Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

O homem que não transbordava
O homem que não transbordava
O homem que não transbordava
E-book121 páginas1 hora

O homem que não transbordava

Nota: 4 de 5 estrelas

4/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

FINALISTA DO PRÊMIO ODISSEIA DE LITERATURA FANTÁSTICA 2022
Eles vêm, comem e vão embora.
Desde a chegada ao planeta Terra, os devoradores encontraram uma maneira de viver em contato direto com sua fonte de alimento: seres humanos. Não é incomum se instalarem junto a uma casa ou família para facilitar o acesso a medo, ódio e outros extremos nutritivos. Depois de séculos, porém, esse estilo de vida parece estar à beira de uma crise — e o caso inédito de uma pessoa incapaz de transbordar sentimentos com certeza não ajuda a situação.
A coleção ZIGUEZAGUE atravessa o tempo celebrando e resgatando a produção nacional de ficção científica, reunindo obras das três ondas da nossa literatura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de ago. de 2021
ISBN9786586692068
O homem que não transbordava

Leia mais títulos de Waldson Souza

Autores relacionados

Relacionado a O homem que não transbordava

Ebooks relacionados

Ficção Científica para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de O homem que não transbordava

Nota: 4 de 5 estrelas
4/5

1 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    O homem que não transbordava - Waldson Souza

    Parte 1: Medo

    […] Por esses motivos, o estado temporário em criogenia, conhecido popularmente como descontinuação, foi pensado como alternativa para aqueles que começam a demonstrar dificuldade em continuar vendo propósito em suas vidas. Quando lançada, a ideia foi recebida com pouco entusiasmo, mas com o tempo se tornou cada vez mais popular. Entretanto, devido ao aumento de indivíduos favoráveis à prática, hoje a adesão não se baseia apenas no critério de escolha; é preciso passar por um acompanhamento profissional antes de obter a autorização.

    A longa eternidade

    1.

    Costumavam fazer as principais refeições reunidos em volta da mesa, embora a rotina e os horários desencontrados de cada um nem sempre permitissem. Era evidente que Igor e Brenda, os filhos, preferiam comer assistindo a alguma série nos respectivos notebooks, enquanto Denise, a mãe, até considerava aquele gesto importante, mas odiava quando perdia a novela por comer longe da televisão. Era Ricardo que garantia a recorrência da reunião, chamando todo mundo para a cozinha assim que acabava de preparar a comida. Para ele, a hora da refeição era um momento sagrado que precisava ser feito em união.

    As conversas, entretanto, tendiam a ficar apenas entre Ricardo e Denise. Cada um contava como fora o dia no trabalho enquanto mastigava e bebia suco, e os filhos ficavam em silêncio — falando apenas quando tinham de responder a uma pergunta direta.

    A chuva lá fora, apesar de fraca e sem vento, veio de surpresa. Mesmo com a previsão do tempo da noite passada, ninguém esperava que ela realmente caísse. Mas isso não significava uma mudança duradoura no clima — os próximos dias poderiam muito bem continuar quentes como os anteriores. Denise começou a pensar que não tinha lembranças de estações bem definidas ali onde moravam. Ricardo já reparara que os períodos com dias seguidos de chuva e nuvens nubladas haviam se tornado cada vez mais raros. Igor gostava da chuva mais que do sol, apesar de admitir que era muito mais trabalhoso sair debaixo d’água segurando um guarda-chuva e torcendo para não molhar os tênis. Brenda não conseguia pensar na chuva exterior quando dentro dela havia uma tempestade com direito a raios e trovões que já durava um dia inteiro.

    Tudo ficou escuro de repente. Igor deu um pulo na cadeira. Uma boa quantidade de líquido em dois tons de violeta saiu da cabeça dele, um jato breve que caiu de um ponto inespecífico. Uma aura líquida, densa e em processo de condensação — substância que surgira num gás, mantendo-se no ar por poucos segundos, depois caindo em direção ao chão e formando uma pequena poça aos pés do garoto. Os tons mais claros indicavam que o líquido tinha mais susto do que medo propriamente dito. Medo genuíno resultava num tom mais forte.

    Olhei sem interesse para tudo aquilo e continuei imóvel no canto da parede, invisível aos olhos humanos como o líquido no chão. Queria beber alguma coisa mais densa que aquilo. Mantive minha atenção voltada para Brenda, que tinha o interior mais interessante naquele momento.

    — Não pode cair uma gota de água nessa cidade que a energia acaba — reclamou a mãe.

    Observei Denise se levantar e pegar três velas, acender uma por uma e queimar as bases para grudá-las no fundo das xícaras mais velhas. Posicionou tudo na mesa em pontos estratégicos para iluminar melhor o espaço e tentou não pensar no trabalho de retirar a parafina das xícaras depois.

    Terminaram a refeição à luz de velas.

    — Talvez já estejam arrumando — comentou Brenda esperançosa enquanto levava os pratos para a pia.

    A família deixou a cozinha e, por falta de opção, não demorou a ir para os quartos. O jeito era dormir cedo. Talvez a energia voltasse só no meio da madrugada, como já acontecera antes. Denise e Ricardo trocaram um beijo demorado antes de cada um se deitar no respectivo lado da cama. Igor pôs no celular algumas músicas no volume baixo e ficou encarando o teto banhado pela escuridão, pensando no ex-namorado. No terceiro quarto, Brenda chorava com o rosto enfiado no travesseiro para abafar os soluços.

    Entrei no quarto de Brenda sabendo que, naquele momento, ela estava mais propícia a me alimentar. Eu estava com aquela família havia algumas semanas, tempo suficiente para saber quando estavam mais suscetíveis. Decidi acompanhá-los de perto, praticamente morando com eles, após encontrar naquela casa o medo que preciso para sobreviver. Sentimento puro e forte, surgido de segredos, desconfianças e ansiedades.

    Parei ao lado da cama de Brenda, pensando no que diria para aumentar o medo que ela já estava enfrentando. Ouvia sua mente, pronto para influenciá-la com pensamentos que serviriam de gatilho, mas Brenda não exigiria muito de mim — eu não precisava fazer surgir uma emoção, apenas aumentar o que ela já sentia.

    No escuro, de pé, alto e invisível e pronto para me alimentar, não me considerava invasivo, muito menos perigoso. Brenda não sentiria nada além da dor dos próprios sentimentos. Os humanos não sentem nossa presença.

    Só precisava saciar minha sede, nada mais.

    Curvei-me na direção da garota e transferi a ela alguns pensamentos, reforçando suas suspeitas. Plantei mais dúvidas para colher o medo. Só uma semente, um incentivo. Os pensamentos dela fariam o resto.

    Em pouco tempo, Brenda começou a soluçar ainda mais forte, sentiu falta de ar e precisou se virar para cima. O líquido violeta começou a escorrer da altura da cabeça. Já próximo da fonte, comecei a sugá-lo. A sede que vinha sentindo desde o fim da tarde diminuiu conforme o medo da garota entrava no meu organismo. Em Brenda, o sentimento continuava forte, sem amenidades. Continuaria sendo uma fonte inesgotável enquanto não confirmasse se as fotos tinham mesmo sido apagadas ou não. E eu estaria ali,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1