddy estava em seu próprio mundo, um planeta de gravidade alta que ele só abandonava com grande dificuldade. Trabalhava em seus projetos, riscava os dias no calendário da geladeira com lápis de cera cor-de-rosa e falava com o menor número de pessoas possível. Ele nem atendeu a porta para o cara da pizza; foi Matty quem foi até lá com a nota de vinte e quem pôs os dois dólares de troco com muito cuidado no centro da mesa.

    Com uma coreografia cuidadosamente cronometrada, Matty conseguiu ludibriar a intrometida Janelle e as gêmeas para conseguir a cadeira ao lado de Mary Alice. Ele passou todo o jantar ao lado dela, extremamente consciente de cada centímetro que separava suas mãos das dela.

    Buddy pegou uma fatia de pizza e desapareceu no seu porão. O zumbido agudo da serra de fita foi tudo o que ouviram dele por horas. Buddy, um solteirão que morara toda a vida nessa casa com o vô Teddy, estava sempre começando projetos – derrubando, esboçando, consertando –, mas nunca terminava.

    Como o cômodo parcialmente desconstruído onde Matty estava escondido. Até recentemente, ele e o quarto contíguo eram parte de um sótão inacabado. Buddy tinha removido o isolamento antigo, montado closets, instalado luzes e colocado camas nos dois quartos – e em seguida passara para outro projeto. Essa metade do sótão era tecnicamente o quarto de Matty, mas a maior parte do closet estava cheia de roupas velhas. Buddy parece ter se esquecido das roupas e das tomadas vazias atrás delas.

    Mas Matty não esqueceu.

    Janelle virou uma página do anuário e riu.

    – Ah! O seu amor! – disse ela.

    – Cale a boca – disse Mary Alice. Seu cabelo escuro caído diante dos olhos estava de um jeito que o deixava louco.

    – Você quer aquela coisa grande na boca, não quer? – perguntou Janelle.

    Matty estava com câimbras nas coxas, mas ele não ia se mexer, agora.

    – Cale a porra da boca – disse Mary Alice. Ela socou de leve o ombro da amiga. Janelle rolou por cima dela, rindo, e quando as garotas se aprumaram, a camisa de flanela tinha caído do ombro de sua prima, expondo uma alça preta de sutiã.

    Não: uma alça roxa-escura de sutiã.

    Terceiro mandamento: Tu não deves te tocar, começar a arder e fumegar.

    Vinte segundos febris depois, as costas de Matty se arquearam como se puxadas por um fio quente. Um rugido oceânico encheu seus ouvidos.

    De repente, ele estava suspenso no ar, os pregos do teto inclinado a centímetros de seu rosto. Ele gritou, mas não tinha voz. Tentou empurrar o teto para se afastar, mas percebeu que não tinha braços. Na verdade, ele não tinha corpo.

    Após um momento, sua visão fez uma rotação, mas ele não sentiu nenhum controle sobre esse movimento, seus olhos eram uma câmera que se desviava por conta própria. O chão do quarto entrou em foco. Seu corpo estava caído do lado de fora do closet e jazia estendido sobre o compensado.

    Era assim que ele parecia? Aquela barriga gorducha, a linha do queixo coberta de espinhas?

    Os olhos do corpo piscaram e se abriram, e por um momento vertiginoso Matty era ao mesmo tempo o observador e o observado. A boca do corpo se abriu em choque e então...

    Foi como se os fios que o prendiam no ar tivessem sido repentinamente cortados. Matty despencou. O corpo gritou: um grito agudo de menina que ele teve tempo de registrar como profundamente embaraçoso. Então a consciência e a carne se chocaram.

    Ele quicou pelo interior do próprio corpo como uma bola de borracha. Quando as reverberações diminuíram, Matty estava olhando por suas próprias órbitas para o teto, que agora estava a uma distância apropriada.

    Pancadas surdas soaram no outro quarto. As garotas! Elas ouviram!

    Ele deu um pulo, cobrindo a virilha como um soldado ferido.

    – Matty? – chamou Malice. A porta começou a abrir.

    – Eu estou bem! Eu estou bem! – gritou ele e se jogou para dentro do closet.

    De algum lugar, a loura riu. Mary Alice apareceu na porta do closet, com as mãos nos quadris.

    – O que você está fazendo aí dentro?

    Ele olhou para ela com a parte inferior do corpo coberta por roupas de mulher – uma delas um vestido laranja listrado que parecia bem anos 1970.

    – Eu tropecei – disse ele.

    – Ah, tá...

    Ele não fez nenhum movimento para ficar de pé.

    – Qual o problema? – perguntou Mary Alice. Ela vira alguma coisa na expressão dele.

    – Nada – respondeu. Ele acabara de ter um pensamento ruim: esses são os vestidos da vó Mo. Eu acabei de destruir as roupas de minha avó morta.

    Ele se ergueu sobre um cotovelo. Tentando parecer confortável, como se tivesse acabado de descobrir que vestidos de vinte anos davam uma cama perfeita.

    Mary Alice ia dizer algo, mas depois olhou para a parede atrás dele, logo acima de seu ombro. Os olhos dela se estreitaram. Com extrema força de vontade, Matty não olhou para trás para ver se ela estava olhando o buraco vazio da tomada.

    – Então está bem – disse ela, e se afastou do closet.

    – Ok – disse ele. – Obrigado. Está tudo bem.

    As garotas deixaram o quarto, e ele imediatamente se virou e cobriu o buraco na parede com o vestido laranja. Começou a pendurar novamente os vestidos e casacos: um casaco de pele de coelho até a cintura, várias saias até os joelhos, uma capa de chuva xadrez. Um dos últimos itens estava dentro de um saco plástico transparente de lavanderia a seco. Era um vestido comprido prateado e cintilante, e vê-lo fez com que a memória despertasse no fundo de seu cérebro.

    Ah, pensou ele. Isso mesmo. É o vestido que a vó Mo estava usando naquele vídeo. O vídeo.

    Tio Frankie havia mostrado a fita de vídeo a Matty no dia de Ação de Graças quatro anos atrás. Frankie tinha bebido muito vinho tinto e estava bêbado quando a esposa, Loretta, desembrulhou os aperitivos de coquetel de camarão, e as frases dele tornaram-se enfáticas e urgentes. Ele estava falando de um sujeito chamado o Incrível Archibald, que tinha estragado tudo.

    – Pensem no que nós poderíamos ter – disse Frankie. – Nós poderíamos ser reis.

    Irene, mãe de Matty, riu, fazendo com que Frankie fechasse a cara.

    – Reis do quê? – perguntou ela.

    Irene e Matty tinham chegado de carro de Pittsburgh na noite da véspera e, quando acordaram, descobriram que o vô Teddy havia comprado uma ave, e não muito mais do que isso; ele estava esperando que a filha fizesse aparecer por mágica o resto da refeição. Agora que finalmente terminaram de jantar, a mesa transformou-se num campo pós-batalha: torta de abóbora destruída, Rice Krispies Treats em frangalhos, todas as garrafas de vinho vazias. Matty era a última criança que restava em sua cadeira. Ele sempre gostava de ficar com os adultos. Na maior parte do tempo, ficava quieto, sem falar, na esperança de que eles esquecessem que ele estava ali e começassem a dizer coisas interessantes.

    – Esse traste sem talento simplesmente não podia nos ver ganhar – disse Frankie.

    – Não, ele era um homem talentoso, um homem talentoso – disse o vô Teddy da cabeceira da mesa. – Até brilhante. Mas não tinha visão. – Como sempre, ele era a pessoa mais bem-vestida na casa. Terno preto reluzente, camisa rosa, uma gravata de caxemira colorida larga como uma truta. Vovô sempre se vestia como se estivesse prestes a ir a um casamento ou a um funeral, exceto de manhã ou pouco antes de ir para a cama, quando circulava como se estivesse sozinho em casa: camiseta regata, calção, meias pretas. Ele não parecia possuir roupa esportiva nem roupa de trabalho, talvez porque nunca praticasse esportes e não trabalhasse. Ele, porém, era rico. Irene dizia não saber de onde vinha o dinheiro, mas Matty imaginava que era tudo ganhado no pôquer. O vô Teddy, todos sabiam, era o maior trapaceiro nas cartas de todos os tempos. Ensinou Matt a jogar o seven-card stud sentado por horas à mesa da cozinha até as moedas de Matt terminarem. (Vovô Teddy sempre jogava a dinheiro, e nunca devolvia depois de uma partida. Não se pode amolar faca com esponja, dizia ele, um ditado em que Matty acreditava mesmo sem compreender completamente.)

    – Archibald foi um mal necessário – disse o vô Teddy. – Ele era a voz do cético. Se sua mãe o tivesse feito passar vergonha, o público nos adoraria por isso. Nós podíamos ter ido à estratosfera com aquele número.

    – Ele era do mal – disse Frankie. – Um maldito picareta mentiroso! Ele não conseguiria tomar a Comunhão sem roubar a hóstia.

    O vô Teddy riu.

    – Isso tudo são águas passadas agora.

    – Não passava de um invejoso – disse Frankie. – Ele odiava nossos dons. Ele queria nos destruir.

    Matty não aguentava mais. Ele precisava perguntar.

    – O que esse cara fez conosco?

    Frankie se debruçou sobre a mesa e olhou Matty direto nos olhos.

    – O que ele fez? – disse com a voz baixa e embargada pela emoção. – Ele matou a vovó Mo, foi isso.

    Matty sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Não apenas pela declaração dramática, mas pela eletricidade de ser percebido pelo tio. De ser visto. O tio Frankie sempre tinha sido legal com Matty, mas na verdade nunca falava com ele como se ele importasse.

    – Podemos mudar de assunto, por favor? – disse Irene.

    – Ele a matou – disse Frankie se recostando, mas sem tirar os olhos de Matty. – Do mesmo jeito que se tivesse encostado uma arma em sua cabeça.

    A mãe de Matty franziu o cenho.

    – Você acredita nisso, não é?

    Frankie virou a cabeça para olhar para ela.

    – Sim, Irene, eu acredito.

    Loretta se levantou.

    – Eu vou fumar.

    – Vou com você – disse o vô Teddy. Ele se levantou da mesa, ajeitou os punhos da camisa e a pegou pelo braço.

    – Você não devia fumar, papai – disse Irene.

    – Loretta está fumando – disse ele. – Eu sou um fumante passivo.

    O tio Frankie gesticulou para Matty.

    – Venha cá, é hora de você ver uma coisa.

    – Eu não vou lavar essa louça sozinha – disse Irene.

    – Peça a Buddy para ajudar você. – Ele deu um tapa no ombro do irmão, com um pouco de força demais, pensou Matty. Os olhos de Buddy adejaram, mas seu olhar jamais saiu da meia distância. Ele tinha um jeito de se sentar que parecia imóvel, encolhendo-se cada vez mais baixo como se estivesse se transformando num pudim.

    – Deixem-no em paz – disse Irene.

    Buddy permaneceu inalterado. Estava em um de seus transes desde que terminara sua torta, olhando fixamente para o espaço, de vez em quando sorrindo consigo mesmo ou articulando em silêncio uma ou duas palavras. Sua mudez era um mistério para Matty, e os adultos não falavam sobre isso, um silêncio duplo que era impenetrável. A mãe de Matty só lhe dava variações de Ele é desse jeito. Uma vez, Matty conseguiu reunir coragem para perguntar ao vô Teddy por que Buddy raramente falava, e ele disse: Você vai precisar perguntar a ele.

    Frankie levou Matty para a sala da frente, onde havia uma televisão enorme de gabinete estacionada junto à parede como um Chrysler. Seu tio se sentou pesadamente no chão – segurando o copo de vinho no alto e conseguindo não derramar uma gota – e abriu uma das portas do gabinete.

    – Agora estamos conversando – disse Frankie. Havia um videocassete em uma prateleira, e no espaço abaixo um monte de fitas de vídeo. Ele pegou uma delas, verificou a etiqueta e a jogou para o lado. Começou a examinar a pilha. – Dei uma cópia para o meu pai – acrescentou ele em voz baixa. – A menos que Buddy tenha jogado fora, aquele filho de uma... ei. Aqui está.

    A caixa da fita tinha listras laranja. Frankie ejetou a fita que estava no videocassete e enfiou a da caixa.

    – Esta é a nossa história – disse Frankie. Ele ligou a televisão. – Esta é a nossa herança.

    Na tela, um atendente de loja apertava loucamente rolos de papel higiênico. Frankie pressionou o play no videocassete e nada aconteceu.

    – Você tem de botar no canal três – disse Matty.

    – Claro, claro. – A TV estava sem seletor, expondo um pino nu. Frankie ergueu a mão para pegar o alicate de ponta fina que o vô Teddy mantinha em cima do gabinete. – Esse foi meu primeiro emprego. Controle remoto do vovô.

    A fita estranha parecia de algo gravado sem ser de uma emissora de TV. Um entrevistador de terno sentado em um cenário apertado, com uma brilhante parede amarela às costas. ... e eles vêm empolgando plateias por todo o país, dizia ele. Vamos receber agora Teddy Telemachus e sua Fabulosa Família! Matty pôde ouvir as letras maiúsculas.

    Os aplausos na gravação pareciam metálicos. O entrevistador se levantou e caminhou até uma área de palco aberto, onde os convidados aguardavam desconfortavelmente de pé, a alguns metros de uma mesa de madeira. Pai, mãe e três filhos, todos trajando ternos e vestidos.

    O vô Teddy se parecia muito com ele mesmo, só que mais jovem. Arrumado e enérgico, com o Chapéu inclinado para trás na cabeça, tinha a aparência de um repórter de antigamente prestes a lhe contar toda a verdade.

    – Uau, essa é a vovó Mo? – perguntou Matty, embora não pudesse ser mais ninguém. Ela usava um vestido de noite prateado e cintilante, e era o único membro da família que parecia pertencer ao palco. Não apenas por ser uma beleza digna de Hollywood, embora ela o fosse, com cabelo escuro curto e olhos grandes como uma ingénue dos anos 1920. Era a sua tranquilidade, sua confiança. Ela segurava pela mão um tio Buddy de rosto doce e com idade de jardim de infância. – Ela é tão jovem.

    – Isso foi um ano antes de sua morte, tinha 30 anos – disse Frankie.

    – Não, quero dizer, em comparação com o vovô Teddy.

    – É, bom, ele pode ter escolhido uma bem novinha. Você conhece o seu avô.

    Matty balançou a cabeça com uma expressão astuta. Ele conhecia o avô, mas não do jeito que o tio Frankie estava falando.

    – Ah, sim.

    – Agora, este é o Mike Douglas Show, o programa mais assistido no país, certo? – disse Frankie. – Mike Douglas. Uma audiência de milhões.

    Na tela, o entrevistador e apresentador do programa estava apontando para várias coisas sobre a mesa: latas de metal, alguns talheres, uma pilha de envelopes brancos. Ao lado da mesa havia uma espécie de roda da fortuna em miniatura com cerca de um metro de altura, mas em vez de números nos raios, havia imagens: animais, flores, carros. A mãe de Matty, Irene, parecia ter dez ou 11 anos, embora seu vestido de veludo verde fizesse com que parecesse mais velha. Assim como sua expressão preocupada; Matty ficou surpreso ao ver isso presente em um rosto tão jovem. Ela não largava o braço do irmão mais novo, um menino magro e agitado que parecia estar tentando se retorcer para sair do terno e da gravata.

    – Esse é você? – perguntou Matty. – Você não parece satisfeito de estar ali.

    – Eu? Você devia ter visto Buddy. Ele ficou tão mal que... mas nós vamos chegar lá.

    Maureen – a vó Mo – estava respondendo a uma pergunta do apresentador. Ela sorria de maneira tímida. Bem, Mike, eu não sei se eu usaria a palavra ‘dom’. Sim, imagino que tenhamos um talento especial. Mas acredito que toda pessoa é capaz de fazer o que fazemos.

    Quando ela disse toda pessoa, ela olhou para Matty. Não para a câmera nem para o público que assistia de casa, mas para ele. Eles se olharam nos olhos, através de um espaço de anos e distorção eletrônica.

    – Ah! – disse ele.

    O tio Frankie olhou para Matty.

    – Preste atenção. Minha parte está chegando.

    O vô Teddy estava dizendo ao apresentador que mantivesse a mente aberta.

    – No tipo certo de ambiente positivo, todas as coisas são possíveis. – Ele sorriu. – Até crianças podem fazer isso.

    O apresentador se agachou de maneira desconfortável ao lado de Frankie.

    – Diga ao público o seu nome.

    – Eu posso mover coisas com a mente – disse ele. Havia uma linha de fita branca visível aos pés de Frankie. Todos menos o apresentador estavam parados atrás dela.

    – Você consegue, agora?!

    – O nome dele é Franklin – disse sua irmã.

    O apresentador aproximou o microfone dela.

    – E você é...?

    – Irene. – Seu tom de voz era contido.

    – Você tem uma habilidade especial, Irene?

    – Eu posso ler a mente. Eu sei quando...

    – Nossa! Você quer ler a minha mente agora?

    A vó Mo pôs a mão no ombro de Irene.

    – Você quer tentar, querida? Como você está se sentindo?

    – Bem. – Ela não parecia bem.

    Teddy apressou-se a explicar que Irene era...

    – Um detector de mentiras humano, se preferir, uma varinha mágica da verdade! Por exemplo, se usarmos estas cartas... – Ele levou a mão na direção da mesa.

    – Eu vou pegá-las – disse Mike Douglas. Ele passou pela linha demarcada com fita e pegou uma pilha alta de cartas de tamanho grande.

    – Filho da puta – disse o tio Frankie.

    – O que foi?

    – Espere só – disse Frankie.

    Na tela, Teddy disse:

    – Esse é um baralho comum. Agora, Mike, embaralhe e escolha uma carta, depois mostre-a para a câmera para as pessoas em casa. Mas não a mostre para Irene.

    Mike Douglas caminhou até uma das câmeras e ergueu um cinco de ouros. Ele brincou um pouco com ela, botando-a e tirando-a de foco.

    – Esta é a sua chance de mentir para uma garotinha – disse Teddy. – Vamos botar sua carta de volta no baralho. Excelente, Mike, excelente. Agora algumas embaralhadas... tudo bem, certo. Estenda a mão, por favor. Vou começar a dar as cartas viradas para cima. Tudo o que você precisa fazer é responder as perguntas de Irene. E não se preocupe, ela sempre pergunta a mesma coisa, e é uma pergunta muito simples.

    O vô Teddy pôs uma carta na palma da mão do apresentador. Irene perguntou:

    – Sr. Douglas, essa é a sua carta?

    – Não, senhorita. – Ele fez uma careta para a câmera.

    – Isso é verdade – disse Irene.

    – É simples assim – disse o vô Teddy ao apresentador. – Você pode dizer sim ou não, o que quiser. – Ele abriu outra carta na palma da mão, e depois outra. Mike dizia não para toda carta nova, e Irene balançava a cabeça afirmativamente. Então Mike disse:

    – Essa é a minha.

    – Você está mentindo – disse Irene.

    Mike Douglas riu.

    – Você me pegou! Não é a rainha de espadas.

    Eles passaram mais cartas. Mike dizia não toda vez, mas depois da décima, Irene sacudiu a cabeça.

    – Essa é a sua carta – disse ela.

    O apresentador mostrou a mão espalmada para a câmera: em cima estava o cinco de ouros. Então ele se dirigiu à vó Mo.

    – O que você responde às pessoas que dizem Ah, são cartas marcadas. Eles ensinaram a menina a lê-las!?

    A vó riu, em nada abalada.

    – As pessoas dizem todo tipo de coisa. – Ela ainda estava segurando a mão de Buddy. Ele era tão pequeno que sua cabeça mal aparecia na tela.

    O apresentador levou a mão ao bolso do paletó e sacou um envelope.

    – Por isso o que eu fiz foi trazer algumas imagens. Cada uma delas é um padrão geométrico simples. Você nunca viu este envelope, certo?

    Irene parecia preocupada, mas na verdade ela parecia preocupada desde o começo do programa.

    – Pronta? – perguntou o apresentador. Ele pegou um cartão do envelope e olhou para ele com atenção.

    Irene olhou para a mãe.

    – Formas geométricas simples – disse o apresentador.

    – Você não precisa pressioná-la – disse a vó Mo.

    – Diga-me se estou mentindo – disse o apresentador. – É um círculo?

    Irene franziu o cenho.

    – Hum...

    – É um triângulo?

    – Isso não é justo – disse Irene. – O senhor não pode me fazer perguntas, tem de...

    O tio Frankie apertou um botão e a imagem congelou.

    – Dê uma olhada no pote. – Ele apontou para um pote de aço inoxidável pequeno e de fundo redondo. – Ele tem água em seu interior. Pronto?

    – Claro – disse Matty.

    Frankie apertou o play. Na tela, Irene parecia com raiva.

    – Ele não está fazendo certo. Eu não tenho como dizer sim ou não se ele continua...

    De fora da tela, o vô Teddy falou bruscamente.

    – Frankie! Espere sua vez!

    O pote na mesa pareceu tremer, e em seguida toda a mesa começou a vibrar.

    A câmera se voltou para o pequeno Frankie. Ele estava sentado no chão de pernas cruzadas, olhando fixamente para a mesa. A pilha de talheres chacoalhou e o pote começou a balançar para a frente e para trás.

    – Cuidado, agora – disse o vô Teddy. – Você vai...

    O pote se inclinou um pouco mais e a água transbordou pela borda.

    – ... derramar – concluiu o vô Teddy.

    – Minha nossa! – disse o apresentador. – Nós já voltamos. – Uma banda tocou, em seguida entrou um comercial.

    – Você fez isso, tio Frankie? – perguntou Matty. – Legal.

    Frankie estava agitado.

    – Viu aquela merda com as imagens? Aquilo foi ideia de Archibald, também, tentando foder com a gente. Disse ao Mike Douglas que não nos permitisse usar nosso próprio material, deu a ele aqueles cartas Zener.

    Matty não sabia ao certo como isso poderia acabar com o poder de sua mãe. Ele sabia que era impossível mentir para ela, assim como sabia que o vô Teddy lia o conteúdo de envelopes fechados, que a vó Mo podia ver objetos distantes, que o tio Frankie podia mover coisas com a mente e que o tio Buddy, quando era pequeno, conseguia prever os placares dos jogos dos Cubs. Serem paranormais era outro Fato da Família Telemachus, na mesma categoria de serem meio gregos e meio irlandeses, católicos e torcedores dos Cubs que odiavam os White Sox.

    – Fica pior – disse Frankie. Ele avançou os comerciais, passou pelo resumo do programa, rebobinou a fita, em seguida avançou e retornou várias vezes. A vó Mo e Buddy não estavam mais no palco. O vô Teddy estava com o braço em torno de Irene.

    – E nós estamos de volta com Teddy Telemachus e sua Fabulosa Família – disse o apresentador. – Maureen teve de cuidar de uma pequena emergência familiar...

    – Desculpe por isso – disse Teddy com um sorriso. – Buddy, ele é nosso caçula, ficou um pouco nervoso e Maureen precisou confortá-lo. – Ele fez com que parecesse que Buddy fosse um bebê. – Vamos trazê-lo de volta para cá em um segundo.

    – Você concorda em prosseguir? – perguntou o apresentador.

    – É claro! – disse Teddy.

    – O que aconteceu com Buddy? – perguntou Matty ao tio.

    – Meu Deus, ele não resistiu, começou a chorar e a gemer. Sua avó precisou levá-lo aos bastidores para acalmá-lo.

    O apresentador estava com a mão no ombro do jovem Frankie.

    – Agora, antes dos comerciais, o pequeno Franklin, aqui, parecia estar... bem, como você chamaria isso?

    – Psicocinese, Mike – disse o vô Teddy. – Frankie sempre teve talento para isso.

    – A mesa estava mesmo tremendo – disse o apresentador.

    – Isso não é raro. E pode deixar a hora do jantar bem animada, Mike, bem animada.

    – Aposto que sim! Agora, antes de continuarmos, quero apresentar um convidado especial. Por favor, recebam o famoso mágico de palco e escritor, o Incrível Archibald.

    Um homem baixo e careca com um bigodão ridículo com pontas curvadas para cima entrou em cena. Teddy balançou a cabeça como se estivesse decepcionado. – Isso explica muita coisa – disse ele. O homem careca era ainda mais baixo que o vô Teddy.

    – É bom tornar a vê-lo, Sr. Telemachus – disse Archibald. Eles apertaram as mãos.

    – G. Randall Archibald não é apenas um mágico mundialmente famoso – enfatizou Mike Douglas. – Ele também é um cético que desmascara paranormais.

    – Isso explica muita coisa – tornou a dizer Teddy, mais alto.

    O apresentador não pareceu escutá-lo.

    – Nós o chamamos aqui para nos ajudar a preparar esses testes para a família Telemachus. Estão vendo esta linha? – A câmera se afastou para mostrar toda a extensão da fita crepe branca. – Foi ideia do Sr. Archibald não permitirmos que Teddy nem membros de sua família tocassem os talheres ou se aproximassem da mesa de jeito nenhum.

    – Talvez você tenha percebido... – disse Archibald ao apresentador – ... que Irene não teve problemas ao ler as cartas quando eram aquelas que Teddy lhe forneceu. Mas quando usou as cartas Zener, às quais Teddy não teve acesso antes, e que não teve permissão de tocar, ela ficou indecisa.

    – Não é verdade, não é verdade! – disse Teddy. – Mike estava fazendo errado! Mas pior: alguém cheio de negatividade estava causando interferência. Interferência grave!

    – O senhor quer dizer que minha presença aqui fez com que os poderes dela falhassem? – perguntou Archibald.

    – Como eu lhe falei, Mike – disse Teddy. – É preciso ter a mente aberta para permitir que essas habilidades funcionem.

    – Ou uma mente vazia – disse Archibald. Mike Douglas riu.

    Archibald, parecendo satisfeito, se dirigiu ao público.

    – Enquanto Irene estava se concentrando muito, nós mantivemos uma câmera focada em seu pai. Mike, podemos mostrar aos telespectadores o que gravamos?

    Teddy pareceu chocado.

    – Você está zombando da minha filha? Está zombando dela, seu nanico? – Isso vindo de um homem pouco mais de cinco centímetros mais alto.

    – Não estou zombando dela, Sr. Telemachus, mas talvez o senhor esteja zombando da capacidade do público de...

    – Vamos trazer minha esposa aqui – disse Teddy. – Maureen Telemachus é, sem dúvida, a clarividente mais poderosa do mundo. Mike, você pode chamá-la aqui?

    O apresentador desviou os olhos da câmera e pareceu escutar alguém. Em seguida disse a Teddy:

    – Falaram que ela não pode vir. Vou lhe dizer uma coisa, vamos apenas assistir ao videoteipe e vemos se ela consegue voltar depois do próximo intervalo.

    – Acho que vocês vão perceber algo muito interessante – disse Archibald. Ele tinha um jeito espalhafatoso de falar forçando as consoantes. – Enquanto todos estavam distraídos com a menina, a mesa começou a se mexer e balançar.

    – Isso mesmo – disse Mike Douglas.

    – Mas como isso aconteceu? Foi psicocinese... ou algo um pouco mais realista?

    A tela mostrou o palco alguns minutos antes, mas de um ângulo lateral, logo atrás da família. No início, a câmera estava apontada para o apresentador e Irene, mas aí ela se virou na direção de Teddy. Ele tinha passado pela tira de fita crepe, e seu pé estava encostado na perna da mesa.

    Archibald falou durante o vídeo:

    – Esse é um truque velho. Apenas erga levemente a mesa e enfie a ponta da sola de seu sapato por baixo do pé.

    O pé de Teddy mal estava se mexendo, se é que estava se mexendo, mas a mesa sem dúvida estava balançando. Então a tela mostrou Archibald e o apresentador. Teddy estava parado de lado, olhando para as coxias, com uma careta de frustração.

    – Eu posso ensiná-lo a fazer isso – disse Archibald ao apresentador. – Não é necessário nenhum poder paranormal.

    Mike Douglas se virou para o vovô.

    – O que tem a dizer sobre isso, Teddy? Não é necessário nenhum poder?

    Teddy pareceu não escutá-lo. Ele olhava fixamente para fora do palco.

    – Onde está a... – Ele se segurou para não dizer um palavrão. – Onde está minha mulher? Alguém poderia, por favor, trazê-la aqui?

    Irene segurou o braço do vô Teddy, embaraçada. Ela sussurrou algo para ele que não chegou aos microfones.

    – Certo – disse o vô Teddy. Ele chamou Frankie até ele. – Nós vamos embora.

    – Sério? – disse Archibald. – E Maureen? Eu gostaria muito de...

    – Hoje não, Archibald. Sua, hum, negatividade tornou isso impossível. – Para o apresentador, ele disse: – Eu esperava mesmo mais de você, Mike.

    Teddy e os filhos deixaram o palco – com grande dignidade, pensou Matty. Mike Douglas parecia confuso. O Incrível Archibald parecia surpreendentemente decepcionado.

    Tio Frankie apertou o botão para ejetar a fita e a tela se transformou em estática.

    – Entende o que quero dizer?

    – Uau – disse Matty. Ele estava desesperado para que a conversa continuasse, mas não queria que Frankie se enchesse e parasse de falar com ele. – Então a vó Mo nunca voltou ao palco?

    – Não. Nunca chegou a fazer o seu número. Isso teria calado a boca de Archibald, pode acreditar, mas ela nunca teve a oportunidade. Buddy piorou e todos voltamos para casa.

    – Está bem, mas...

    – Mas o quê?

    – Como isso a matou?

    Frankie olhou fixamente para ele.

    Oh, oh, pensou Matty.

    Frankie se levantou.

    Matty ficou de pé também.

    – Desculpe, eu não queria...

    – Você sabe o que é a teoria do caos? – perguntou Frankie.

    Matty sacudiu a cabeça.

    – Asas de borboleta, Matty. Uma batida e... – Ele abriu os braços num gesto grandioso, que deixou à vista seu copo quase vazio, e bebeu o resto. – Droga. – Ele estudou a janela da frente, talvez vendo alguma coisa nova nas casas velhas. Mas a única coisa que Matty podia ver era o reflexo do tio, seu rosto reluzente flutuando acima do corpo como um fantasma.

    Frankie olhou para ele.

    – O que eu estava dizendo?

    – Hum, borboletas?

    – Certo. Você precisa ver a causa e o efeito, toda a cadeia de acontecimentos. Primeiro, a apresentação na TV é arruinada. Estamos acabados para o público. Novas apresentações são canceladas, a merda do Johnny Carson começa a fazer piadas conosco.

    – Carson – disse Matty, demonstrando amargura. Todo mundo da família sabia que Carson tinha roubado o número do envelope do vô Teddy.

    – Depois de nos isolarem, viramos alvos fáceis. – Frankie olhou para ele com uma expressão intensa. – Faça as contas, garoto. – Ele olhou na direção da sala de jantar; a mãe de Matty tinha ido para a cozinha, e não havia ninguém à vista, mas Frankie baixou a voz mesmo assim. – Era 1973. O auge da Guerra Fria. Os paranormais mais famosos do mundo são desacreditados no Mike Douglas Show, e apenas um ano depois uma mulher com o poder imenso de sua avó simplesmente morre?

    Matty abriu a boca, em seguida a fechou. Poder imenso?

    Frankie balançou a cabeça lentamente.

    Ah, sim.

    Matty disse:

    – Mas mamãe... – Frankie ergueu a mão, e Matty passou a falar mais baixo, em um sussurro. – Mamãe disse que ela morreu de câncer.

    – Claro – disse o tio Frankie. – Uma mulher saudável, não fumante, morre de câncer no útero aos 31 anos de idade. – Ele pôs a mão no ombro de Matty e se inclinou para perto dele. Seu hálito cheirava a Ki-Suco. – Escute, isso é entre mim e você, certo? Minhas meninas são novas demais para entender a verdade, e sua mãe... você vê como ela reage. Para todo o mundo, sua avó morreu de causas naturais. Está me entendendo?

    Matty balançou a cabeça afirmativamente, embora não estivesse entendendo direito, começando por que ele podia saber esse segredo, e Mary Alice, que era dois anos mais velha, não podia. Embora talvez fosse por ela não ser uma Telemachus de sangue. Era filha de Loretta de um casamento anterior. Será que isso fazia diferença? Ele ia perguntar, mas Frankie ergueu a mão.

    – Tem mais coisas nessa história, Matthias. Mais do que é seguro contar a você agora. Mas saiba de uma coisa. – Sua voz estava embargada pela emoção; seus olhos, turvos.

    – Sim? – perguntou Matty.

    – Há grandeza em sua origem – disse o tio Frankie. – Você tem grandeza em você. E nenhuma ferramenta autoritária do governo americano pode...

    Matty jamais saberia o que o tio Frankie ia dizer em seguida, porque nesse momento uma batida alta soou no andar de cima. Mary Alice gritou:

    – Fogo! Fogo!

    – Droga – disse Frankie em voz baixa. Ele fechou e apertou os olhos. Então subiu correndo a escada, gritando para que todo mundo parasse de gritar. Matty o seguiu até o quarto de hóspedes, que servia também como um quarto de serviço, repleto de caixas e cestos de roupa. A capa acolchoada da tábua de passar estava pegando fogo, e o ferro estava no meio das chamas, com o fio negro pendurado ao lado, sem estar plugado. As gêmeas de três anos estavam paradas em um canto, de mãos dadas, encarando as chamas com olhos arregalados; mais surpresas do que com medo. Mary Alice segurava uma das camisas enormes de Buddy em frente a ela, como se estivesse se protegendo do calor, embora provavelmente estivesse pensando em abafar as chamas com ela.

    – Tire Cassie e Polly daqui – disse Frankie para Mary Alice. Ele olhou em torno do quarto, não viu aquilo que estava procurando, em seguida disse: – Todo mundo para fora!

    As gêmeas correram para o corredor, e Mary Alice e Matty foram apenas até a porta, fascinados demais para saírem completamente dali. Frankie se agachou ao lado da tábua de passar e a pegou pelas pernas, equilibrando o ferro que estava sobre ela. Ele a carregou na direção deles como se fosse um bolo de aniversário gigante. Mary Alice e Matty saíram correndo na frente de Frankie. Ele desceu a escada, movendo-se com determinação apesar das chamas em seu rosto. Isso impressionou Matty tremendamente. Mary Alice abriu a porta da frente para ele, que saiu andando pela entrada de carros e largou a tábua de passar ao lado. O ferro fumegante e parcialmente derretido quicou duas vezes e parou de cabeça para baixo.

    Tia Loretta apareceu de trás do canto da casa, seguida um momento depois pelo vô Teddy. Aí a mãe de Matty saiu apressada pela porta da frente, com as gêmeas vindo atrás. A família inteira estava parada no jardim da frente agora, menos Buddy.

    – O que aconteceu? – perguntou Loretta a Frankie.

    – O que você acha? – disse Frankie. Ele virou a tábua de passar para deixá-la de ponta-cabeça, mas as chamas ainda subiam pelos lados. – Arrume as pestinhas e Mary Alice. Nós vamos para casa.

    Por meses, Matty não conseguiu tirar aquela fita de vídeo da cabeça. Ela parecia ser uma mensagem de um passado distante, um texto iluminado brilhando com os segredos de sua família. Ele queria desesperadamente perguntar a sua mãe sobre ela, mas também não queria quebrar a promessa feita ao tio Frankie. Lançou mão de fazer perguntas indiretas à mãe sobre o Mike Douglas Show, a avó Maureen ou o governo, e toda vez ela o cortava, mesmo quando ele tentava tocar discretamente no assunto – Nossa, eu gostaria de saber como é aparecer na TV –, ela parecia sentir imediatamente o que ele estava tramando e mudava de assunto.

    Na vez seguinte em que ele e a mãe voltaram a Chicago, ele não conseguiu encontrar a fita de vídeo no gabinete da TV. O tio Buddy o flagrou mexendo nas fitas e experimentando cada uma delas no videocassete, acelerando a imagem para se assegurar de que Mike Douglas não aparecia no meio do vídeo. Seu tio franziu o cenho, em seguida saiu do quarto.

    Matty nunca encontrou a fita. No feriado de Ação de Graças seguinte, Frankie não parecia se lembrar de tê-la mostrado a ele. Nas festas, Matty se sentava à mesa de jantar esperando que os adultos falassem sobre aqueles dias, mas sua mãe impusera algum tipo de embargo ao assunto. Quando Frankie mencionava algo que parecia promissor – uma referência à vó Mo ou à guerra paranormal –, minha mãe o encarava com uma expressão que fazia cair a temperatura da sala. As visitas se tornaram menos frequentes e mais tensas. Em alguns feriados de Ação de Graças, a família de Frankie nem aparecia, e em alguns anos Matty e a mãe ficavam em casa em Pittsburgh. Esses eram fins de semana terríveis. Você tem uma tendência à melancolia, disse-lhe ela. Se fosse verdade, ele sabia onde tinha conseguido isso; sua mãe era a pessoa mais melancólica que ele conhecia.

    Era verdade que ele era estranhamente nostálgico para um garoto, embora o que desejasse fosse uma época anterior a seu nascimento. Era assombrado pela sensação de ter perdido o grande espetáculo. O circo tinha sido desmontado e deixado a cidade, e ele aparecera e não encontrara nada além de um terreno com a grama pisoteada. Mas outras vezes, especialmente quando a mãe estava se sentindo bem, ele de repente se enchia de confiança, como o príncipe de uma família real deposta certo de sua reivindicação ao trono. Ele pensava: Antigamente, nós éramos Fabulosos.

    Aí sua mãe perdia outro emprego, e eles tinham de comer macarrão Kraft por semanas seguidas, e ele pensava: Antigamente, nós éramos Fabulosos.

    Então, quando ele tinha 14 anos de idade, sua mãe perdeu o melhor emprego que teve na vida, eles voltaram a morar na casa do vô Teddy, e pouco tempo depois ele se viu sentado em um closet abarrotado com as roupas da avó morta, recuperando-se da coisa mais interessante que lhe aconteceu. Seu embaraço desaparecera, o que deixava espaço em seu corpo para outras emoções, uma mistura vibrante de medo, assombro e orgulho.

    Ele havia deixado o corpo. Flutuara a dois metros e meio do chão. Era necessária alguma cerimônia.

    Matty pensou por um momento, ergueu o vestido prateado pelo cabide e falou com ele:

    – Oi, vovó Mo – disse ele, baixo o suficiente para que Mary Alice e sua amiga idiota não o escutassem. – Hoje estou... – Ele ia dizer

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